domingo, 6 de outubro de 2019

Dr Murphy, alegria dos homens

        Leg: Sempre quis ter um boneco desses e um globo terrestre

Tenho dois motivos de inveja dos americanos do norte: o talento para as vendas – o sujeito te convence numa frase, ao entregar o cartão de visitas – e a competência dos roteiristas de cinema e de TV. Depois dos megassucessos da Netflix e HBO, a Globo traz, ao grande público, “The Good Doctor”, dos estúdios Sony/ABC. A série corre nos velhos trilhos dos doutores Ben Casey, Kildare, ER, House, e Grey’s Anathomy, mas tem um par de ingredientes orgânicos: a genialidade cândida do protagonista, Dr. Murphy (Freddie Highmore), e os adesivos contemporâneos de homoafetividade, saudabilidade, sustentabilidade e feminismo.

O ator quase não foi contratado: tinha cara de jovem demais, mas convenceu o diretor, David Shore, o mesmo de House. Ambos acertaram. Na produção, o protagonista parece uma reencarnação contemporânea de Jesus Cristo - exceto pelos pecadilhos que o tornam mais humano. Os adereços autistas do personagem marcam um território livre entre a moralidade das relações convencionais – deixa disso, por favor, obrigado – e a ciência, nua e crua, que  chega na hora certa, em socorro de  decisões, muito ou nada controversas.

Duvidosos, quando vistos de frente, os pequenos milagres do Dr. Murphy funcionam como aqueles consagrados na Bíblia: água em vinho, ressurreição, pães multiplicados. Sem lambuzeira ideológica ou religiosa: o melanoma impossível de ser alcançado através da aorta acaba sendo sugado por um atalho; o braço da violoncelista precisa ser amputado, mas é da carreira que ela tira a essência de sua vida; o filho é salvo pelo órgão transplantado do pai que o abandonou na infância.  

Os efeitos da realidade aumentada que dirigem o jovem cirurgião pelos labirintos do corpo humano, em seus transes, mantém a distância  espectador-espetáculo, indispensável ao corredor entre realidade e ficção.

“The Good Doctor” foi inspirada numa produção coreana criada em 2013, “The”, com apenas 20 episódios – algo que, possivelmente, nunca saberíamos, não fosse o sucesso da adaptação para os estúdios da Sony e da ABC, que estreou em outubro de 2017. Que ganhou uma segunda temporada, um ano depois. Venceu o Globo de Ouro e outros prêmios, inclusive o coreano  Seoul International Dama Awards.

A cantata número 147, “Jesus bleibet meine freunde” (Jesus, meu amigo, numa tradução livre), conhecida como “Jesus, Alegria dos Homens” é atribuída a Johann Sebastian Bach e reconhecida mundialmente, mas não foi escrita, originalmente, por ele, e sim por Johann Schop, no coral “Werde munter, mein Gemüthe” (Fique alerta, minha alma), 6º e 10º movimentos. Bach desenhou a harmonia e o acompanhamento instrumental.

Pouco importa: a ligação entre a cantata de Bach e a amúsica de Schop, entre as comédias de Shakeaspeare e seus inspiradores, entre as séries coreana e norte-americana não está no método, nem no talento, mas na faísca que elas conseguem entregar.

A série vai além do efeito catártico que, certamente, pautou a escolha da Globo por exibi-la em seu canal aberto. Não é nenhum assombro mas alguns episódios trazem a ironia saudável de antigos sucessos da TV americana, como Seinfeld e Friends. Num dado momento, alguém sugere ao cirurgião-mentor do protagonista que leia Hemingway, ao que ele responde que prefere Faulkner. “Ningúem gosta de Faulkner”, reage o interlocutor.

A produção também consegue ser divertida, apesar da temática sanguinolenta. Para nós, acostumados com péssimos serviços de saúde, uma simples panorâmica do St. Bonaventure Hospital de San José (filmado em Vancouver) é como um passeio na Disney. A nossa rotina de meninas e meninos baleados na periferia, jovens estupradas, transgêneros espancados e mulheres agredidas desaparece por milagre, diante dos dilemas enfrentados pelo Dr. Murphy e seus colegas, tratando de pacientes de cânceres diversos, cardíacos e mutilados. 

Além do entretenimento e da catarse, “The Good Doctor” poderia ter uma terceira função: inspirar os nossos roteiristas de telenovelas que, por melhor que seja o tema – como o da recente “Órfãos da Terra”, sobre o drama dos refugiados – parecem ter preguiça de tecer suas tramas, como se duvidassem da inteligência do público. Desde “Avenida Brasil”, todas as novelas globais escorrem, rapidamente, para o ralo de uma única, poderosa, maquiavélica, insensível e cruel Grande Vilã. Isso é levado aos píncaros do absurdo, que se transforma em ridículo e termina grotesco. Pobres anunciantes de frango e detergentes.

Os enredos são ótimos, inclusivos, atuais. Mas as tramas, moles e açucaradas como o doce português. Espero que o Dr. Shaun Murphy venha nos salvar. Além do êxtase geralmente servido no topo de cada episódio, alguns terminam numa epifania emocional, lembrando-nos de que, apesar das crianças baleadas, envenenadas, atiradas pela janela ou estranguladas debaixo de nossos narizes, ainda somos humanos.  

sexta-feira, 17 de maio de 2019