domingo, 30 de novembro de 2014

Questão de hábito - Acumule pontos e aproveite a viagem*


Na semana mais agitada de minha história recente, duas frustrações vieram juntar-se ao meu currículo, ambas relacionadas a mudanças: uma, de proporções homéricas – o resultado das eleições (eu torcia pelo outro lado); outra, doméstica – a patroa foi embora, cuidar da transferência da minha sogra para um apartamento, no interior. A gente briga o tempo todo, eu e a patroa (a sogra é uma santa) mas, sem ela, eu, que já fui um vira-lata, desses que correm atrás de qualquer coisa em movimento, viro um cérbero, aquele cachorrão do Hades, que acabou casado com uma Quimera.

A minha agenda lotada incluía uma análise de menções a uma grande empresa nas redes sociais. Era um trabalho pesado, mas que me trouxe alguma adrenalina. Depois dos sessenta, você não sente isso com frequência, assim como algumas outras sensações. As planilhas tinham links para os posts capturados pelo monitoramento das marcas na Internet. Vi coisas sensacionais, como a frase de um trabalhador numa das indústrias do cliente, “Bora fazer panetone” e outra, de um sujeito prestes a ser entrevistado para uma vaga de emprego: “Amanhã entrevista na empresa xis; c deus kse vai da tudo serto”. Claro que se eu fosse do RH da firma e lesse essa mensagem antes da entrevista, bye bye vaguinha.    

A Internet tem essas coisas. Quando eu saía para uma reportagem, nos anos setenta, passava pelo departamento de pesquisa da empresa e recolhia duas, às vezes cinco, ou até dez laudas de material de apoio (laudas era como se chamavam as folhas datilografadas e/ou xerocadas, na época). Ia estudando o assunto, no carro do jornal, da redação até o local da entrevista. 

Hoje, com dois clics, você está dentro do tema, da história do jazz – essa manifestação artístico-musical que nasceu em New Orleans, ou Chicago, ou New York, no início do século XX (segundo o site de busca) – até a culinária.

No último domingo, aliás, fui para a cozinha (restaurante, a toda hora, não dá) tentar a sorte numa carne de sol com queijo de coalho e mousseline de aipim. Que aipim e mandioca são a mesma coisa, eu já sabia, mas aprendi na Internet que a carne de sol tem que ser feita na sombra; que o charque era uma carne salgada transportada por tropeiros em baixo da sela de mulas, no século XVIII. E que mousse, em francês, não passa de espuma. Não importa, na minha opinião, desde que seja de chocolate. 

De quebra, fiquei sabendo que a carne de fumeiro, uma variação defumada da carne de sol, tem melhor sabor quando feita pelo método artesanal, mantida a uma distância mínima de 40 cm do braseiro (para não ser contaminada de alcatrão) e a uma temperatura máxima de 100 graus, para não se encher de hidrocarbonetos policíclicos (fumaça tóxica).

Tem o processo industrial, que usa hidrogênio e corante, mas isso não me interessa. Aprendi com o Michael Pollan, um americano maluco por cozinha que fez sucesso na última Flip (Feira Literária de Paarati), que nada se compara ao prazer de cozinhar a própria comida, cujos ingredientes você tem que saber de onde vêm. 

Quem também fez sucesso na Flip, há dois ou três anos, foi aquela moça, a Ana Paula Maia, que escreveu “De gados e homens”. A Folha caiu matando na coitada: o crítico usou Camões para dizer que ela falhou, no engenho e na arte. Essas coisas não se deve espalhar por toda a parte. O cara foi muito além da Tapobrana, que eu sempre me esqueço onde fica.

Não achei o livro assim tão ruim. Tem umas colagens de violência que o Quentin Tarantino trouxe até as pessoas da geração da autora. Mas quem gosta de carne, se impressiona: a história se passa num abatedouro, você sabe como é. Só que eu sempre achei o máximo aquela frase do Torquato Neto, espécie de tio do Caetano Veloso e padrasto do Raul Seixas (para você, que está chegando agora): “Leve um homem e um boi a um matadouro. Aquele que berrar é o homem, mesmo que seja o boi”. Com fome, aliás, eu como até o tutano do bicho.

Por falar nisso, você conhece aquela frase, dizendo que quem não foi comunista, antes dos trinta, não tem coração? – Concordo que depois dos trinta, a central de utilidades endurece um pouco, mas o cérebro continua alí: - Afinal, você deixou de ser comunista. Mas, para mim, quem continua jornalista depois dos sessenta, como eu, precisa de terapia.

Gasto o meu tempo livre lambendo as próprias feridas: um beethovenzinho aqui, um Randy Newman acolá, um sonzinho do Tommy Dorsey para curtir um livrinho, uma goiabinha em calda como a que acabo de preparar, a palestra sobre A Inveja no Café Filosófico da TV Cultura, uma espiada na mostra de Salvador Dali. Se dói? Nada. Gasto dinheiro? Tampouco. Depois dos sessenta, você pode não funcionar tão bem, mas entra de graça num monte de lugares.

Claro que poderia preferir um Zezé di Camargo e Luciano, com suas rimas fáceis e melodia suave, “primeira voz, segunda voz, tremidinha no final”, mas prefiro ver os dois no artigo do Gustavo Amendola que saiu no suplemento cultural do Estadão de sábado, falando da separação do Zezé e da Zilu: “Deu a louca no sertão”. Mais divertido. A frase de Zezé para justificar a separação: “Cavalo velho gosta de capim novo”. Reação da namorada jornalista (mulherão) à frase que definiu a ex como velha e feia e comparou a nova a um tipo de pasto: “Fiquei até emocionada”. 

Se você sugerir esses produtos daquilo que o filósofo Theodor Adorno definiu – pejorativamente – como indústria cultural, em oposição ao que o seu colega da Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, chamava de cultura de massa, vão achar que você pirou. Como? – Coisa de elite branca. Se o Lula ficar sabendo, você vai para a fogueira. Queimar livros, aliás, é a brincadeira que ditador adora: o Hitler, o Mao. Stalin fazia pior: queimava as pessoas e depois, mandava apagar das fotografias. Dois ou três caras, numa foto imensa, cercados por um monte de sombras. Tenebroso.

Mas, mesmo numa semana atribulada, cheia de problemas e frustrações, descobri que a Mostra de Cinema de SP estava quase no fim. Entrei na Internet – olha ela aí, de novo – e, pronto: troquei três horas de dois fins de tarde, um início de noite e um sábado por algum trabalho fora de hora e pude ver quatro filmezinhos supimpas, como se dizia no tempo do meu avô. Só vou falar sobre um deles, Leviatã, de Andrei Zviaguintsev, que ganhou a palma de Cannes de Melhor Roteiro e o prêmio da Crítica da Mostra paulista.

Se você puder, não deixe de ver: além do “melhor roteiro” (amizade, paixão, sedução, adultério) e da fotografia brilhante, o filme é um grito de socorro do povo russo mostrando como a corrupção pode corroer os costumes sociais a ponto de aniquilar seus indivíduos (seres humanos). Tudo isso, envolvido numa deliciosa calda de clichês: vodka, mulher bonita e um piquenique com tiro ao alvo, usando a arma-símbolo do país, o velho AK-47, que os nossos traficantes adoram. Foi uma catarse. Melhor que isso, só se na sala do prefeito corrupto, em vez do retrato do Putin, tivesse uma foto do nosso ex-presidente paz e amor.

Entender “a mensagem” desse filme foi como devorar um inimigo. Assim como dá trabalho ver a mostra do Salvador Dali, quando você também respeita o Picasso e o Goya, mas cultua Velazquez. Eu sempre gostei de Don Quixote, de Cervantes, mas o meu personagem espanhol preferido é o Marques de Carabás, do francês Charles Perrault, um macunaíma espanhol, se isso fosse possível. O melhor da história de Perrault é o momento em que o parceiro de Carabás, o famoso Gato de Botas, desafia o bandido, um leviatã em forma de leão, a transformar-se em ratinho, e logo depois o devora. Ambos são bichos, mas o final não podia ser mais antropofágico.

Não me diga que não dá para consumir cultura. Eu sei bem o que é acordar cedo, pegar condução lotada e trabalhar como um boi para pagar a faculdade. Mas se você conseguiu ver todos os filmes da série Crepúsculo, o novo Drácula e o Homem Aranha, também se pode achar um tempinho para ir ao museu; vez por outra, ao teatro, e arranjar um trocado para comprar um bom livro ou ler um jornal, de cabo a rabo. A internet pode muito bem, em vez de emburrecer, ajudar. É como aquela frase de anúncio de banco: “Tecnologia a serviço do homem”.

Aqui mesmo, neste artigo, se você usar todas as palavras grifadas em seu site de busca, como um videogame, ou um Jogo de Amarelinha (Cortazar), e entender o significado de cada uma, terá muito a ganhar. Recolha ponto por ponto e vá saltando as estações, de baixo para cima, passando do inferno ao purgatório e terminando lá em cima, no título, ou na conclusão que ele sugere e descubra que cultura, acima de tudo, é uma questão de hábito.

(*) Artigo feito para a revista Circuito Cultural, que serviu como Tese de Conclusão de Curso (TCC) de formandos da Faculdade de Comunicação Social da UNIP (2014).

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Notícias do lado de cá


Corro o risco desta mensagem se parecer com aqueles bilhetes de amantes do século XVIII, mas, sendo você, meu amigo/amiga esse/essa famoso/famosa âncora da TV, prefiro parecer ridículo a expor a sua identidade e o seu modo de pensar, neste espaço público. Isso poderia prejudica-lo/a nesta aldeia em que trabalhamos e vivemos (assim mesmo, nesta ordem), e que, nestas eleições, votou amplamente contra o governo - reeleito, embora chamuscado e, quem sabe, renovado - embora nisto, me custe acreditar.
  
Li, ontem (26/10), no intervalo entre dois dos poucos filmes desta 38ª Mostra de Cinema que consegui ver – Sangue Azul, de Lírio Ferreira, e Um pombo no galho refletindo sobre a existência, de Roy Andersson – o artigo do sociólogo Jessé de Souza, da UFF, no caderno Aliás do Estadão, também de ontem, que você me recomendou: “O caminho da inclusão”.  Seguem algumas observações.

A tese do sociólogo tem piada, como dizem os portugueses, o que deve ter chamado a sua atenção: de fato, nos últimos 12 anos, fomos governados pelas forças derrotadas em 1964, que representavam os nossos anseios por uma sociedade mais inclusiva, mas que não detinha o efetivo controle das práticas econômica e sociais vigentes no país.

“A fragilidade”, diz o articulista, “das conquistas obtidas por esse modelo de governo é explicada pela manutenção da força social e econômica do modelo anterior". Para o sociólogo, o mote do Estado ineficiente e corrupto, contraposto à suposta virtude e eficiência do mercado representa “a única bandeira de legitimação do modelo excludente de uma sociedade ainda detém o poder real”. Para ele, esse é “o único pretexto por meio dos quais os interesses privados do 1% mais rico podem ser travestidos do suposto interesse geral”.

Lembro aqui uma das frases típicas do comandante geral das referidas forças que nos governam, há 12 anos, ao discursar, enquanto presidente, na inauguração de um estabelecimento de conhecida rede varejista: "Quanto mais tempo a gente der de prestação e quanto mais barata a prestação, mais as pessoas vão poder comprar, porque no meio da parte mais pobre da população, eles não têm a preocupação se vai custar cinco ou seis vezes mais" (sic).

Ora, se o modelo que representa os anseios por uma sociedade mais inclusiva chegou ao poder pela via democrática, preconizando o reformismo, em vez da substituição do Estado burguês pela ditadura do proletariado, rumo à socialização dos meios de produção que nos conduziria à sonhada anarquia, por que razão o sociólogo quer atribuir os desvios do atual governo  – que ele chama de fragilidades – aos vícios de uma classe dominante que permanece no poder?

Os “progressistas”, que eu, a propósito, não reconheço como tal, costumam desdenhar das críticas aos notórios casos de desvios de patrimônio público cometidos pelo tal modelo inclusivo, nos últimos 12 anos. Para esses “progressistas”, como você sabe, as críticas não passam de “moralismo burguês”. 

Possivelmente, no inconsciente deles,todas as mazelas dos governos “populares” são justa vingança contra a opressão da classe dominante ou, no caso dos bem nascidos, como nosso ídolo, Ernesto Lynch, representam uma expropriação legítima da riqueza para redistribuição aos menos dotados: coisa de Saint Simon, ou de Guilherme Tell, dependendo do grau de escolaridade do interlocutor.

Não concordo com a simplificação de Jessé de Souza ao atribuir o caráter de ladroagem ao jogo especulativo do mercado de capitais. A Universidade Federal Fluminense não vem se comunicando com a Fundação Getúlio Vargas. Mas ouso cometer o mesmo erro ao afirmar que um líder das massas capaz de congratular-se com uma empresa privada que explora a boa fé e as carências do consumidor de baixa renda não tem “moral” para conduzir um projeto de poder voltado à redução das desigualdades.

Quem são, afinal, os parceiros e principais beneficiários da expropriação dos recursos que fluem para o Estado burguês, advindos dos impostos da “elite” que votou contra o atual modelo “inclusivo” de governo? (quase 50% dos brasileiros): – O povo? - Recursos destinados pelo atual governo ao Bolsa Família somaram R$ 24,5 bilhões, em 2013. Somente o orçamento da refinaria Abreu e Lima – apontado como um dos principais focos de desvios pela Operação Lava Jato – saltou R$ 2 bilhões para R$ 18 bilhões.

Talvez o nosso grande líder não importe com o fato de uma obra pública custar cinco, seis ou dez vezes o seu valor real (como não importa, para o pobre, segundo ele, o número de prestações que ele tem a pagar). Mas será que essa diferença vai parar no bolso dos 99% que, segundo o sociólogo Jessé de Souza, não têm acesso à riqueza? - Não é bem o que as investigações da Polícia Federal e da Justiça vêm indicando.

Que tipo de reformismo, afinal, vem a ser este, que, para manter-se no poder, permite o desvio de alimentos, remédios e recursos produzidos por milhões de cidadãos que pagam seus impostos em dia? - Será que a decisão de destinar bilhões do BNDES – um banco público – aos “campeões” do empresariado nacional pode ser considerada como parte dos “limites”  impostos ao modelo inclusivo pela sociedade conservadora? 

Segundo Jessé de Souza, “o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de corrupção organizada, começando pelo controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime: o funcionário do Estado corrupto e o batedor de carteira, enquanto o especulador de Wall Street (matriz da Avenida Paulista), que frauda balanços  e arruína o acionista minoritário da bolsa, ganha bônus milionários e sai na capa da revista Time”. Cândido. 


Jessé de Souza insiste em afirmar que, no Brasil, 1% detêm 70% do PIB e 30% referem-se aos salários dos outros 99%. Inverídico. E que, nas sociedades capitalistas mais dinâmicas, como França e Alemanha, essa relação é inversa. Esquece-se, convenientemente, de que as Leis contra a corrupção, nesses países, incluem, além de severas penas de prisão, multas de valor exorbitante e penhora de bens dos condenados. Que um deputado, na Suécia do cineasta citado acima (Roy Andersson), vive num apartamento funcional de 40 m2, servido por lavanderia comunitária, sem empregada. E com uma regra clara: “Deixe tudo limpo”. Nenhum parlamentar sueco tem direito a carro e muito menos, a motorista.

O sociólogo também diz que o brasileiro “é tolo por suportar uma transferência de renda incompatível com o que ocorre na Europa, por meio do superfaturamento de bens e serviços, além de juros muito altos”. Esquece-se, mais uma vez, convenientemente, que o principal lider do modelo inclusivo que governa o país há 12 anos sempre desprezou, publicamente, a educação formal, considerada, pelas sociedades avançadas, como a principal, senão a única, ferramenta de libertação da parcela mais pobre da sociedade. 

Esperto, esse líder do modelo inclusivo tem uma notória capacidade de transformar pequenos deslizes de seus opositores em chavões facilmente compreensíveis pelo “povão”, e que, depois de repetidos à exaustão, acabam ganhando uma dimensão real, posteriormente transformada em teses por seguidores apaixonados, mantidos pelas universidades públicas (como o autor do artigo recomendado por você).

Segundo o sociólogo Jessé de Souza, aliás, “o Estado é o único lugar onde a corrupção ainda é visível e, como tal, tem alguma possibilidade do controle real”. Isso, meu caro amigo, não é poesia, nem dialética.Trata-se do mais absoluto delírio. Assim como só pode ser insano afirmar que “os protestos de junho de 2013 foram promovidos pela classe média, sócia menor do 1% de endinheirados que defende os privilégios de uma pequena minoria”. 

Talvez você, proprietário de um carro confortável, conquistado com mérito e esforço próprios – não esteja habituado ao transporte público aqui da aldeia. Eu, sim. Posso garantir que as manifestações de junho não foram massa de manobra da elite branca.

Não parei de ler o artigo do Jessé de Souza nem quando ele disse que "a oposição reflete a raiva ancestral de uma sociedade escravocrata, acostumada a um exército de servidores cordatos e humilhados, o que explicaria a tolice dos que compram a idéia absurda de mais mercado no país mais injusto e concentrado do mundo”. Exemplos (meus) dessa “tolice”: obras públicas superfaturadas, beneficiando empreiteiras patrocinadoras de campanhas eleitorais; manutenção artificial do nível de emprego por meio de privilégios para um determinado setor da economia, em detrimento de outros; política fiscal desastrosa, mantendo o inchaço da máquina pública e o controle da inflação com o represamento de tarifas públicas. - Muito técnico, para um sociólogo?

Mas me diverti com a afirmação final do artigo, de que “foi com um mínimo de estímulo que as classes populares voluntariosas encheram de otimismo e vigor uma sociedade estagnada e decadente”. Provavelmente esse “mínimo de estímulo” a que ele se refere são os shows de axé, comícios animados por cantores de sertanejo universitário ou festas populares no interior da Bahia, promovidas com uma “mínima parcela” do patrimônio público expropriada da tal minoria escravista de 1% da sociedade brasileira. Tudo em nome da promoção da classe oprimida às benesses da sociedade moderna, certo?

Bem, agradeço a diversão, mas devo confessar que gostei mais dos filmes acima citados, produtos da “indústria cultural” criticada pelo colega de Jessé de Souza, o filósofo Theodor Adorno (1903-1969), que ambos já curtimos, e que tem uma frase boa para o momento que vivemos: “Ou a humanidade renuncia à violência da lei de talião, ou a pretendida práxis política radical renova o terror do passado”. 

Em retribuição, convido você a ver um outro filme da Mostra, Retorno a Ítaca (Laurent Cantet), baseado num conto do cubano Leonardo Padura Fuentes, que conta a história de um exilado  que volta à ilha e reencontra amigos que não vê há 15 anos. Afloram conflitos como os que perduram entre nós.  – Por que Cuba? – perguntaram a Cantet. – Porque ela foi mitificada no imaginário da esquerda – ele respondeu – mas permanece como um foco de resistência ao mundo globalizado. 

Foto: "Um pombo..." Trailler: https://www.youtube.com/watch?v=MhpedyLXevo#t=42

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Vamos erguer novos barracos e arranha-céus


A situação do povo das favelas, especialmente o da comunidade Sonia Ribeiro, no Campo Belo, SP/SP, que pegou fogo no dia da Independência (7/9), não permite piada. Portanto, a decisão do prefeito Fernando Haddad, de São Paulo, de autorizar a reconstrução dos barracos destruídos pelo fogo, “desde que respeitadas as normas”, não pode ser brincadeira.  Tenho poucos amigos engenheiros (talvez o Gustavo Campos, meu sobrinho), mas vou buscar ajuda para tentar identificar os meios disponíveis para tentar viabilizar a decisão do prefeito.  

Normas – eu tive uma tia com esse nome, já falecida – caso ele esteja se referindo a pessoas, já não se encontram assim, facilmente: conheço Suelens, Tatianas, Verolanges, Edivânias e Suelis, mas Norma, nenhuma. Não deve ser isso. O prefeito deve ter se referido a regras, condições específicas, sem as quais, ele não vai permitir a reocupação da favela.

Devem estar previstos, portanto: projeto e execução de saneamento básico; eliminação de “gatos” de energia elétrica; medidores de água monitorados pela Sabesp por meio de “smart grid”; materiais de construção leves e inflamáveis, como kevlar e nomex; isolamento termoacústico (para evitar potenciais desentendimentos entre vizinhos) e Brigada de Incêndio, com reuniões semanais entre técnicos da prefeitura e bombeiros voluntários.

“Vista como uma exceção pela gestão”, diz a Folha de S.Paulo de 12/9, “a reconstrução dos barracos passou a ser cogitada diante da resistência de muitos desabrigados a aderir ao programa social da Prefeitura” (auxílio aluguel de R$ 1,2 mil, a cada três meses). "Nosso acordo é que, se houver reassentamento no local, em função de que o bolsa-aluguel não resolve o problema, será feito mediante orientação dos engenheiros da Secretaria de Habitação”, declarou o prefeito. "Para impedir riscos".

Os moradores da favela estão divididos entre aceitar o bolsa-aluguel ou reconstruir os barracos. "Eles só querem que a gente saia para cercar o terreno. Aí vai chegar o engenheiro e dizer que não é apropriado para a gente morar", afirma o auxiliar de servente Robson Dalmo, 37. "Por isso, o pessoal quer construir de novo os barracos", afirma.

"O prefeito veio aqui, tomou café e foi embora. Se fosse bom mesmo, dava bloco para todo mundo reconstruir", diz a diarista Neusa Joaquina de Santana, 40. Entre os moradores que pretendem optar pelo auxílio-aluguel, há o medo de perder mais um barraco. "Depois, eu gasto três mil em material e eles mandam derrubar", afirma o vigilante José Alcides da Gama, 55, que está na casa de parentes.

Ao reconstruir os barracos da comunidade Sonia Ribeiro, talvez o prefeito possa aconselhar-se com a presidente do país vizinho, Cristina Kirchner que, há poucos dias, anunciou a construção do prédio mais alto da América Latina, na confluência dos rios da Prata e o Riachuelo (considerada a via fluvial mais poluída do país). O prédio terá 67 andares e “a magnitude do Central Park, de Nova York”. Segundo Cristina, será "um símbolo de Buenos Aires". A decisão, de acordo com a presidente, foi tomada com base numa experiência esotérica durante a qual ela descobriu ter sido, em outra encarnação, um arquiteto egípcio (talvez o construtor da pirâmide de Keóps).

Eu também gostaria de ouvir o nosso colega, Washington Novaes, a respeito da ideia do Fernando Haddad. Além da competência profissional e das reconhecidas consciência e militância ambientais, o Washington navega, há anos, nos problemas da ocupação desordenada das cidades.  Em artigo publicado no Estadão da última sexta-feira (12/9), ele mostrou-se perplexo diante da completa ignorância, pelos candidatos à presidência, governos estaduais e parlamento, de questões verdadeiramente importantes para os habitantes das grandes cidades.

Washington lembrou que o déficit habitacional de 6 milhões de moradias no país foi mencionado nos programas dos candidatos à presidência enviados ao TSE, mas os problemas urbanos – como a mobilidade, que gerou os protestos de junho – foram apenas contornados. Não há, por exemplo, nas plataformas de campanha, nenhuma referência à expansão desordenada de megalópoles como Rio e São Paulo, que já tem, hoje, 85% de suas respectivas áreas totalmente ocupadas.

“Em 1960, tínhamos apenas 45% de urbanoides e 55% das pessoas no campo. Sem políticas adequadas”, alerta o jornalista, “chegamos onde estamos e caminhamos para uma concentração ainda maior - embora possa haver políticas adequadas, como a adotada em Portland, nos Estados Unidos, que conteve o seu crescimento horizontal, ou Guelph, no Canadá, que refreou a sua expansão vertical. Somos a quarta maior população urbana do mundo e não levamos em conta prioridades capazes de estimular ou inibir esse crescimento”.

“O que se deve pensar”, pergunta Novaes, “quando o próprio Conselho Municipal do Patrimônio Histórico está deixando de lado regras que dificultavam a construção de prédios e reformas vizinhas a bens tombados em São Paulo? Segundo as notícias, oito regiões da capital paulista que estavam congeladas por uma lei de 1992 já podem receber empreendimentos sem autorização prévia, inclusive a Praça da República e os corredores do Colégio Sion, em Higienópolis”.

"Não bastasse a explosão populacional, a preferência, em nossas cidades, é por apartamentos: 210 mil pessoas saíram de casas em São Paulo para edifícios residenciais, em cinco anos, e já são 37% do total de habitantes, que alegam como razão principal para isso a "segurança". Mas onde está a discussão entre segurança e formatos de viver? E onde foi parar o debate sobre a qualidade de vida, em cidades como São Paulo, onde são despejadas, a cada ano, 71,6 milhões de toneladas anuais de dióxido de carbono - dez vezes mais que há uma década?"

Novaes também fala do emaranhado de cabos que enfeia as cidades, dos bilhões gastos para conter as enchentes, do desperdício de água encanada, em plena “crise da água” (65%, em cidades como Cuiabá e Recife, 30% em São Paulo), problemas aos quais se poderia acrescentar o barulho, o alto custo de vida e o trânsito. Nenhum dos candidatos à presidência da República (2014) discute isso.

O tema da corrupção, por sua vez, levantado pelo William Waak no Globonews Painel do último sábado (13/9), parece não sensibilizar mais ninguém. Segundo o cientista político e filósofo Fernando Schuller, da UFRGS, mais de 70% dos brasileiros consideraria normal obter vantagens em pequenos ilícitos, como aceitar propina ou empregar um parente num cargo público, caso tivesse essa chance.

Os candidatos à presidência - que incluem um ex-governador e uma presidente “gerentona” - preferem duelar sobre falsos dilemas morais e indicadores macroeconômicos, deixando de lado a qualidade de vida dos cidadãos. Nesses momentos, aliás, todos prometem cuidar da Educação e da Saúde – as duas chagas mais sensíveis da sociedade brasileira – mas não  explicam com que recursos farão isso, e nem porque não o fizeram até hoje.

A grande discussão da campanha política – além do mal estar entre as duas principais candidatas em torno dos propinodutos de uma e das idiossincrasias de outra – está em quem é mais parecido com o Levy Fidelix, do Aerotrem: o Mr. Spacely Jetson, do desenho futurista, ou professor Dingle Dong, do malévolo Picapau, de Walter Lantz. Nessa linha, sempre achei o Paulo Skaf muito parecido com o Golias, o comediante – com a ressalva de que o Golias acreditava no que estava fazendo – e não me surpreenderia se o Paulo Roberto Costa saísse de Darth Vader no próximo desfile da Mangueira: “Together, we can rull the galaxy”.

Na verdade, consegui escapar da propaganda política até agora, mas  tenho me divertido com os boletins informativos sobre as promessas dos candidatos à esquerda do PT (ontem, 15/9, o partido fez manifestação em defesa do Pré-Sal, em frente à Petrobras), como: Luciana Genro, que vai aposentar todo mundo com o salário integral e o Zé Maria, que ficou de estatizar os bancos. Como diria o Zé Simão, a gente sofre, mas gosta.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Passagem


Nas últimas semanas, fui assombrado pelo fantasma da degenerescência. Durante muitas décadas, flertei com a prima adolescente dela, a decadência, que inspirou o Lobão (Decadence avec Elegance, ou ou ou ou ou ou ou ou ou); filósofos e poetas do século XIX: uma Scarlet Johansson, amoral, langorosa e sedutora. O fracasso da utopia humana ainda me parece a companhia ideal para um existencialista sessentão. "É preciso estudar volapuque (esperanto)/ é preciso estar sempre bêbedo,/ é preciso ler Baudelaire/ é preciso colher as flores/ de que falam os velhos autores", avisou Drummond (Sentimento do Mundo, 1940).

Sempre associei o fim da estrada de pedras rolando ao prazer do descanso: me via sendo empurrado num precipício pela cuidadora sueca com a qual eu teria passado os últimos dias – era a minha fantasia. Mas a Medicina me ludibriou, ao ultrapassar todas as nossas outras faculdades: a Gama Filho, a Anhembi Morumbi, a Uninove. Os médicos aprenderam a prolongar a vida, e há quem veja, nessa ética, além do encaixe perfeito no DNA das religiões, a mão sorrateira dos laboratórios, interessados em preservar não apenas a vida de pacientes terminais, mas, principalmente, as suas fontes de rendimentos, enquanto o debate entre a quantidade e a qualidade da vida perde fôlego.

Além da controvérsia e do preconceito acumulado no conceito de eutanásia (boa morte, segundo os radicais gregos), essa prática, no Brasil e em Portugal, continua proibida. O debate não prospera porque os nossos outros problemas não são poucos: a corrupção no poder público, as péssimas infraestruturas de Saúde e de Educação, as reformas política e tributária que não vêm, a escassa mobilidade urbana, a violência. Além, é claro, do pouco estímulo à reflexão. Uma velha amiga me disse, na semana passada, que pretende viver até os 100 anos, organizando seminários que ensinem as pessoas a pensar. “Boa sorte”, pensei, sem coragem de lhe dizer assim, na lata.

Por enquanto, filósofos trabalham como guardas de presídio e são enganados por empresárias de transportes em programas de auditório. Não é metáfora: aconteceu no Caldeirão do Hulk, neste fim de semana.

As religiões, além de confortar as almas, têm, todas elas, as suas próprias veredas para outros mares: bom para elas. Mas nós, pobres ateus, esses entes humildes, em nossa hora fatal, não teremos escapatória.

Há muitos anos, conheci um homem, grande e forte, que enxergava pessoas e conversava com pássaros e orquídeas. Não tinha medo de serviço: depois de perder a fazenda de café para as geadas dos anos 50, no norte do Paraná, virou mateiro do Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo. Ele me ensinou a amolar facas e a conhecer as plantas medicinais, isso nos anos 1960. Mas torcia pelo Palmeiras e a nossa prosa não prosperava. Éramos quase rivais. Eu e seu filho, um amigo tão rebelde quanto eu próprio, na época, nos achávamos à frente daquele homem rude e honrado, que formou os filhos com o seu próprio suor, e algumas chibatadas que, naquela época, nos ajudavam a distinguir o certo do errado.

Uma tora de jacarandá, o cidadão, Nelson Corá, abalado pelo tempo e pelos golpes da vida, mas sempre ereto. Doce como uma criança, teimoso como uma mula. Amado e odiado pelos filhos, como sói acontecer, nesses casos; querido e respeitado por parentes, amigos. Domou o rancor contra Deus, como Abraão do Genesis (capítulo 22), cuja disposição ao sacrifício garantiu a continuidade da espécie, a qual, de queda em queda, tinha sido praticamente condenada pelo Criador. Nelson nunca leu Temor e Tremor, de Kierkgaard, muito menos Mimesis, de Erich Auerbach. Tornou-se um dos cristãos mais fervorosos de sua comunidade, como se chamam, agora, essas paróquias católicas do interior do Brasil.


Nas últimas semanas, o jacarandá tombou. O sofrimento desse homem, no fim da vida, me pegou de jeito, embora eu já viesse pensando no meu próprio futuro, em face de situação análoga: - Quando virá o meu último lampejo de consciência? - Em que momento perderei a capacidade de decidir sobre o meu próprio ir e vir? – Como reagirão meus pares, diante de tamanho despreparo das instituições para enfrentar o desafio da medicalização da morte, operada por paradigmas tão distantes quanto a ciência, a ética da solidariedade e os interesses comerciais? - Tenebroso.

Poucos autores se debruçaram sobre esse tema (J. Gafo, Ross Kubler, L Pessini e os teólogos católicos), mas uma rápida passagem pelo texto do professor Leonard Martin, da Universidade do Ceará, me trouxe algum alento: além de distinguir a eutanásia de distanásia, ele criou dois novos termos, mistanásia e ortotanásia, que se pode traduzir por morte miserável e morte direita, reta.

A eutanásia, segundo ele, significa morte boa, suave, indolor. Na distanásia, a tecnologia médica é usada para prolongar penosa e inutilmente o processo de agonizar e morrer, encarando a morte como o grande e último inimigo. A mistanásia se resume em três situações: a grande massa de doentes e deficientes que não conseguem ingressar, efetivamente, no sistema de atendimento médico; os doentes que conseguem ser pacientes para, em seguida, se tornarem vítimas de erro médico, e os pacientes que acabam sendo vítimas de más-práticas, por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos. Qualquer semelhança...

A política nazista de purificação racial, baseada numa ciência ideologizada, é um bom exemplo da aliança entre a política e as ciências biomédicas, a serviço da mistanásia.

A ortotanásia procura respeitar o bem estar global do indivíduo, e abre pistas para as pessoas de boa vontade garantir, para todos, dignidade no seu viver e no seu morrer. Na opinião do professor, que, recentemente, foi convidado pela França e pela Alemanha para elaborar uma proposta de resolução da ONU sobre a clonagem humana, o referencial da medicina permanece predominantemente curativo. Enquanto isso perdurar, será difícil encontrar-se um caminho para a morte de pacientes crônicos e terminais que não pareça desumano, por um lado, ou descomprometido com o valor da vida humana, por outro.

“Uma luz importante advém da mudança de compreensão do que realmente significa saúde, impulsionada pela redefinição deste termo pela Organização Mundial da Saúde”, ele diz. “Em vez de ser entendida como a mera ausência de doença, propõe-se uma compreensão da saúde como bem-estar global da pessoa: físico, mental e social. Quando a estes três elementos se acrescenta, também, a preocupação com o bem-estar espiritual, cria-se uma estrutura de pensamento que permite uma revolução em termos da abordagem da morte dos pacientes terminais”.

“O ideal, neste caso, seria promover-se a integração do conhecimento científico, da habilidade técnica e da sensibilidade ética, numa única abordagem”, propõe. “Quando se entende que, no centro de tudo, está o ser humano, percebe-se, no doente crônico e terminal, um valor até então escondido ou esquecido: o respeito à sua autonomia. Ele tem o direito de saber e o direito de decidir; o direito de não ser abandonado; o direito a tratamento paliativo para amenizar seu sofrimento e dor; o direito de não ser tratado como mero objeto, cuja vida pode ser encurtada ou prolongada segundo as conveniências da família ou da equipe médica”.

A fé não livrou o velho jacarandá de sua agonia, nos dias finais, assistido por nossa impotência, por serviços hospitalares precários (de entidades privadas), pela dor e pela angústia, além do profundo desconforto diante da ansiedade de amigos e parentes próximos. Sofrimento prolongado por vários dias, equívocos e pesares. Exemplo: um médico decidiu sedá-lo para aliviar o sofrimento, mas outro não permitiu, porque o coração dele poderia não aguentar.

Perto do fim, quando a esperança de recuperação era nula, um dos médicos decidiu lançar mão de mais um procedimento ainda mais doloroso e invasivo para estender aquela agonia. Questionado, explicou seus motivos: “Vamos deixar a natureza seguir seu curso” (Fonte provável: Artigo 6º do Código de Ética Médica, de 1988, atualmente em vigor).

No dia seguinte a esse episódio, uma enfermeira desavisada entrou no quarto e, em vez de aplicar uma dose cavalar de cloridrato de tramadol no paciente vizinho, que teria uma perna amputada, injetou o medicamento naquele que não podia receber sequer uma leve sedação. Ele dormiu por 24 horas, e pouco depois de acordar, partiu em paz. Entre a revolta o cansaço do sofrimento psicológico de vários dias, a família sentiu-se consolada: Nelson Corá, o meu sogrão querido, tinha parado de sofrer.

Efeitos Colaterais do tramadol, segundo o fabricante: Transtornos cardíacos (incomuns), regulação cardiovascular (palpitação, taquicardia) – pode ocorrer em pacientes que estão fisicamente estressados. Rara: bradicardia. Transtornos vasculares (incomuns): regulação cardiovascular (hipotensão postural ou colapso cardiovascular). Essas reações adversas podem ocorrer especialmente no caso de administração intravenosa e em pacientes que estão fisicamente estressados.


Contei essa história a uma vizinha, que, ao final, comentou, simplesmente: “Deus sabe o que faz”. 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Orientação


José Raimundo de Souza*, o Zé, nasceu em Campina Grande, na Paraíba, há 48 anos. Veio para São Paulo aos 16 e se empregou como auxiliar na construção civil, como tantos outros parceiros de viagem. Manteve um restaurante de comida mineira por oito anos sem nunca ter visitado uma cidadezinha sequer de Minas Gerais. Fica perto do Morumbi Shopping, “um dos mais prestigiados de São Paulo”, como informa o folheto de vendas do condomínio Rochaverá Corporate Towers, também vizinho do centro de compras, do lado oposto, sede das tetracampeãs Basf e SAP e do laboratório Fleury, tão prestigiado que está sendo comprado pelo Fundo Gávea, de Armínio Fraga, ex-funcionário de George Soros.

Atualmente, o Zé toca uma borracharia de reparos sofisticados chamada Kauê Boutique dos Pneus, em frente ao prédio de seu antigo restaurante. A cem metros, num espaço situado entre a sede da Oracle Corp e um prédio de advogados de alto coturno (em frente ao hotel Blue Tree, do grupo Accor), ele opera, das cinco da tarde às onze da noite, uma barraca  de churrasco de gato. Tem uma lona "profissional" para os dias de chuva – hoje tão raros – e uma outra, que ele costuma estender no chão, antes de montar  as suas cinco mesinhas, sem magoar o triângulo de grama de 120 metros quadrados que nós, do bairro, resolvemos chamar de pracinha.

Conselho do Zé, escaldado em várias ações trabalhistas que lhe tiraram tudo, menos a vontade de viver: “Não tenha nada em seu nome”. Entre a borracharia e o churrasco de gato encontra-se, por enquanto, a sede da Honda. Dizem que vai mudar. A cinquenta metros, um novo empreendimento da Odebrecht, que vai combinar edifícios comerciais inteligentes e prédios residenciais.  A obra ainda está no chão, exatamente como aquele viaduto que caiu em Belo Horizonte, mas isso é maldade minha. A área da construtora termina na famosa rua Henry Dunant, do consulado norte-americano. Por ali convivem cerca de 10 taxistas que pegam o rabo da fila do shopping. Foram expulsos da ruazinha da praça por urinar na calçada, à vista dos moradores dos edifícios erguidos no local.

Além de uma confecção de artigos de couro e algumas casas hoje habitadas por ambulantes, aposentados e trabalhadores da construção civil, sobrevivem, nas ruas próximas, dois prédios de três e quatro andares: um, ocupado por uma empresa importadora de cristais; outro, por uma fábrica de biscoitos. Entre as residências que sobraram nessa antiga zona fabril de Santo Amaro, cercadas por altos empreendimentos imobiliários, encontram-se: um consultório médico de aparência duvidosa, uma casa abandonada, um salão de beleza e uma pet shop, como se chamam atualmente esses banhos públicos de cachorros que também oferecem consultas veterinárias e bugigangas voltadas a esse mercado.

O perímetro é completado pela sugestiva rua do Cancioneiro Popular, ao sul, e pelas quadras do Rivelino Sport Center, ao norte. O shopping center fica a oeste. O meu escritório, ao lado da antiga fábrica da Kibon, a leste.

Andei por essa área durante duas ou três horas, ontem (17/7), seguindo as coordenadas de duas colegas que monitoravam, direto do escritório, um rastreador de um aparelho celular que, eu, na véspera, deixei cair em algum lugar, depois de sair de casa atrasado para uma reunião, com ele no teto do carro.  O GPS começou indicando um ponto perto de onde eu moro, na esquina ocupada pela tal importadora de cristais.

Identifiquei a empresa e telefonei imediatamente. A moça que me atendeu, muito simpática, não sabia ser possível rastrear aquele tipo de celular por satélite: "Já perdi três", informou. Fiquei feliz em transmitir o pouco que sei a respeito. E contei minha história. Ninguém tinha achado um telefone, assim, assado. O ponto indicado pelo rastreador mudou de direção, aparecendo no meio de uma das quadras de society do Rivelino. Corro para lá. Ao chegar, sou informado de que o ponto já mudou novanente de lugar: agora, está no fosso que separa as quadras da rua dos fundos. Um instrutor cujos alunos estão atrasados me segue. Procuramos no mato em redor, em vão.

Nova mudança de rumo: segundo o satélite, o aparelho, agora, está na rua que passa ao lado de onde eu moro. Indago a um desabrigado que ataca a sua quentinha, sentado na sarjeta, com promessa de recompensa, caso ele, por acaso, tenha encontrado o meu telefone. Nisso, a indicação passa para a obra de reforma de uma churrascaria South Place, ao lado do Rivelino Sports Center. O meu bairro é praticamente uma Flórida, em termos de estabelecimentos comerciais. Peço licença ao gaúcho para falar com os seus operários. Nada foi encontrado. Falo com os taxistas, com a dona do salão de beleza que fuma na calçada, com o segurança do prédio ao lado. Desisto.

Volto para o escritório, frustrado, pensando no Mário Sérgio Cortella, que gosta de lembrar, em suas palestras, o momento em que as pessoas deixaram de se nortear, no fim da Idade Média, e passaram a se orientar, na era das grandes navegações. Hoje, a gente se localiza por satélites. De vez em quando, eles se desmancham lá na estratosfera e caem na cabeça da gente. 

Ao observar com calma a tela do notebook que orientou a minha busca, percebo que o software de localização conectado ao aplicativo do(s) aparelho(s) via  nuvem me remete ao rastreamento de “todos os aparelhos” do mesmo fabricante, embora essa aba não seja visível, numa primeira operação: o “caminho” para se chegar até essa tela indica “busca do celular xyz”. Só então percebo que o aparelho localizado pelo rastreador, no meu caso, pode ser o primo do meu telefone, um tablet que permaneceu em meu apartamento, o tempo todo, e que, provavelmente, foi movimentado pela auxiliar que fazia a limpeza do recinto.

Posso não ser um Amyr Klink mas, pela origem que o nome denuncia, bem que eu poderia ser um navegador melhor: saber, pelo menos, que a rotação da terra e a posição dos satélites se alteram, eventualmente, além de estudar um pouco mais o sistema de rastreamento desses devices, antes de sair por aí, feito louco, indagando pelas ruas sobre um telefone perdido.

Apesar de tudo, não posso reclamar: descobri quem é o sacana que toca forró no volume mais alto, na hora da minha siesta de domingo; que atrás do Rivelino existe uma bananeira passível de fornecer folhas para um peixe assado; que o Ângelo Máximo (ex-Jovem Guarda) agora tem dois restaurantes por quilo nas costas do shopping; que o vendedor de DVDs pirata da pracinha também opera com blue-ray; que os meus vizinhos ambulantes não são receptadores de aparelhos roubados, mas oferecem capinhas de celular a um preço bem melhor que os dos quiosques especializados e que o intelectual do momento, segundo a Caros Amigos pendurada na banca da esquina, é o Guilherme Boulos, líder dos Trabalhadores Sem Teto, a quem pretendo sugerir a criação de um braço para os sem-escritórios, já que os aluguéis, por aqui, andam pela hora da morte.

(*) Nome fictício

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Ministério do Pensamento (Argentino)

O frio me deu preguiça. Mas tenho que catar uns cavacos para o fogo, e subo o morro, onde ventos da Patagônia me trazem a última invenção de dona Cristina Kirchner, que não tem 78 ministérios, como sua vizinha, mas acaba de inventar um que, solito, vale por todos, sendo merecedor do nosso Prêmio George Orwell 2014: o Ministério do Pensamento. Tem a tarefa inefável de “estimular a percepção do ser nacional”, exaltando os “valores patrióticos” e criticando a subversão. Além, é claro, de patrocinar uns copos, pelos próximos meses.  

Eu queria estar na pele do Ricardo Forster, escolhido para o cargo. Diversão prá valer. Bem melhor do que a missão de Manuel Dorrego, que foi designado pela presidenta (Kirchner) para dirigir o recém-criado Instituto Nacional do Revisionismo Histórico Argentino e Ibero-americano. Só de photoshop para corrigir o estrabismo e as poses desengonçadas do marido, Néstor – que Deus o tenha – serão dias, talvez, anos.

O tal instituto também deve ser encarregado de revisar os títulos das obras do inspirador do casal, Juan Domingo Perón: “Moral Militar”, “Higiene Militar”, “Campanha do Alto Peru” e “Estudos Estratégicos da Frente Leste da Segunda Guerra Mundial” – todos do tempo em que ele tinha apenas uma patente de capitão. E de providenciar uma vitória na Guerra das Malvinas.

Também pode arranjar uma origem campesina para o Che, já que a versão corrente, de médico e banqueiro bem nascido, não pega  bem. Carlos Gardel vai obter uma nova certidão de nascimento, num cartório da Boca. E, claro, o Instituto vai obter provas contundentes de que o gol de Maradona contra a Inglaterra, na Copa de 86, foi de cabeça.

Já o ministro do Pensamento pode se divertir montando um interessante organograma: Secretaria do Raciocínio Lógico; Gabinete de Inspirações Utópicas; Divisão de Abstrações Transcedentais, Departamento da LateralidadeAssessoria de Funções Corticais. A Delegacia dos Insights constituiria uma rede de postos de criação coletiva, inspirados no decreto da presidente Dilma Rousseff, que instituiu, no Brasil, os Conselhos de Consulta Popular: tudo para alimentar a pipe line da imagética nacional.

Eu convidaria o ex-papa Bento XVI a indicar um inquisidor – durão – para comandar a Procuradoria dos Pensamentos Impuros. Ainda por parte da Igreja, o Padre Quevedo, da Parapsicologia, seria o Diretor de Telecinesia, aquele tipo de pensamento que move objetos e espeta agulhas no corpo de videntes, e que inspirou filmes famosos como Carrie, a Estranha, O Exorcista e O Bebê de Rosemary. O Paulo Coelho seria o publisher da Editora Nacional do Pensamento Positivo, responsável pela impressão e distribuição de livros de autoajuda por todo o território argentino.

A gestão do espaço físico do Ministério do Pensamento não pode ser desprezada: sala das tempestades cerebrais, pérgola das elucubrações sedimentares, escritório da eloquência verbal, cabine de flashes cognitivoslaboratório de questionamentos incidentais, sala de introspecção exploratória, jardim do ócio criativo (inspirado nos quintais da Microsoft e do Google), espaço (wide open) do livre pensar , além, é claro, do  salão das Verdades Absolutas. Nem o grande Timoneiro (Mao), com a revolução que levou ao Massacre da Paz Celestial,  25 anos, teria denominações tão sugestivas.

Ao definir os processos de trabalho da instituição,  eu levaria mais tempo:- Idealismo Transcendental e Dúvida Metódica: Pragmatismo? – O fluxo operacional seguiria uma estrutura linear, partindo de um Romantismo Aplicado, com Goethe, passando rapidamente pelo Iluminismo, com Molière, e pelo Niilismo, com Dostoievski, para chegar a um  Existencialismo sartriano,  mais conveniente à estruturação do pensamento argentino de hoje, convenhamos. 

Alguns expedientes poderiam incluir métodos de Hegel e Kierkgaard, para adotar, em seguida, uma filosofia religiosa inspirada na teologia da libertação, no zen-budismo ou na Cabala.  – Fossem quais fossem as diretrizes do órgão, as escolas teriam que oferecer disciplinas instigantes, como Física Quântica, Cientologia e Estudos Avançados no Preparo de PoçõesMas o papel de impressão teria que continuar sob controle do Estado.

Os adolescentes passariam por espécie de Enen do Pensamento,  onde teriam que ficar comprovados conhecimentos dos gregos antigos (Heráclito, Zenon), além de Platão e Aristóteles; Locke, Newton, Darwin, Montesquieu, Hobbes, Rosseau, Hegel, Nietzche, Kierkgaard, Shopenhauer, Adorno e Benjamin. 

Também não saberia dizer se, nos processos de criação, o método adotado como padrão pelo ministério seria artístico ou científico. Sei que, na Música,  não valeriam gêneros exóticos, como o funk e a lambada, mas o jazz clássico e o erudito seriam tolerados, além do tango, claro. O problema seria como classificar Gato Barbieri e Piazzola? – Mas essa transversalidade ficaria a cargo do Instituto do Revisionismo Histórico.

O ministério teria que definir um método transparente de aprovação e subsídio às artes teatrais e produções cinematográficas. O conteúdo teria que ser, necessariamente,  mais denso do que das peças atuais, exceto nas criações ligeiras tipicamente argentinas, como o CQC. Não sabemos se Miguel Puig, Babenco e o Fernando Meligeni seriam tolerados como parte da cultura nacional, depois de terem virado a casaca.

De uma coisa, estou certo: piadas de argentino – como a do sujeito que ficou milionário comprando um hermano pelo preço de sua autoavaliação e vendendo depois, por seu valor real, – estarão terminantemente proibidas.

Imagino com que ânimo Don Jorge Luis Borges encararia o tal Ministério do Pensamento, ou  Julio Cortazar, que, por muito menos, foi viver em Paris. Ou morrer por lá, como ele próprio teria dito. Ao saber da novidade Ernesto Sábato, certamente, assoviaria um tango e se meteria no primeiro bordel que achasse, onde estivesse. Mas e os outros? – San Martin, o herói da independência, Martin Fierro, a base de tudo, Mercedes Sosa, a cantante, o campeão mundial de box, Carlos Monzon, o pessoal do tênis – Vilas, Gabriela Sabatini -  e os cineastas, Campanella, Bemberg, Burman (O Segredo de Seus Olhos, Camila, Abraço Partido).- Como essa gente encararia o seu novo arcabouço institucional?

Nada fácil. E você, que andava resmungando diante do besteirol de praxe, agravado pelo súbito bom humor da sua presidenta, que resolveu citar Nelson Rodrigues fora de contexto, como numa entrevista para a Contigo (“a pátria de calção e chuteiras”) deve estar comemorando a notícia. Mesmo depois de ter visto, pela TV, as palmadinhas carinhosas do Renan Calheiros em nossa ídola Xuxa, de ter  sofrido com a falta de água, de luz e de sinal, com a greve de metrô, e com os protestos dos sem teto contra a prática do aluguel (eu apóio).

Mesmo que o Brasil não ganhe a Copa, agora, você tem um consolo: na Argentina, tudo pode ser muito pior.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Gaviões e passarinhos*


Se a vida fosse um jogo – War ou O Pequeno Arquiteto – tenho uma idéia do que faria para resolver alguns dos nossos problemas: em vez de cumprir pena de trabalho comunitário no asilo para pacientes de Alzheimer do Instituto Sagrada Família, no pequeno município de Cesano Boscone, perto de Milão, na Itália, o ex-primeiro ministro, Sílvio Berlusconi, que entende de jovens adolescentes do sexo feminino, seria encarregado de libertar as 200 garotas sequestradas, no dia 14 de abril, pelos militantes nigerianos do Boko Haram, parlamentando com o simpático Abubakar Shekau, líder do grupo.
 
A medida liberaria a missão canadense e os aviões enviados pela França, Estados Unidos e Reino Unido à Nigéria, para atuar, em vez disso, na crise da Ucrânia, sob comando dos judeus ortodoxos ultrarradicais que são contra a visita do papa Francisco à Terra Santa (Jerusalem). Eu não comprei ingressos para a Copa, mas daria um bom trocado para ver um daqueles barbudos enfrentando o Vladimir Putin no octógono do Dana White.

Com essa providência, talvez o Hamas e o Fatah pudessem fazer avançar as negociações de paz visando libertar a faixa de Gaza da severa vigilância israelense. Lembrando que, se Berlusconi encontrasse, no tal asilo, uma personagem como a Maria Agnesi – homenageada, hoje pelo Google (16/5), e que morreu num asilo semelhante, o Albergo Trivulzio, em 1799, o papo entre eles não teria a menor chance: Agnesi (cuja única curva era aquela que recebeu o seu nome, a Curva de Agnesi), não entendia nada de futebol, embora tenha estudado equações diferenciais e produzido o primeiro trabalho reunindo as teorias de Newton e de Leibniz (Instituizone Analitiche). Ela também publicou suas Proposiones Philosophicae, assim mesmo, em latim.
O presidente Lula, eu botaria para enfrentar as manifestações de rua que antecedem a Copa, incluindo a greve dos PMs em Pernambuco: ele é bom de palanque. Teríamos mais chances de atender ao apelo do empresário Abílio Diniz, que pede calma à moçada, já que a Copa é inevitável, sugerindo que mostremos, ao mundo, a nossa face mais nobre. Segundo o empresário, os protestos contra os estádios de dois bilhões de reais, construídos em praças com pouca tradição no futebol, como o DF do Agnelo Queiroz – mais ligado às Artes Marciais (vide Operação Shaolin) – são justos, uma vez que a nossa Saúde, enquanto isso, lembra os farrapos humanos que perambulam pelas avenidas Brasil, no Rio, e rua Helvécia, em São Paulo. Mas não é hora de reclamar,  pensa o empresário.

O conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de S. Paulo, Robson Marinho, eu chamaria para explicar, às famílias dos 300 mineiros mortos na mina de carvão de Soma, na Turquia, as causas do acidente. Ele substituiria o primeiro ministro turco, Tayyp Erdogan, que, decididamente, mostrou-se incapaz de desempenhar a tarefa a contento. Se fosse bem sucedido na missão, Marinho poderia manter a sua cadeira no TCE, embora tivesse que devolver, do mesmo jeito, os US$ 2,7 milhões das contas na Suiça. Esse dinheiro daria para se construir uns 20 Machados de Assis, novinhos em folha, inclusive em estilo rapper, se fosse o caso, e reformar umas 30 Anas Marias Bragas.
No lugar dos judeus ortodoxos que eu mandaria para a Ucrânia, o Faustão e a sua provável sucessora, Regina Casé (ex-Asdrúbal), seriam incumbidos de fazer alguns programas de auditório no local mais próximo permitido do Muro das Lamentações, em Jerusalem. Para contribuir na tarefa, destacaria o Arlindo Cruz, o Almir Guineto e o MC, Nego do Borel. Como artistas convidados, a Cláudia Leite e um trio formado por Supla, Márcio Victor Lepo Lepo e Latino. Isso emprestaria  brasilidade ao conjunto.

Na Virada Cultural, eu colocaria aquele pastor que aluga horário na Band, o Romildo Ribeiro Soares (RR Soares), junto com o Edir Macedo e com o Valdemiro Santiago num debate sobre as raízes do funk nacional, moderado pelo jornalista e apresentador, José Luís Datena. Este, certamente, falaria da influência desse mal afamado gênero nos recentes atos de violência que vitimaram inocentes em confrontos inusitados com a polícia, com bandidos (balas perdidas) e com populares inflamados por falsas denúncias publicadas nas redes sociais.
Aliás, se o Renan Calheiros e o Romero Jucá estivessem em Morrinhos 1, no Guarujá-SP, no dia 3/5, a multidão enfurecida não teria atacado a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, que morreu em consequência de ferimentos recebidos durante a bárbara agressão de uma pequena multidão histérica e ignorante. Da mesma forma, se os ilustres senadores tivessem sido convidados a dar o pontapé inicial do 1ª. Copa de Futebol da Vila Aliança, em Bangu, no dia seguinte (4/5), certamente a foto de traficantes celebrando um gol com tiros de AK-47, vestidos com a camisa da Seleção Brasileira, não teriam percorrido o mundo.

No meu jogo, a atriz, Isis Valverde, seria encarregada de escrever um livro de memórias em Aiuruoca-MG e depois, teria que desfilar nua, pelas ruas de Paraty, durante a Flip, recitando poemas de Mallarmé, ao som do Prélude à l'après-midi d'un Faune, de Claude Debussy. Nesse momento, o Cauã Reymond e o novo namorado de sua ex-mulher, Grazi Massafera - o lutador Erik Silva -, estariam acomodados em poltronas separadas, para ouvir uma leitura de poemas do nosso grande Ferreira Gullar.
O jovem negro que finalmente surpreendi espetando propaganda de encanador, chaveiro e eletricista nas caixas de correio da vizinhança – intrigante sobrevivente das epidemias de dengue, carnaval, futebol e cerveja – que, provavelmente, ainda acredita em trabalhar, estudar nas faculdades Cacique Cobra Coral e subir na vida, eu mandaria para o Canadá, com uma bolsa de estudos bancada pelos fundos partidários que pagaram os advogados de defesa dos condenados do Mensalão. 
E a bailarina, belíssima, que vi enjaulada num box de lotérica da avenida Adolfo Pinheiro (Santo Amaro-SP), anteontem, ouvindo gracejos de um velho babão, seria teletransportada para uma aula da Royal Academy of Dance, em Londres, onde moraria num pensionato, com direito a visitar a família, no Brasil, uma vez por ano, mediante verba igualmente cedida pelos fundos partidários que, no meu jogo, já teriam deixado de consumir recursos das construtoras extraídos de obras superfaturadas, financiadas com os nossos impostos que, de 1/1/2014 até o momento em que escrevi esta crônica (16/5, 16h31), somavam R$ 644,7 bilhões.

Qualquer reclamação de eventuais indigitados ou excluídos, estarei assistindo ao show da Vanusa ou a banda São José das Piranhas, na 10ª Virada Cultural, que, este ano, tem a curadoria do competente Hugo Possollo.  
(*) Título provisório, roubado do filme  Uccelatti e Uccellini, de Pier Paolo Pasolini.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Trabalhadores do Brasil

A primeira lição que o filme Getúlio, de Carla Camurati (produção), João Jardim (direção) e George Moura (roteiro), me ensinou, foi a de que não se pode percorrer os 7,1 km que separam a minha casa, perto do Morumbi Shopping, na Chácara Santo Antonio (São Paulo), e o Shopping Iguatemi, no Jardim Paulistano, no final de uma segunda-feira, de carro, em menos duas horas. Até o Tony Ramos, ator da Globo que mora no Rio de Janeiro, sabe disso. Ele mencionou o trânsito, ao falar, na abertura da seção de pré-estreia do filme:

- Estreia atrasa mesmo, é um fato – afirmou, sem rodeios. Nem parecia o sujeito atormentado que dentro de alguns minutos viria a se matar, com um tiro no coração. Uma segunda coisa me passou pela cabeça, logo de cara: a coragem dessa mulher, artista brasileira, Carla Camurati, que já nos havia legado uma Carlota Joaquina e um Dom João VI deslumbrantes, com Marieta Severo e Marco Nanini. – Quem mais – pensei – poderia remexer nesse baú sem causar rebuliço?

Como um velhote que viveu aqueles anos, ainda moleque, embora de ouvido (nossa família só tinha um rádio), posso achar que o Lacerda do Alexandre Borges merecia um espaço maior na fita; que Darcy Vargas (Clarisse Abujamra) poderia ter sido vista dançando num cabaré ou surpreendendo um vulto sinuoso nos corredores do palácio (Virginia Lane), e que a truculência de Gregório Fortunato (Thiago Justino) merecia mais fotogramas do que o seu enriquecimento ilícito. Alzirinha (Drica Lopes) está impecável.
Nos créditos, o filme propõe uma extensão de Getúlio em Juscelino Kubitscheck (presidente da República de 1956 a 1961), e uma relação direta entre a conspiração dos militares de 1954 contra Vargas e o golpe de 1964 contra João Goulart, este sim, seu herdeiro político. Faz isso sem dissecar as entranhas do conservadorismo das elites e dos quartéis, de antes e de depois, que tinham a mesma sanha que consumiu o velho presidente, mas que mudou de perfil, desde aquela época: além da aliança entre o poder econômico, a igreja e os militares, o golpe de 64 contou com o apoio de uma classe média conservadora e assustada, trunfo que a UDN de Lacerda não possuía, em 1955.

Mas se a tentação de atacar o pragmatismo dos audazes que voltaram seus refletores às paredes do Catete usando o “fácil” conteúdo dramático dos últimos dias de Vargas é quase irresistível, o impulso de valorizar a competência deles é mais forte: a descontaminação política do enredo tornou-se, a meu ver, um de seus principais atrativos. Embora desvinculado de ideologias, o filme lembra “Z”, de Costa Gravas. É tenso e vertiginoso, mas não chega a ser um thriller. No entanto, propõe uma consulta à Internet sobre a História de um Brasil que essa moçada não viveu, e desconhece.
Embora pessoalmente não tenha afinidade com nenhuma forma de populismo, penso que talvez falte, ao filme de João Jardim, um registro mais vigoroso das realizações de Vargas, no período de sua ditadura. Além de estatizar o petróleo e de fundar a base da indústria nacional, com a CSN, ele nos legou duas ou três décadas de um desenvolvimento econômico que sustentou o país até a crise do petróleo, em 1973. Aos interessados, recomendo a leitura da edição histórica da revista Exame de 2004, “A força do líder”, à venda no Mercado Livre.

O Alexandre Borges foi tão bacana comigo, anteontem (14/4), indicando o caminho mais fácil até sala de projeção, no meio da muvuca formada em torno do elenco, que eu nem deveria dizer isso, mas o Lacerda visto por você, Alexandre, um paladino da justiça, não era nada simpático, observado de perto: ex-comunista (como seu pai, Maurício), Carlos (Marx) Frederico (Engels) Lacerda foi um jornalista brilhante, um grande tribuno e, no início de sua carreira política, combateu, de fato, a corrupção.
Lacerda fez um bom governo, no Estado da Guanabara, de 1960 a 1965. Mas nunca foi o democrata que dizia haver se tornado. Entre os tons da direita que vão do autoritarismo (agudos) à hidrofobia (graves), o carioca era um barítono. Tentou derrubar Juscelino e, para muitos historiadores, foi o responsável pela renúncia de Jânio. Isso tudo, sem mencionar as articulações para o Golpe de 64.
O Alexandre Borges, bom ator, ficou bem no papel, mas o Cláudio Tovar, que fez o deputado governista, é a cara do Lacerda.  Todo o elenco do filme, aliás, foi bem escolhido, incluindo o Marcelo Médici, no papel (dramático) de Luthero Vargas. Em nenhum momento, o vi repetir, diante do pai, a frase que tornou célebre: “Cada um com seus pobrema”. A trilha original, do argentino Federico Jusid, é excepcional, assim como o figurino, de Marcelo Pires e Valéria Stefani. Gostei do “personagem” Palácio do Catete, mas eliminaria alguns fotogramas que mostram a cama do velho presidente, embora isso tenha contribuído para destacar o seu cansaço, naqueles dias. Não me cabe comentar a performance de Tony Ramos, outro bom ator.

Enfim, ver o Getúlio de João Jardim, a partir de 1º de maio, será um bom programa para todos nós, trabalhadores do Brasil, penso eu. Bem melhor que ver o Big Brother do Pedro Bial, mesmo assessorado pela gracinha da Monica Iozzi.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Eu também não mereço

Jornalista Nana Queiroz, protestando na Internet contra o resultado de pesquisa do IPEA

Concordo com o protesto das mulheres na Internet contra a premissa absurda de que pouca roupa significa um apelo ao estupro. Estou de acordo com as sociólogas que vieram juntar-se às manifestantes para sustentar que, mesmo o novo percentual de respostas apuradas pelo IPEA (26%, contra 65% divulgados anteriormente), é escandaloso. O próprio desvio do órgão – sem trocadilhos – não passa de um gesto obsceno.  Apóio e me solidarizo com essas mulheres por me sentir, eu próprio, vítima de estupro, quase que diário, enquanto cidadão. 

Ouvir o relator da Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional, Romero Jucá, dizer que a CPI da Petrobras “Combo” (ampliada para apurar irregularidades de antigos governos de São Paulo e de Pernambuco) representa um confronto político me assusta. A premissa ignora o conhecimento da sociedade de que a base do governo nunca se dispôs a investigar as irregularidades de antigos governos do PSDB em São Paulo (caso Alstom) e do PSB, em Pernambuco (porto de Suape), justamente por ter o seu rabo preso.

Vladimir Nabukov tem um conto prodigioso, La Veneziana, que surge de um súbito rompimento de uma rotina modorrenta que se sucede a cada dia, na qual, após o café da manhã vem sempre o almoço e depois deste, o jantar. Justamente depois de um desses jantares prolongados, um personagem com espírito em formação descobre, ao ouvir um velho marchand e restaurador de arte, ser possível viajar para dentro de uma pintura, tomando-se o cuidado de nela não se permanecer retido para sempre.

Mas eu vivo o oposto de um tempo que se arrasta, viscoso e pachorrento: a morte violenta faz parte do meu dia a dia, assim como os trens entupidos, os ônibus incendiados, o trânsito caótico, os efeitos simultâneos de secas e enchentes, os call centers que não funcionam, assaltos ao vivo e on line, entrega de produtos que eu não pedi, defeitos nos que pedi, prefeitos que obrigam alunos a ir para a escola envergando fardas com a sua propaganda política, outros que submetem as crianças a um rodízio de aulas por falta de carteiras e outros, ainda, que forçam os pais dos estudantes a comprar kits de material escolar mais caros que os da papelaria (e com a foto dele, prefeito). 

Queria voltar a viver daqui a cinco séculos, para ver o que historiadores como o francês Jacques Le Goff, que reescreveu a Idade Média a partir dos non-evenements (não-acontecimentos) em vez de analisar fatos como batalhas e coroações, como esses historiadores fariam para dar suporte lógico à evolução das mentalidades no Brasil de hoje, neste continente esquecido. Seria engraçado ver tudo isso pelo avesso de novo, ou seja: uma História construída por um cotidiano grotesco, sem nenhuma interrupção ou mudança causada por fato relevante (como as Diretas Já). 

Qual a relação, voltando a Romero Jucá, entre as suspeitas de propina da construtora Camargo Correa a políticos, via doleiro Yousseff – no caso dessa suspeita, uma obra orçada em R$ 2 bilhões vai custar R$ 20 bilhões – ou das relações deste mesmo doleiro com o vice-presidente da Câmara dos Deputados, André Vargas, do PT – também investigado por suspeita de favorecimento ao laboratório Labogen, junto ao Ministério da Saúde – com o que ele, Jucá, chama de “disputa política”?

As pessoas morrem por falta de atendimento médico e hospitalar e, enquanto o Conselho de Medicina denuncia o estado catastrófico dos hospitais brasileiros, o meu prefeito recomenda, pelo rádio, que, em caso de suspeita de dengue, eu procure um posto de Saúde. Trata-se, por sinal, do mesmo moço que mandou pintar umas faixas na cidade, para resolver o problema do trânsito, há cerca de um ano. No Rio, aquele outro, que instituiu multa por se jogar lixo no chão, acaba sendo filmado atirando no ar o seu próprio resíduo sólido de consumo.

O  jornal que hoje deveria trazer, como brinde, um álbum de figurinhas da Copa, não chegou. Óbvio. Reclamei por dois dias seguidos. A edição acabou sendo entregue, mas sem as figurinhas (!). O endereço fica numa rua onde funcionou, por mais de um ano, um ponto de táxi que não tinha licença para tal. Eu e meus vizinhos nos cansamos de reclamar das condições de higiene no local, onde pelo menos dois taxistas foram flagrados urinando na calçada, à luz do dia. O lugar continua sendo ponto de descarte de entulho, em frente a um shopping de classe média (daquela antiga) e a uma agência do Banco do Brasil.

Sobre a Copa, o Itaquerão vai consumindo vidas, como um videogame, embora ainda longe de sua conclusão, às vésperas do jogo que deve abrir a competição. As “arenas” Pantanal (MS), da Baixada (PR) e  Amazonia  (Manaus) foram inauguradas com problemas. As pessoas também acreditavam que os aeroportos estariam reformados, sem “tapeação”. No front das Olimpíadas de 2016, somos obrigados a conviver com as reclamações das federações olímpicas do mundo todo contra o atraso nas obras da Rio 2016.

"Como integrante da comissão de coordenação, tenho que compartilhar com vocês muitas preocupações", disse Francesco Ricci Bitti, presidente da ASOIF, aos membros do organismo durante conferência em Belek, na Turquia (Reuters, 8/4). "Estamos satisfeitos com nosso relacionamento com o comitê organizador da Olimpíada, mas o apoio do governo é tardio e insuficiente”, declarou. “O fluxo de caixa não é positivo, e o apoio está atrasado e não chega. Eles têm muito discurso, mas não dinheiro, e palavras não bastam", completou. Deixa o Lula ouvir você, Francesco Bitti: todo mundo vai saber que você não passa de um agente infiltrado do PSDB.

O ex-presidente, aliás, depois dos últimos escândalos, conclamou o PT a somar forças para combater a “massa de informações deturpadas que vem sendo divulgada pela imprensa, para prejudicar o partido nas próximas eleições”. Disse que “o governo tem que ir para cima” e “reagir com unhas e dentes” às acusações que pesam contra o ele e que podem prejudicar o seu projeto de reeleição. Sobre a ética, combate à corrupção, realizações, melhoria nas condições de vida das pessoas – no transporte, na saúde, na educação e na segurança – sobre reforma tributária, gargalos na infraestrutura ou controle de gastos públicos – nem uma palavra.

Lula referiu-se à CPI dos Correios (que gerou o Mensalão) como exemplo de ameaças que devem ser combatidas pelo partido, e eu me lembrei que, há poucos dias, tive dois  exemplos  seguidos de ser esta mais uma instituição brasileira que, a exemplo de outras, parou de funcionar (adequadamente). No entanto, os Correios estão montando, em conjunto com a Receita Federal, um sistema para fiscalizar as importações por meio de encomendas,  que saltaram de 1,2 milhão de pacotes, em janeiro e fevereiro de 2013, para 1,7 milhão, nos dois primeiros meses deste ano. Estupro só é refresco nos olhos dos outros.


Para o ministro da Fazenda, Guido Mantega, a inflação recorde dos últimos 11 anos é apenas consequência da falta de chuvas que afetou a produção de hortifrutigranjeiros. Enquanto isso, o senador Gim Argello (PTB-DF), suspeito de lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva, falsidade ideológica e peculato (conforme inquéritos do STF), foi indicado pelo governo para uma vaga no Tribunal de Contas da União. Ok, isso pode não ser um estupro propriamente dito, mas que tal, atentado ao pudor?