Leg: Sempre quis ter um boneco desses e um globo terrestre
Tenho dois motivos de inveja dos americanos do norte: o talento para as vendas – o sujeito te convence numa frase, ao entregar o cartão de visitas – e a competência dos roteiristas de cinema e de TV. Depois dos megassucessos da Netflix e HBO, a Globo traz, ao grande público, “The Good Doctor”, dos estúdios Sony/ABC. A série corre nos velhos trilhos dos doutores Ben Casey, Kildare, ER, House, e Grey’s Anathomy, mas tem um par de ingredientes orgânicos: a genialidade cândida do protagonista, Dr. Murphy (Freddie Highmore), e os adesivos contemporâneos de homoafetividade, saudabilidade, sustentabilidade e feminismo.
O ator quase não foi contratado:
tinha cara de jovem demais, mas convenceu o diretor, David Shore, o mesmo de
House. Ambos acertaram. Na produção, o protagonista parece uma reencarnação contemporânea de Jesus Cristo - exceto pelos pecadilhos que o tornam mais humano.
Os adereços autistas do personagem marcam um território livre entre a moralidade das relações convencionais – deixa disso, por favor, obrigado – e a ciência,
nua e crua, que chega na hora certa, em socorro de decisões, muito ou nada controversas.
Duvidosos, quando vistos de frente,
os pequenos milagres do Dr. Murphy funcionam como aqueles consagrados na Bíblia: água
em vinho, ressurreição, pães multiplicados. Sem lambuzeira
ideológica ou religiosa: o melanoma impossível de ser alcançado através da
aorta acaba sendo sugado por um atalho; o braço da violoncelista precisa ser
amputado, mas é da carreira que ela tira a essência de sua vida; o filho é salvo
pelo órgão transplantado do pai que o abandonou na infância.
Os efeitos da realidade aumentada que dirigem o jovem cirurgião pelos labirintos do corpo humano, em seus transes, mantém a distância espectador-espetáculo, indispensável ao corredor entre realidade e ficção.
Os efeitos da realidade aumentada que dirigem o jovem cirurgião pelos labirintos do corpo humano, em seus transes, mantém a distância espectador-espetáculo, indispensável ao corredor entre realidade e ficção.
“The Good Doctor” foi inspirada
numa produção coreana criada em 2013, “The”, com apenas 20 episódios – algo
que, possivelmente, nunca saberíamos, não fosse o sucesso da adaptação para os
estúdios da Sony e da ABC, que estreou em outubro de 2017. Que ganhou uma segunda
temporada, um ano depois. Venceu o Globo de Ouro e outros prêmios, inclusive o
coreano Seoul International Dama Awards.
A cantata número 147, “Jesus
bleibet meine freunde” (Jesus, meu amigo, numa tradução livre), conhecida como “Jesus,
Alegria dos Homens” é atribuída a Johann Sebastian Bach e reconhecida mundialmente,
mas não foi escrita, originalmente, por ele, e sim por Johann Schop, no coral
“Werde munter, mein Gemüthe” (Fique alerta, minha alma), 6º e 10º movimentos.
Bach desenhou a harmonia e o acompanhamento instrumental.
Pouco importa: a ligação entre a
cantata de Bach e a amúsica de Schop, entre as comédias de Shakeaspeare e seus inspiradores, entre as séries coreana e norte-americana não está no método, nem no talento, mas na faísca que elas conseguem entregar.
A série vai além do efeito catártico
que, certamente, pautou a escolha da Globo por exibi-la em seu canal aberto.
Não é nenhum assombro mas alguns episódios trazem a ironia saudável de antigos sucessos da TV americana, como Seinfeld e Friends. Num
dado momento, alguém sugere ao cirurgião-mentor do protagonista que leia Hemingway,
ao que ele responde que prefere Faulkner. “Ningúem gosta de Faulkner”, reage o
interlocutor.
A produção também consegue ser divertida,
apesar da temática sanguinolenta. Para nós, acostumados com péssimos serviços
de saúde, uma simples panorâmica do St. Bonaventure Hospital de San José (filmado
em Vancouver) é como um passeio na Disney. A nossa rotina de meninas e
meninos baleados na periferia, jovens estupradas, transgêneros espancados e
mulheres agredidas desaparece por milagre, diante dos dilemas
enfrentados pelo Dr. Murphy e seus colegas, tratando de pacientes de cânceres
diversos, cardíacos e mutilados.
Além do entretenimento e da
catarse, “The Good Doctor” poderia ter uma terceira função: inspirar
os nossos roteiristas de telenovelas que, por melhor que seja o tema – como o da
recente “Órfãos da Terra”, sobre o drama dos refugiados – parecem ter preguiça
de tecer suas tramas, como se duvidassem da inteligência do público. Desde “Avenida Brasil”, todas as novelas globais escorrem,
rapidamente, para o ralo de uma única, poderosa, maquiavélica, insensível e
cruel Grande Vilã. Isso é levado aos píncaros do absurdo, que se transforma em
ridículo e termina grotesco. Pobres anunciantes de frango e detergentes.
Os enredos são
ótimos, inclusivos, atuais. Mas as tramas, moles e açucaradas como o doce
português. Espero que o Dr. Shaun Murphy venha nos salvar. Além do êxtase
geralmente servido no topo de cada episódio, alguns terminam numa epifania
emocional, lembrando-nos de que, apesar das crianças baleadas, envenenadas,
atiradas pela janela ou estranguladas debaixo de nossos narizes, ainda somos humanos.