sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O crânio de Yorick


Se a Globo pôde chamar o recente bombardeio à faixa de Gaza de conflito entre Israel e o Hamas, como se os palestinos não tivessem sofrido as consequências da escalada de violência conduzida pelo primeiro ministro Benjamin Netanyahu, com vista na eleição de janeiro próximo para o Knesset (parlamento israelense), então eu posso definir a guerra entre o PCC e a polícia de São Paulo como um transtorno de personalidade por parte dos marginais ligados à organização, que têm uma notória dificuldade em lidar com a autoridade, num processo que os psicólogos costumam classificar como fenômeno disruptivo.

Dependendo da cognição, juízo crítico, conhecimento e disposição ao entendimento, tais estados supostamente pétreos podem seguir por caminhos mais favoráveis e de menor sofrimento, tanto para a pessoa deles portadora, quanto dos demais à sua volta. Sabendo lidar com essa questão, o indivíduo poderá se adaptar perfeitamente à sua maneira de ser, disciplinar pulsões, esquemas de pensamentos, impulsos específicos desses transtornos, e tal manejo poderá ser de tal forma eficiente que a qualidade da vida emocional será muito melhorada (CID.10 – Classificação Internacional de Doenças - OMS).

No país da piada pronta, o delegado geral da Polícia Civil, Marcos Carneiro de Lima, encontrou outra explicação para essa guerra, conforme declarou ontem, 22/11, data da posse do novo secretário de Segurança do Estado, Fernando Grella Vieira. Lima encontrou indícios da volta de grupos de extermínio na onda de violência que atinge a Capital. Provavelmente o delegado acha que a execução de marginais suspeitos de fenômenos disruptivos, no passado, se restringiu à ação do ex-pm Florisvaldo de Oliveira, o cabo Bruno, na década de 80, ou ao Esquadrão da Morte que atuou em São Paulo de 1968 a 1971.

A ele recomendo a leitura de O Matador, de Patrícia Melo, adaptado para o cinema por Rubem Fonseca, no filme O homem do ano, dirigido por José Henrique Fonseca e interpretado por Murilo Benício, numa atuação bem diferente daquela do Tufão que acabou garfando a Débora Falabella (melhor do que ganhar a Copa do Mundo, que o Corínthians disputa, em dezembro).

Quanto ao Oriente Médio, numa chamada para o programa Sem Fronteiras, de Monica Valdwogel, na Globonews, anteontem (21/11), a emissora chamou a guerra na Faixa de Gaza de conflito entre Israel e Palestina. Das duas, uma: ou a empresa pensa que o público de sua TV a cabo é mais adulto e melhor informado do que o público que assiste à Xuxa, Faustão e JN, ou a ordem de atender aos interesses (imaginados) do lobby israelense-norte-americano foi suspensa temporariamente, em homenagem ao Dia de Ação de Graças nos EUA (22/11) que, também imaginariamente, pode ter ensejado a anunciada trégua entre Israel e a Palestina, nessa mesma data.

Ao entrar na Faixa de Gaza durante a transmissão do Bom Dia Brasil, também de ontem, o repórter, Carlos de Lanoy, disse que o clima, entre os palestinos, era de comemoração e alívio. Só não se sabe por quanto tempo. Gostaria de entender um pouco mais da política interna de Israel, para avaliar se existe alguma chance de se derrotar, nas urnas, a coligação de extrema direita entre o Likud de Netanyahu e o Yisrael Beiteinu, de Avigdor Lieberman. Duvido que, mesmo pensando, acima de tudo, em sua própria segurança, um judeu norte-americano como Phillip Roth, de quem leio, neste momento, Patrimony, ou os brasileiros de origem ou de religião judaica que conheço, optassem pela violência como única forma de proteção.

A melancolia (russa) que reconheço no livro de Roth sobre o declínio e a morte – temas recorrentes, em sua Literatura – não me autoriza a pensar de outro jeito. Da mesma forma, a ternura ácida e bem humorada de Portnoy’s Complaint, outro texto autobiográfico do autor, que trata de infância num bairro judeu de Nova Jersey, onde ele cresceu, protegido da Guerra e do preconceito. A figura do pai, abordada nos dois livros, mereceria outro extenso comentário, se não estivéssemos tratando aqui, simplesmente, da universalidade da arte e como forma de combate à hipocrisia e à violência.

Voltei a pensar no assunto ontem à noite, durante um breve recital de Schumann, igualmente melancólico (Quinteto para Piano Op.44), na Bienal de SP (30ª), para o qual fui convidado por um dos patrocinadores da mostra, cuja organização teve a boa idéia de promover uma visita exclusiva de convidados de seus principais patrocinadores, como contrapartida ao mecenato. Neste caso, tanto o patrocinador quanto o patrocinado mantinham, fora da Bienal, programas socioeducativos que, graças à sua convergência, tornaram-se correspondentes ou colaborativos, como diriam meus amigos de TI.

A peça de Schumann foi interpretada, a quatro mãos, pelos irmãos Heloísa e Amilcar Zanin, envolvidos por uma cortina circular que mostrou uma projeção multifacetada de cenas urbanas, outros recitais e paisagens, exceto numa tela lateral de 16 mm situada numa das paredes de fundo, que exibiu tiros de artilharia inspirados (imagino) nas Guerras Napoleônicas que minaram o império austro-hungaro na época do compositor. O espetáculo em si foi outra boa idéia, mas eu teria inserido imagens de flores e valsas entre os disparos de canhões: considerado o maior compositor do Romantismo alemão, Schumann conseguia aliar frescor e uma profunda melancolia em suas obras, na maioria, canções líricas baseadas nos poemas de Heine, como as de Schubert, que o antecedeu nesse gênero musical.

Nos dois anos em que se escondeu do serviço militar, lecionando na escola do pai, de 1813 a 1815, Schubert compôs mais de 150 lieder, gênero que o consagraria (universalmente), igualmente inspiradas em Heine, em Goethe e em Sheakespeare. O mesmo Sheakespeare citado por Roth em Patrimony, numa passagem em que o autor examina a tomografia do cérebro do pai doente, e lembra uma frase de Hamlet sobre o crânio de Yorik: “Ele me carregou nos ombros, mil vezes”.

Boas idéias, melancolia e a saudade antecipada do filho do rugby, que parte para a América, dentro de um mês, para uma longa temporada, me levam a citar uma frase recente dele próprio, depois de uma discussão acerca de uma expressão inadequada* que eu censurei mas, que, arbitrada pelo avô, meu eterno professor, ganhou uma conotação de possível. Eu, obviamente, protestei contra o engodo:

- Você deveria ser advogado - disse, referindo-me a uma piada interna, sobre a relação dele com a irmã mais velha.

- Publicitário é um advogado que não deu certo, você devia saber – ele devolveu, lembrando a própria profissão, que ele considera ser a minha grande frustração de velho jornalista.

- Que nada, garoto. Idéias como as que vocês desperdiçam, vendendo sabonete, poderiam salvar o mundo.

Imagem: mais uma do impagável Sempé: "Eu disse para você tirar a máscara antes de brigar com eles".
(*) O Correio impeliu o Consulado a não encaminhar passaportes pelas empresas de Courrier.

2 comentários:

  1. Errata: meirinho que não deu certo ;)

    Em tempos de imprensa livre deveríamos ter tido acesso à expressão arbitrada como possível.

    Não fosse a herança machadiana, eu acreditaria em uma indignação com o papel atribuído aos pobres advogados do diabo frente aos herois sabonete.

    Quem sabe a saudade não justifique uma visitinha ao amigão do lado esquerdo da costa para um surf em seu humor mareado.

    O fato é que os almoços de sábado ficarão com um gostinho de Claudinho sem Buchecha.

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  2. Acrescentei uma nota explicativa e, aliás, corrigi uma falha característica da minha demência senil: o recital foi de Shumann, que também compôs canções líricas inspiradas em Heine, mas viveu 20 anos depois de Schubert e não fugiu à Tropa, como meus parceiros lusitanos de Bélgica, nos anos 40. Quanto à costa oeste, é possível, mas eu preferia conhecer a leste, onde, aliás, por minha escolha, ele faria sua pós-graduação. Beijos, saudades.

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