quinta-feira, 15 de agosto de 2013

BR-040, o videogame

 
A jovem (e bela) escritora argentina, Samanta Schweblin, tem um conto – que não vou estragar agora – “Pássaros na boca” (Ed. Benvirá), falando daquilo que pode se tornar defensável, ou, pelo menos, aceitável, por nossos habitualmente estreitos padrões de convivência, dependendo das circunstâncias. Isoladas, obviamente, as regiões abissais da alma humana. Ninguém pode aceitar que um menino de 13 anos seja capaz de matar a própria família, mas o dilema pode assegurar uma semana de audiência para o José Luiz Datena.  
À luz do dia, algumas doses de leniência são admitidas, como o papa Francisco acolher os diferentes no mesmo manto que abriga o celibato; a ministra Carmen Lúcia distrair-se ao assinar um convênio que transfere, à Serasa, o cadastro de 140 milhões de eleitores; o ministro do STF, Luis Roberto Barroso, lembrar que o mensalão não foi o único crime de corrupção na política brasileira, ou a 14ª. Câmara do TJ-SP permitir que a nutricionista, Gabriela Guerrero Pereira, volte a dirigir, dois anos depois de atropelar e matar o estudante Vitor Gurman, de 24 anos, ao conduzir a sua Land Rover pelas ruas da Vila Madalena, bairro aqui da Capital, aparentemente, embriagada.

Como podemos constatar, diariamente, ou na leitura do post anterior deste blog, a violência no trânsito ficou tão banal quanto as manifestações públicas pós-ressaca de junho. Ônibus despencando de viadutos e matando pessoas tornaram-se quase frequentes, assim como os acidentes com motociclistas que trafegam da cidade de São Paulo (438 morreram, em 2012). Das 326 vítimas socorridas pelo Instituto de Traumatologia do HC-USP, de fevereiro a maio deste ano, conforme pesquisa divulgada ontem (14/8), pelo órgão, 67% nunca tinham passado por motoescola.
A tolerância que as manifestações de junho indicavam ter se esgotado, por falta de um padrão FIFA de Educação e de Saúde e doses cavalares de corrupção na política, pode ter se renovado por medidas como o projeto de reforma eleitoral – que não vai discutir a proporcionalidade do voto, por exemplo; o programa Mais Médicos – que não prevê melhorias na infra-estrutura de Saúde (atendimento e serviços) e a aprovação do projeto de 75% dos royalties do Pré-Sal para a Educação – notícia obrigada a conviver com outra, sobre a prisão de uma quadrilha que desviou R$ 6,6 milhões do Instituto Federal de Ensino à Distância, no Paraná (8/8).

De todo modo, a moralidade pública, que comporta a possibilidade de uma grande empresa internacional ter o benefício da delação, num caso de desvio de milhões de reais numa concorrência para a compra de trens para o Metrô de SP ou para a CPTM (a corrupção está entranhada na administração pública, desde o Brasil Colônia, dirão alguns) não esgota a ética, esse conceito difuso, na opinião do senador Edison Lobão Filho, segundo o qual, o que é ético para um norte-americano (espionar em nome da segurança, por exemplo) pode não sê-lo para um brasileiro: usar aviões da FAB para comparecer ao casamento da filha do amigo. Isso, na opinião do parlamentar, justifica a retirada dessa palavra imprecisa do Regimento Interno do Senado Federal.
Ética, senador, um conceito “abstrato”, na sua opinião é, segundo a Wikipedia (enciclopédia da sua geração): “a parte da filosofia dedicada aos estudos dos valores morais e princípios ideais do comportamento humano. Derivada do grego ἠθικό, significa aquilo que pertence ao caráter. Diferencia-se da moral, que se fundamenta na obediência a costumes e hábitos recebidos, ao fundamentar as ações morais exclusivamente pela razão”. Não se trata, portanto, de respeitar aquilo que se aprendeu em casa, mas sim, o que se exige nas ruas.

Em relação ao trânsito (vamos encerrar este assunto?), os percalços pelos quais tenho passado me deram uma idéia, que, claro, passa por uma de nossas principais regras de leniência: - Pagando bem, que mal tem? (perdão, Darcy Ribeiro; desculpe, Mário de Andrade). Inspirado num trecho percorrido, há duas semanas, entre Tiradentes (o município, não o alferes da fiel maçonaria) e o aeroporto de Confins-MG, no cock pit de um carrinho de mil cilindradas, pensei em converter alguns desafios enfrentados nesse trajeto em videogame, que se vai se chamar BR-040 (atenção, Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI!). O jogo deve oferecer, por meio de seus obstáculos ao desafiante, um retrato das complexidades de se viver no Brasil (ok, hoje e sempre).
As pistas da BR-040 são duplas, em todos os sentidos: tanto as duas de ida, como as duas de volta apresentam, entre elas, um desnível de pelo menos 20 centímetros. Talvez por isso, as ultrapassagens são feitas empregando-se a pista do sentido oposto, com luz alta na cara do parceiro  do outro lado, mesmo durante o dia. Claro, não há mureta entre mão e contra-mão (também conhecida como guard rail): adrenalina garantida. Não se preocupe com as placas de sinalização: elas estão muito bem escondidas, ou o pessoal da engenharia pensou  bem, e resolveu apagá-las, para não aumentar a confusão no local.
Sobre a polícia, só vislumbrei alguns representantes da classe no velório de uma senhora que morreu atropelada, perto do Aeroporto. O acesso a este importante complexo, aliás, está sendo reformado, mas vai continuar exigindo um percurso de aproximadamente 30 km, entre o terminal de passageiros e as garagens dos veículos de aluguel. E o estacionamento, no caso de quem chega. Ponte, ali, nem pensar: é preciso economizar recursos públicos.

A velocidade média, na maior parte do trecho citado, é de 120 km, inclusive, ou principalmente, por parte dos caminhões caçamba carregados de minério que, às vezes, atravessam a pista, de um lado para o outro, sem nenhuma cerimônia. Cuidado: os que trafegam descarregados são mais perigosos. Não se assuste com o cavalo que segue na carroçaria do caminhão que vai aparecer bem à sua frente. Ninguém pode ficar mais assustado do que o próprio cavalo, que vai sambando nas tábuas, mas está amarrado pela rédea, na cabine do veículo que o conduz. Talvez uma joqueta elegante caia de uma árvore, na próxima curva, e o conjunto pule a grade da carroceria e saia vencendo outros obstáculos, campo afora. Se começar a garoar um pouco, na serra do Rola Moça, a distração vai ficar ainda melhor. Mas não se anime: para mim, não rolou nada (se bem que, nesta idade...).
O GPS que você estará usando, como se diz, será um brasileiro nobre, nascido no bairro de Santa Ifigênia, um dos preferidos pelo Adoniran. Ele vai começar a dizer coisas desconexas, numa voz feminina, em português lusitano, no momento em que você mais precisar dele, isso, depois de um dos inúmeros desvios da BR. Você vai perceber que está no lugar errado, mas fique calmo, senão, os traficantes podem pensar que você é da polícia, até porque, eles não sabem muito bem como ela é (no videogame, claro).
 
Se você estiver atrasado para pegar um vôo em Confins, não se desespere: o vôo também vai atrasar. Acostume-se a dirigir contra o sol, na pequena confusão do tráfego de BH: siga aquela bandeirinha do Atlético mineiro, no alto de um edifício em construção, no caso do Atlético ter vencido a Copa Libertadores, mesmo jogando daquele jeito, com aquele time, dirigido por aquele técnico. É o que se pode fazer, em termos de orientação: a boa gente do lugar, embora mineira, não recomenda a tal avenida do Contorno (a marginal deles, lá).  

Vi três passageiros sendo transportados por uma única moto, mas não peguei nenhum cachorro atravessando a pista, nenhum andarilho na contramão, zero de bêbados e equilibristas nos semáforos; nada de ônibus, prédios e viadutos despencando. Mas vou botar tudo isso no meu videogame. Regra de leniência: o brazuca que vai comprar o jogo, lá no Canadá, depois de um ano longe do país, não vai saber distinguir entre a ficção e a realidade (acontece com a gente, que vive aqui...).

O jogo terá mensagens políticas naqueles sinalizadores bacanas de estrada privatizada, aludindo à campanha presidencial, em troca de passe livre nos pedágios, tanto para a nova quanto para a antiga classe média. O pessoal do PT, do PSB e do PSDB e até a turma do Eymael e do Enéas, vai poder pedir voto aos jogadores em troca daquele dinheirinho falso, que dá alguma energia. Os jogadores também vão poder inventar slogans baseados nas manifestações de junho último, com bônus extras para as mais criativas. Tente uma variação daquela frase do Deputado Federal: “Titica, por Titica, ande mais duas casas”.

Só tem um problema: quando você morrer, não vai dar para ganhar uma vida passando pelo Sírio Libanês: aquilo está sempre lotado de gente de Brasília. O jeito vai ser voltar ao Distrito Federal, entrar e sair do Hospital de Base, e depois, ganhar uma força, caso consiga passar pela ponte do Itamaraty; ou até três vidas, se chegar ao teto do Congresso Nacional. Quando o jogo for lançado, colabore: vida de jornalista não está fácil.

6 comentários:

  1. Pena que eu perdi essa fase do jogo. Gostei muito da história do cavalo.

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    1. Uma beleza, Bottesi, pena que você perdeu. Mas vamos para a próxima...

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  2. sempre evitei esses noticiários escarlates, por achá-los, se não apelativos, aborrecidos, essa coisa de comentar a mente do criminoso, que para mim não é mais ou menos interessante que a do Alckmin. Mas eu estou inconformado, não com a exploração do crime, mas com a maneira que se aceita essa versão do moleque ter metido bala no pai, mãe, ouro de mina, tia, avó, ter dirigido e tal e coisa. Será que só eu acho impossível e improvável que o moleque tenha feito isso? Ninguém está comentando essa manipulação toda, aqui e ali aparecem detalhes que vão se somando para todo mundo comprar essa versão absurda.

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    1. Desconfio, meu amigo, mas não me surpreenderia - claro que não concordo com a exploração, estou repudiando isso, na crônica - porque as coisas estão cada vez mais difíceis, não por acaso. Abraço. Quando é que voltamos àquela esquina portenha?

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  3. Em Minas nao se usam placas de sinalizaço. Para que? Se voce é de lá (daqui) nao precisa, pois já sabe. Se for de fora, o que vc está fazendo aqui? volta para casa!
    CA

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    1. Certo, mas não me exclua. Não é sempre que se pode tomar uma cachacinha mineira com um geólogo de alto coturno, em Minas! - Ouvi falar de uma tal Encantos da Marquesa, da Taboeiras, que fica perto de Salinas - vai testando aí, enquanto eu não chego... abraço!

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