segunda-feira, 19 de abril de 2010

Tchaikovsky na Cracolândia



Cheguei atrasado à estação Júlio Prestes, depois de pegar uma José Paulino recém-anestesiada pelo sábado à tarde (17/4); passei pelo fantasma da velha rodoviária, contornei o finalzinho da Duque de Caxias, mas esperei como um novaiorquino por quatro angustiantes minutos, das 16h10 até o primeiro sinal do concerto, quando finalmente transpus a cancela do estacionamento que serve, tanto à Sala São Paulo, como à Estação Pinacoteca. Retirei o par de ingressos que me aguardava na recepção em tempo de ouvir o maldito Descartes berrar nos meus ouvidos:

- Você ficou de ver as serigrafias do Andy Warhool, antes!

Pensei “deve ser por isso que os franceses adoram o Brasil”, atravessei o espaço entre os dois edifícios com passada de agrimensor, subi as escadas como um macaco e varri com os olhos os retratos das rainhas daquela década – Marilyn, ele, Jackie Kennedy – e corri de volta ao concerto que inexistiu, do momento em que botei os olhos na velha estação da Sorocabana transformada em monumento à cultura e os primeiros acordes daqueles músicos magníficos assoando seus instrumentos antes do show.

Senti o peso de olhares pouco elogiosos a meus trajes inadequados - jeans e camiseta - e acomodei-me nas dobras da poltrona, antegozando o que viria.

A abertura da Clemência de Tito, de Mozart pela OSESP, foi inatacável, assim como o regente convidado, Louis Langrée. O concerto para trompete de Hummel – apresentando o solista norueguês, Ole Antonsen – levou-me à fanfarra de Ochelsis Laureano, meu professor de Música do ginásio, em Bauru-SP, onde conheci brevemente as agruras do trompete, e de lá, ao grande Miles. O concertino de Regis Jolivet, por sua vez, foi um quadro de Picasso.

Depois do intervalo, veio a 6ª. Sinfonia, cujo primeiro movimento você não vai sossegar enquanto não ouvir de novo, e que, depois, vai lhe parecer familiar, mesmo que você nunca o tenha ouvido, como tudo o que esse russo escreveu.

Pyotr Ilich Tchaikovsky (1840-1893) tentou o suicídio depois de um casamento frustrado que durou poucos meses; foi humilhado pelo mestre que entrou para a história por definir o seu concerto em Si bemol como “impraticável” e, segundo o crítico Robert Cummins (All Music Guide), não morreu de cólera, mas da ingestão de um veneno imposto pela Escola de Jurisprudência de Moscou, que se sentiu envergonhada com um episódio que expôs a homossexualidade do compositor.

Júlio Prestes concluiu a ferrovia que trouxe o café à praça onde hoje se distribui sopa a uma centena de moradores de rua da Cracolândia. Foi primeiro paulista eleito presidente da República Federativa do Brasil, mas nunca assumiu o cargo, impedido pela Revolução de 30, de Getúlio Vargas, nosso primeiro ditador. Impossível escapar das analogias, ou da idéia do que Tchaikovsky poderia fazer pelas pessoas do lado de fora, se elas tivessem a chance de ouvi-lo.

Fernando Henrique Cardoso, primeiro presidente oriundo de São Paulo depois de Júlio Prestes, embora tenha nascido no Rio, onde Vargas cometeu o suicídio, preside o conselho da Orquestra. Agradeci a ele em silêncio, ao entrar na Sala São Paulo, ao entender a orquestra. Não concordo com muitas das idéias do ex-presidente. A primeira frase que li, aliás, no verso do programa do concerto, dizia: “A música de concerto valoriza os detalhes e sons muito suaves – assim, manter o silêncio na platéia é muito importante”. Mas a frase, ou a coincidência, não passa de detalhe, numa obra respeitável. Que alimenta muitas almas do lado de dentro da estação.

A Patética me arrancou duas lágrimas e uma vontade danada de abraçar cada um daqueles músicos, mas não me impediu de comentar, antes do início do concerto, com uma vizinha de poltrona:

- Aquela garota do cello, de blusa branca, é muito boa.
- Como é que você sabe? – ela provocou.
- Estou vendo daqui – sussurrei, como um fradinho. Ela franziu o cenho e não me dirigiu mais palavra, no que fez muito bem.