segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Passagem


Nas últimas semanas, fui assombrado pelo fantasma da degenerescência. Durante muitas décadas, flertei com a prima adolescente dela, a decadência, que inspirou o Lobão (Decadence avec Elegance, ou ou ou ou ou ou ou ou ou); filósofos e poetas do século XIX: uma Scarlet Johansson, amoral, langorosa e sedutora. O fracasso da utopia humana ainda me parece a companhia ideal para um existencialista sessentão. "É preciso estudar volapuque (esperanto)/ é preciso estar sempre bêbedo,/ é preciso ler Baudelaire/ é preciso colher as flores/ de que falam os velhos autores", avisou Drummond (Sentimento do Mundo, 1940).

Sempre associei o fim da estrada de pedras rolando ao prazer do descanso: me via sendo empurrado num precipício pela cuidadora sueca com a qual eu teria passado os últimos dias – era a minha fantasia. Mas a Medicina me ludibriou, ao ultrapassar todas as nossas outras faculdades: a Gama Filho, a Anhembi Morumbi, a Uninove. Os médicos aprenderam a prolongar a vida, e há quem veja, nessa ética, além do encaixe perfeito no DNA das religiões, a mão sorrateira dos laboratórios, interessados em preservar não apenas a vida de pacientes terminais, mas, principalmente, as suas fontes de rendimentos, enquanto o debate entre a quantidade e a qualidade da vida perde fôlego.

Além da controvérsia e do preconceito acumulado no conceito de eutanásia (boa morte, segundo os radicais gregos), essa prática, no Brasil e em Portugal, continua proibida. O debate não prospera porque os nossos outros problemas não são poucos: a corrupção no poder público, as péssimas infraestruturas de Saúde e de Educação, as reformas política e tributária que não vêm, a escassa mobilidade urbana, a violência. Além, é claro, do pouco estímulo à reflexão. Uma velha amiga me disse, na semana passada, que pretende viver até os 100 anos, organizando seminários que ensinem as pessoas a pensar. “Boa sorte”, pensei, sem coragem de lhe dizer assim, na lata.

Por enquanto, filósofos trabalham como guardas de presídio e são enganados por empresárias de transportes em programas de auditório. Não é metáfora: aconteceu no Caldeirão do Hulk, neste fim de semana.

As religiões, além de confortar as almas, têm, todas elas, as suas próprias veredas para outros mares: bom para elas. Mas nós, pobres ateus, esses entes humildes, em nossa hora fatal, não teremos escapatória.

Há muitos anos, conheci um homem, grande e forte, que enxergava pessoas e conversava com pássaros e orquídeas. Não tinha medo de serviço: depois de perder a fazenda de café para as geadas dos anos 50, no norte do Paraná, virou mateiro do Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo. Ele me ensinou a amolar facas e a conhecer as plantas medicinais, isso nos anos 1960. Mas torcia pelo Palmeiras e a nossa prosa não prosperava. Éramos quase rivais. Eu e seu filho, um amigo tão rebelde quanto eu próprio, na época, nos achávamos à frente daquele homem rude e honrado, que formou os filhos com o seu próprio suor, e algumas chibatadas que, naquela época, nos ajudavam a distinguir o certo do errado.

Uma tora de jacarandá, o cidadão, Nelson Corá, abalado pelo tempo e pelos golpes da vida, mas sempre ereto. Doce como uma criança, teimoso como uma mula. Amado e odiado pelos filhos, como sói acontecer, nesses casos; querido e respeitado por parentes, amigos. Domou o rancor contra Deus, como Abraão do Genesis (capítulo 22), cuja disposição ao sacrifício garantiu a continuidade da espécie, a qual, de queda em queda, tinha sido praticamente condenada pelo Criador. Nelson nunca leu Temor e Tremor, de Kierkgaard, muito menos Mimesis, de Erich Auerbach. Tornou-se um dos cristãos mais fervorosos de sua comunidade, como se chamam, agora, essas paróquias católicas do interior do Brasil.


Nas últimas semanas, o jacarandá tombou. O sofrimento desse homem, no fim da vida, me pegou de jeito, embora eu já viesse pensando no meu próprio futuro, em face de situação análoga: - Quando virá o meu último lampejo de consciência? - Em que momento perderei a capacidade de decidir sobre o meu próprio ir e vir? – Como reagirão meus pares, diante de tamanho despreparo das instituições para enfrentar o desafio da medicalização da morte, operada por paradigmas tão distantes quanto a ciência, a ética da solidariedade e os interesses comerciais? - Tenebroso.

Poucos autores se debruçaram sobre esse tema (J. Gafo, Ross Kubler, L Pessini e os teólogos católicos), mas uma rápida passagem pelo texto do professor Leonard Martin, da Universidade do Ceará, me trouxe algum alento: além de distinguir a eutanásia de distanásia, ele criou dois novos termos, mistanásia e ortotanásia, que se pode traduzir por morte miserável e morte direita, reta.

A eutanásia, segundo ele, significa morte boa, suave, indolor. Na distanásia, a tecnologia médica é usada para prolongar penosa e inutilmente o processo de agonizar e morrer, encarando a morte como o grande e último inimigo. A mistanásia se resume em três situações: a grande massa de doentes e deficientes que não conseguem ingressar, efetivamente, no sistema de atendimento médico; os doentes que conseguem ser pacientes para, em seguida, se tornarem vítimas de erro médico, e os pacientes que acabam sendo vítimas de más-práticas, por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos. Qualquer semelhança...

A política nazista de purificação racial, baseada numa ciência ideologizada, é um bom exemplo da aliança entre a política e as ciências biomédicas, a serviço da mistanásia.

A ortotanásia procura respeitar o bem estar global do indivíduo, e abre pistas para as pessoas de boa vontade garantir, para todos, dignidade no seu viver e no seu morrer. Na opinião do professor, que, recentemente, foi convidado pela França e pela Alemanha para elaborar uma proposta de resolução da ONU sobre a clonagem humana, o referencial da medicina permanece predominantemente curativo. Enquanto isso perdurar, será difícil encontrar-se um caminho para a morte de pacientes crônicos e terminais que não pareça desumano, por um lado, ou descomprometido com o valor da vida humana, por outro.

“Uma luz importante advém da mudança de compreensão do que realmente significa saúde, impulsionada pela redefinição deste termo pela Organização Mundial da Saúde”, ele diz. “Em vez de ser entendida como a mera ausência de doença, propõe-se uma compreensão da saúde como bem-estar global da pessoa: físico, mental e social. Quando a estes três elementos se acrescenta, também, a preocupação com o bem-estar espiritual, cria-se uma estrutura de pensamento que permite uma revolução em termos da abordagem da morte dos pacientes terminais”.

“O ideal, neste caso, seria promover-se a integração do conhecimento científico, da habilidade técnica e da sensibilidade ética, numa única abordagem”, propõe. “Quando se entende que, no centro de tudo, está o ser humano, percebe-se, no doente crônico e terminal, um valor até então escondido ou esquecido: o respeito à sua autonomia. Ele tem o direito de saber e o direito de decidir; o direito de não ser abandonado; o direito a tratamento paliativo para amenizar seu sofrimento e dor; o direito de não ser tratado como mero objeto, cuja vida pode ser encurtada ou prolongada segundo as conveniências da família ou da equipe médica”.

A fé não livrou o velho jacarandá de sua agonia, nos dias finais, assistido por nossa impotência, por serviços hospitalares precários (de entidades privadas), pela dor e pela angústia, além do profundo desconforto diante da ansiedade de amigos e parentes próximos. Sofrimento prolongado por vários dias, equívocos e pesares. Exemplo: um médico decidiu sedá-lo para aliviar o sofrimento, mas outro não permitiu, porque o coração dele poderia não aguentar.

Perto do fim, quando a esperança de recuperação era nula, um dos médicos decidiu lançar mão de mais um procedimento ainda mais doloroso e invasivo para estender aquela agonia. Questionado, explicou seus motivos: “Vamos deixar a natureza seguir seu curso” (Fonte provável: Artigo 6º do Código de Ética Médica, de 1988, atualmente em vigor).

No dia seguinte a esse episódio, uma enfermeira desavisada entrou no quarto e, em vez de aplicar uma dose cavalar de cloridrato de tramadol no paciente vizinho, que teria uma perna amputada, injetou o medicamento naquele que não podia receber sequer uma leve sedação. Ele dormiu por 24 horas, e pouco depois de acordar, partiu em paz. Entre a revolta o cansaço do sofrimento psicológico de vários dias, a família sentiu-se consolada: Nelson Corá, o meu sogrão querido, tinha parado de sofrer.

Efeitos Colaterais do tramadol, segundo o fabricante: Transtornos cardíacos (incomuns), regulação cardiovascular (palpitação, taquicardia) – pode ocorrer em pacientes que estão fisicamente estressados. Rara: bradicardia. Transtornos vasculares (incomuns): regulação cardiovascular (hipotensão postural ou colapso cardiovascular). Essas reações adversas podem ocorrer especialmente no caso de administração intravenosa e em pacientes que estão fisicamente estressados.


Contei essa história a uma vizinha, que, ao final, comentou, simplesmente: “Deus sabe o que faz”. 

3 comentários:

  1. Bob, texto maravilhoso e que história ! Um beijo para a Cecília e força aà família. Pior ainda seria se essa vizinha falasse que "Deus escreve certo por linhas tortas." E que poder inexorável a morte tem. A melhor definição dela está num conto húngaro que o Paulo Ronai reuniu e publicou num livro que eu tinha e ás águas levaram.Um dos personagens dizia à Morte: "Como poderia te temer se você é infalível ?" Fatalista como um bom cigano húngaro. Abraço. Enéas

    ResponderExcluir
  2. Impossível parar no trecho do Linkedin. E valeu a pena chegar ao seu blog. Obrigada por compartilhar essa história de pura agonia e que nos traz tanto para refletir. A força do jacarandá, que se reflete ainda que tombando ao chão, desta vez está aqui, no seu texto. Saudações, Leonor Bueno.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado pelo retorno, Leonor, e pela imagem do jacarandá que se renova aqui comigo. É um conforto, obrigado.

      Excluir