domingo, 29 de julho de 2012

Antiturista


Sei que deveria estar escrevendo agora sobre a mudança da estação na Serra da Canastra, refúgio que divido há anos com o lobo guará, o tamanduá-bandeira e gente com sobrenome de gente, como o Eninho da Gasparina, o Antonio do Chico e o Ebenezer Júnior, e onde o João de Barro e o Xexéu vêm rareando desde que o tucano aprendeu a pescar os filhotes deles na casa de um e na bolsa do outro, nesse tempo em que as frutas do mato e das fazendas dão lugar à florada do inverno, sarapintando de cores o mato dourado daquelas montanhas cheias de nascentes, rios e cachoeiras.

Mas o trabalho não me tem dado trégua e eis-me enviado, hora para outra, ao outro lado do mundo, para um lugar que, no tempo do Marco Polo, se chamava Sião, no meu, Indochina (do Vietnã) e hoje abriga o Taciano Dantas, diretor financeiro da Coca-Cola para a Ásia: Prathe Thai, em sânscrito, ou Tailândia, em português, a terra do tsunami de 2004 (na costa de Andaman), da paradisíaca Phang-Nga, ao sul, onde foram filmadas as cenas de 007 contra Goldfinger; das místicas Chiang Mai e Chiang Rai, ao norte, onde repousa o Buda mais perfeito do mundo, e da histórica Kansanaburi, ao centro, que inspirou o filme A Ponte do Rio Kwai. Ko Phi Phi, do filme A Praia, fica no extremo sul e me disseram que hoje, vive lotada de turistas que andam em barcos de sete andares.

O meu primeiro olhar estrangeiro foi para os templos, belíssimos, que se sucedem como as igrejas evangélicas no Brasil, quando a nossa impressão é de que haveriam uns poucos, citados nos catálogos turísticos, como relíquias. Perguntei ao funcionário da ONU em Bangkok onde achar o que comer por ali, sendo sábado, e ele me apontou um templo vizinho, dizendo “lá dentro” com o indicador voltado para um arco feito com o braço esquerdo fechado no tórax. Passei por um ambulante de espetinhos descoloridos e fui seguindo o movimento até despertar num velório, com pessoas vestidas de preto e ar grave, como convém à circunstância.

A última despedida acontece num crematório voltado para um pátio com o aspecto de uma pequena rua, cercado por prédios menores onde se realizam as cerimônias que não tive tempo de entender: comida, sujeitos vestidos de branco e sacerdotes budistas entoando seus mantras. Uma das salas de velório devia ser do falecido que acabava de ser depositado no forno: dezenas de coroas, mas nenhuma pessoa rezando; na outra, jazia um militar, cercado pelo desdém de seus soldados; em outra, uma mulher. Continuei perambulando em busca de uma lanchonete que se tornara uma lembrança da minha primeira intenção, e no alto de uma escada, encontrei uma sala de vidro cheia de caixões em cima de mesas, cada um identificado pela foto do seu conteúdo.

Resolvi me retirar ao ser convidado a participar de uma das cerimônias, não sem antes conhecer o templo principal, à direita do crematório, e que, naquele momento, estava fechado, como tentou me explicar um guarda sonolento com cara de criança. Um outro surgiu de dentro uma casinha de apoio para me dizer, numa espécie de inglês, que a igreja abriria às quatro e fecharia às seis. Eu tinha perdido a fome, mas expliquei que buscava um lugar para comer e o sujeito praticamente me pegou pela mão e me levou por uma ruela que não se vê do pátio do templo, até me depositar numa rua transversal com muito movimento, em frente a uma lanchonete onde, por deferência, pedi um prato do dia, que se compunha de uma tigela de arroz com pedaços de galinha, um camarão praticamente vivo e alguns anéis de lula com restos de suas entranhas. Acompanhava o prato um caldo com alguma coisa boiando que engoli depressa, me sentindo um voluntário de guerra.


Mais tarde, escapei do happy hour na ONU para conhecer o interior do templo, ornado por paredes de pano bordado e presidido por um Buda dourado, tranquilo e deslumbrante. 

O Buda está em toda parte, na Tailândia, do cumprimento usual das mãos juntas sobre o peito, dos locais aos estrangeiros, às incontáveis miniaturas, inclusive uma de se pendurar no berço de recém-nascidos, estátuas e palanquins-altares que se vendem na beira das estradas, como nossas panelas de barro, bananas ouro e casinhas de cachorro.

O que não está, nem nos folhetos, nem das reportagens de turismo, é a informação de que os taxistas, inclusive em Bangkok, não falam qualquer língua ocidental, exceto, alguns, umas poucas palavras de inglês, embora sejam muito prestativos, como todos os tailandeses, o que, às vezes, chega a exasperar almas atormentadas como a minha. Eles fingem entender o que você quer, ou fazem você acreditar que o seu pedido foi atendido, mas algum tempo depois, admitem que nada do que você disse ou pretendeu foi percebido. Preciso dizer isso à Marisa Monte: gentileza demais, atrapalha.

Depois de visitar o Grande Palace, um conjunto arquitetônico de templos e palácio erguido no século 18 inspirado e em substituição a uma vila semelhante, destruída pelos birmaneses na então capital Ayuthaia, descobre-se que tanto os taxistas quanto os pilotos de tuc-tucs (versão moderna dos riquixás) devem ter feito estágio no Carnaval carioca, uma vez que se recusam a atender os turistas pelo preço indicado pelo taxímetro: depois de andar e falar muito, saquei o meu PhD em Brasil e convenci um motorista a me levar até uma estação de trem, ali perto, que também abriga uma parada da única linha de metrô da cidade, mas que passa pela região central, dos grandes hotéis.

Dois outros  passeios são ensinados pelos hotéis. No que eu fiquei, aliás, havia um festival brasileiro que durou toda a semana, com gritos de Ivete Sangalo ecoando pelos quartos até tarde da noite. Um dos passeios é, justamente, à antiga capital, Ayuthaia, que fica a 90 km da capital e oferece as ruínas da invasão birmanesa e elefantes que carregam turistas nas costas por cerca de 300 metros, como pôneis na praça central de Atibaia-SP ou em Poços de Caldas-MG. O outro é ao Templo do Tigre, em Kanchanaburi, a 184 km, onde se pode posar ao lado de alguns tigres cansados dos exercícios matinais e de barriga cheia: funciona das 12 às 15 horas. Nada é perto, na Tailândia: o trânsito é infernal, e leva-se no mínimo duas horas para ir a qualquer lugar fora de Bangkok.

A grande diversão, além da comunicação difícil, é o floating market de Ratchaburi, que eu e meus parceiros de viagem já tínhamos intenção de visitar: assim como a moeda, que você só consegue enxergar acima de 30 unidades (um dólar), os preços flutuam mais que os barcos, em canais que se parecem com  ruas e avenidas coalhadas de canoas a motor levando turistas do mundo todo, mas, principalmente, asiáticos. As lojas são administradas por famílias da comunidade local. Se alguém se interessa pela mercadoria, o lojista puxa o barco da pessoa para si e começa a negociar. Comprei um par de apitos de imitar passarinhos por 400 bath, dos quais, um parceiro de viagem, mais adiante, comprou três por apenas 100 bath. Mas consegui um conjunto de velas por 300 bath, idêntico ao que a minha colega havia comprado por 500 bath. Aleguei que não tinha mais dinheiro, o que era verdade.

A cultura local tem muitas curiosidades: a adoração do povo pelo rei (existem outdoors de Bhumibol Aduliadej por todo o país), os prostíbulos exclusivos de japoneses e os ladyboys (garotos mulheres), travestis que foram criados para agir como mulheres, geralmente os terceiros filhos de famílias que já possuiam dois meninos, para ajudar no equilíbrio emocional da casa. Há, também, os escorpiões, lavas e gafanhotos no palito, que, em Bangkok, já foram mais populares. Bons restaurantes servem uma comida assemelhada à que se encontra por aqui, mas nada parecido com as iguarias de uma Carla Pernambuco, por exemplo.

Se você diz que é do Brasil, a primeira palavra que vem é “football” (não soccer), seguida por um torto “Ronaldo”. Nosso piloteiro do floating market foi o único a dizer “Neymar”. Mas o mais me chamou a atenção foi um aviso pregado nos táxis, mostrando um circulo com uma transversal sobre um traseiro que expele uma nuvem de gás, o que quer dizer, sem meias palavras: proibido peidar.