quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

 A cerveja e o queijo


Eu não conheço cerveja. Quando morei na Bélgica, experimentei algumas de dar saudade, como a Trapiste de cereja que, anos depois, deixou de ser fabricada. Mas não provei nenhuma Belgian Tripel* como a que o João Sposito produz, na Vila Penteado, um bairro paulistano que o Waze não reconhece como tal e chama de Brasilândia, vizinha famosa e antiga frequentadora do noticiário policial (hoje, não mais).

João, assim como eu – e entre outros ‘sobreviventes’ – vem da extinta indústria cultural, cujo assassinato pela tecnologia da informação e suas moiras – Internet, redes sociais e inteligência artificial – nem o Theodor Adorno previu. Ex-produtor de teatro e de vídeo para grandes empresas, ele decidiu, há três anos, mudar de ramo e fabricar boas cervejas.

O hedonismo amoral dos dias de hoje nos pegou de jeito: eu tentei permanecer na área, escrevendo sobre gastronomia, mas a poesia nunca deu dinheiro, como João Cabral percebeu, logo de cara, antes de virar diplomata; outro de nós virou mercador de vinhos; João Sposito trocou a câmera pelos tubos, panelas, fermentos, maltes e cereais. A cerveja dele tem qualidade: em pouco tempo, conquistou amigos e influenciou pessoas.

Mas veio uma rasteira da pandemia e, logo em seguida, uma segunda, com o fim de um relacionamento afetivo: subitamente, a cervejaria foi desalojada de suas instalações, com o respectivo cervejeiro. E foi assim que o artesão se despediu do bairro de classe média alta, Xispeteó, onde nasceu, cresceu e se multiplicou. O mesmo lugar em que começou a fortalecer o seu negócio. Foi tudo para o vinagre, como se diz.

O nosso personagem foi deslocado para a Vila Penteado, um bairro com nome de bolero, para tudo recomeçar. Além da nova logística, teve que reaprender muita coisa, da geografia à vizinhança local. “Você não teve medo de ser taxado de comunista?”, perguntei, depois da mudança, baseado nos novos tempos. Mas foi o próprio João que me explicou a raiz da palavra: “Comunista é tudo ou todo mundo que não pensa como eu, aqui da extrema direita”. Mas, não. Na Vila Penteado, ele notou que as pessoas preferem a democracia.

Além dessa boa surpresa, João encontrou novidades que a periferia reserva para quem se aventura para além do centro expandido da grande cidade, como os bandeirantes. – Ôpa! – foi mal. A primeira foi um show pirotécnico inusitado durante um réveillon solitário, passado na cervejaria, para economizar os recursos da reengenharia da firma.

Segundo Sposito, da varanda da nova sede (e moradia), se avista, tanto a Vila Penteado como toda a Brasilândia, até o Morro Grande, que a separa de Pirituba. Nesse caminho, não existem prédios para confundir o panorama. Na passagem do ano, pequenos núcleos de fogos de artifício se alternaram em sessões de cinco a dez minutos, como se a sequência tivesse sido programada. O cervejeiro agradeceu em silêncio.

Novos lugares e ruas frequentadas por ‘clubes da esquina’ de crianças e adolescentes chamaram a atenção do cervejeiro: Rua Parapuã, Jardim Tiro ao Pombo, Esporte Clube Vida Loka e bairro Poesia Épica. Nomes comuns, como Rua do Farol e Vitória Régia dividem espaço com a Rua Ruiva, a Hamburgueria Casa dos Bruxos e a Perfumaria Goya.

A Vila Penteado está limitada por bairros de nomes masculinos, como Elísio, Gabriel, Carlos Fernandes e Nicolas Adam, que me lembraram a Rua Negão do Jipe, que fica no Engenheiro Marsilac, no outro extremo de São Paulo e que ganhou esse nome porque o primeiro morador, um senhor preto, que tinha um jipe, costumava resgatar visitantes desavisados que terminavam atolados na lama das vizinhanças. Além de chuvoso, o bairro é o mais frio da cidade.

Outra coisa que o João estranhou foi a ausência de campainhas em Vila Penteado. Os entregadores, de secos ou molhados, se anunciam aos berros, como os antigos pregoeiros do passado e uns poucos amoladores de facas que resistiram à passagem do tempo: “Entregadoooor”, se apresentam. Até conhecerem os novos moradores e começar a gritar o nome de cada um. Vizinhos batem palmas para interagir uns com os outros – em vez de usar o Whatsapp. E, vejam vocês: muitos conversam presencialmente e se ajudam entre si.

De tudo isso fiquei sabendo durante uma entrega de cerveja em minha casa, pelo próprio dono da cervejaria que, a exemplo do consertador de cadeiras de palhinha instalado na frente da Igreja de Santo Ivo (padroeiro dos advogados), perto do Ibirapuera, responde pelas áreas de produção, marketing, logística, finanças, pesquisa e sustentabilidade – além do SAC, Serviço de Atendimento ao Cliente.

Brindamos o encontro com uma antiga Apa que já me pertencia e uma amostra grátis da Belgian Tripel que ilustra esta croniqueta. Para ninguém passar dos limites, alimentei a conversa com uma torta de batata (cortada em chips) assada no forno em camadas entremeadas por parmesão do Jair, do Jaime (Alagoa-MG) – muito fácil de fazer. A torta. O queijo do Jair demorou seis meses para chegar à forma atual (foto).

(*) Só de olhar, a Belgian Tripel já atrai, por sua coloração dourada transparente e colarinho denso de espuma cremosa. A aparência chama tanta atenção que a cerveja tem seus copos especiais para valorizar o sabor e o aroma: uma tulipa ou um goblet. Mas os protagonistas são o malte, a levedura e as notas frutadas. É possível identificar aroma de especiarias como canela, pimenta, noz-moscada e cravo, ou frutas como laranja, limão, pera e banana. Essa característica é proveniente das leveduras. Vale ressaltar, ainda, o toque de mel ou cereais que vem do malte pilsen.