terça-feira, 28 de abril de 2015

Brinquedo educativo


No meu velho Houaiss, brinquedo se define como objeto com que as crianças brincam, mas, também, como jogo ou passatempo, coisa que não deve ser levada a sério. Será que a mamãe do MC Brinquedo, de 13 anos, encara dessa forma as letras do filho, funkeiro, que virou um fenômeno na Internet? Numa rápida entrevista à TV, ela disse que, dentro de casa, ele não passa do Vinícius, que lhe deve obediência e respeito. Qualquer semelhança com o autor de Boquinha de Aparelho deve ser coincidência.

E como será que os pais da funkeira MC Melody estão encarando a ameaça de interdição da menina, de oito anos, pelo Ministério Público de SP, por causa do forte conteúdo erótico e de apelo sexual de suas músicas e coreografias? Será que eles cresceram dançando a Na boquinha da Garrafa, da Carla Perez, essa heroína da cultura nacional, parceira do divertido Cumpadre Wahington?

Segundo o G1 de 24/4, MC Melody está sendo investigada pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude de SP-Capital. Uma das representações do inquérito informa que suas músicas são obscenas, com alto teor sexual, acompanhadas por poses extremamente sensuais. “A menina trabalha como vocalista, dirigida por seu genitor”, diz o documento. Além dela, videoclipes de outros funkeiros mirins, como as MC Princesa e Plebéia e os MC 2K, Bin Laden, Brinquedo e Pikachu, estão sendo investigados pelo MP.

A sociedade discute a redução da maioridade penal enquanto crianças não-delinquentes se divertem, dançando funk, indo ao shopping – programa predileto de pais e mães – e brincando com seus tablets. De vez em quando, comem um salgadinho carregado de sódio, um biscoito recheado de gordura trans e um “suco” de caixinha, temperado com os melhores conservantes e aromatizantes que a química pode produzir. Andam de elevador. Alguns vivem dentro de carros blindados, outros, saracoteando no esgoto e no lixo. Uns poucos, cada vez menos, tiram a sorte grande de serem educados pela avó. Os demais, cheiram cola na Praça da Sé.

Há os que estudam nas escolas bilíngues, onde tem quadra, livros, educadores e brinquedoteca.  Mas entretenimento de verdade, como andar na chuva, subir nas árvores,  caçar macaco e tomar banho de rio, só no Xingu. Isso, por enquanto. Pela Internet, essa criançada pode saber como se divertiam seus pais: Genius, Cubo Mágico, Pega-peixe, Senhor Batata, Varetas, Cai-não-cai. O Atari, avô do Playstation IV, também está lá. Mas o Sacy e o Curupira, só nos clipes do Sítio, aquele concorrente do Castelo Rá-tim-bum!, que passava na Globo.

O carrinho de rolimã não resistiu ao skate, mas as bikes atravessaram gerações.  As bonecas-bebês viraram Barbies e Kens. Tem até um Ken humano, Justin Jedlica, que fez 90 procedimentos estéticos para ficar parecido com o boneco famoso. O Playcenter foi expulso da cidade por mau comportamento, mas a Six Flags Magic Mountain está logo alí: afinal, agora, todo mundo pode viajar. Brinquedos, portanto, não faltam. Se o Vinicius prefere brincar de outra coisa, problema dele. 

Não sou retrógrado: entendo que não dá mais para jogar bola no campinho da esquina, sem que um olheiro como Betinho Santos, que descobriu o Robinho e o Neymar, fique rondando por perto. Verdade que, para cada jogador que ganha 20 salários-mínimos, 450 outros vivem com apenas um. Aprendi no Bom Dia, Brasil. O de hoje, aliás (28/4) mostrou a Arena Pantanal, aquela da Copa, cercada de lixo (R$ 600 milhões).

Também entendo que não dá mais para brincar de salva na rua, fazer trilha na Floresta da Tijuca e pular o muro para roubar jabuticaba. Balão, virou coisa de bandido. Bola de gude, enfeite em vaso de arquiteto. A gente fazia estilingue, pipa e cerol. E pintava camiseta. Sobrava tempo. Ia espiar as meninas na zona. Nadar clandestino, na Hípica. Fabricar cartuchos para caçar nhambu: pólvora, chumbo e jornal. Azucrinar a vida dos outros, com todo tipo de armadilha.

Claro que o tempo se acelerou: o cara tem seu automóvel e já não vivemos como os nossos pais, embora o Ivan Lins não consiga ver isso. Menos tempo não é mais, nem trouxe novas alternativas: rolezinho, videogame e baile funk. Mas, concurso de chef júnior na TV, fitness infantil e concurso de miss-Ensino Básico são um pouco demais, não sei se você concorda.

A adultização da infância virou tema de blogueiro e deu até tese de mestrado, da professora Cristhiane Ferreguett, da Universidade da Bahia. Segundo ela, a linguagem publicitária, camuflada, passou a inserir-se em diversos gêneros de discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis, com claros efeitos na adultização das meninas. “A inserção precoce da criança no mundo do adulto encurta a infância”, ela diz, “até no plano fisiológico. As meninas estão entrando mais cedo no período da puberdade. Na contramão da queda da fertilidade entre as mulheres adultas, aumenta o índice de gravidez na adolescência”, adverte. O comércio, adora:  roupa de grife, sandália de salto e baton, dos oito aos oitenta.

Além de cantar no Raul Gil, garotos e garotas estão virando chefs mirins, jogadores sub-qualquer coisa, modelos esqueléticas, atores de filmes publicitários, funkeiros e chefes de quadrilha (estes, desde o meu tempo). A maioria tem celular, frequenta baladas e usa cartão de débito. Começam a beber mais cedo e sabem muito bem quanto vale um AirMax novinho, como o exibido pelo MC Brinquedo em entrevista à repórter Isabela Talamini, do portal Noisey:

“Fui entrevistar Vinícius na KL Produtora, na Zona Sul de São Paulo. A KL, assim como outras produtoras, é uma espécie de coletivo ou selo que descobre novos MCs nas ruas, e leva eles para o estúdio. Ela também é responsável por fazer os vídeos, aqueles ostentando joias, carros zero, acessórios da Oakley e mulheres gostosas. Disso tudo Vinícius entende, mas, aos 13 anos de idade, seu tema preferido é mesmo sexo”. Vinícius de Moraes, o poeta, também era louco por mulher e ninguém reclamava.

Ao mesmo tempo, tenho um sobrinho, também de 13 anos (fala, Pedrão!), estudando Confissões, de Rousseau e comparando os pontos de vista do cara com os de seu contemporâneo, Voltaire, com quem tinha uma treta. Caso o Pedro venha a se informar, por alto, sobre Marx, de um lado, e Adam Smith, de outro, e der uma olhada em Thoreau, do meu amigo Enéas Macedo Filho, vai saber mais de cultura ocidental do que eu.

Talvez isso não mude nada, em relação ao tema desta crônica. Mas eu prefiro acreditar que o Pedro, assim como Leung Pak Yue, que acabo de ver e ouvir tocando Rapsody in Blue, de Gershwin, numa gaita, e o Luca, de sete anos, que sabe onde fica Katmandu desde antes do terremoto, vão fazer mais diferença, no mundo, do que os nossos MC, Brinquedo e Melody. Desejo boa sorte a todos.