terça-feira, 8 de novembro de 2011

Bom apetite



Pierre Corneille (1606/1684), um dos bons textos da 35a. Mostra de Cinema (colagem da peça Sertorius no filme A ilusão cômica)

Saio mais leve da exibição de Frango com Ameixas, de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, que vejo na repescagem da 35ª. Mostra Internacional de Cinema, depois de ter me privado de um almoço, com enorme sacrifício da vontade. Regozijo-me por ter reconhecido, de imediato, as referências plásticas da autora, que vem dos quadrinhos: tributo mais do que justo ao cinemá que lhe emprestou a técnica narrativa, a decupagem e inúmeros planos, nos primórdios dos cartuns. O filme pareceu-me, primeiro, um conto de Maupassant com perfume de As Mil e Uma Noites; depois, uma viagem de trem fantasma, num excepcional jogo de luz e sombras.

Trata-se daquilo que os engenheiros chamariam de obra de arte. Lírico, divertido, delicado. Um desses filmes que a gente não esquece tão cedo. Prestem atenção, se tiverem a chance, no personagem Azhrael, o anjo da morte, persa. A história é sincopada, como convém aos quadrinhos, mas os demais componentes se encaixam com perfeição: as performances de Mathieu Almaric e Maria de Medeiros, o décor, as deambulações do personagem (o violinista Nasser Ali Khan), a animação do núcleo da história, retirada do roteiro original do gibi e ofertada ao espectador como o recheio de um muffin.

A produção e o elenco me abriram os olhos para um fenômeno que eu julgava ser local: as oligarquias artísticas, que imperam há décadas, na indústria cultural. Um emaranhado de parentescos e mecenatos que eu não consigo mais decifrar, e que me faz confundir a filha do Jair Rodrigues com os sobrinhos do Andrucha Waddington, o neto da Elis Regina com os filhos do Simonal, o casal Vanessa Camargo e Rafinha Bastos, a briga de Sandy com seu irmão e parceiro de dupla, o Zezé de Camargo, se não me falha a memória, moço de boa índole (filho de seu Francisco), e de ótima voz.

Em Poulet au Prunnes, que na Bahia de Gabriela e Mastroianni se chamaria Galinha com Ameixas, Isabela Rossellini, que tem o papel principal em Late Bloomers, outro grande filme da Mostra, dirigido pela filha do Costa Gravas (Julie Gravas) contracena com Chiara Mastroianni, a filha que a Catherine Deneuve queria que fosse arqueóloga (Marcelo queria que fosse professora de italiano), mas que virou atriz, e namorada de Benicio del Toro. Maria Medeiros, que faz a mulher de Mathieu Amalric, em Frango com ameixas (diretor de A Ilusão Cômica, filmado com o texto original de Corneille), também dirigiu um dos melhores curtas da colagem de idealizada por Leon Cakoff e exibida na Mostra, com o título de Mundo Invisível.


Ainda em Poulet , Maria chora ao ouvir música, como Fellini costumava fazer - informa o documentário La Visita Maravigliosa, sobre Nino Rotta, maestro e amigo do realizador de La Dolce Vita, estrelado por Mastroianni, o pai, e também exibido na Mostra. As sessões de A Visita Maravilhosa, aliás, foram complementadas com o curta de Isabela Rossellini, Os animais me Distraem. Percebem o que quero dizer?

De qualquer forma, a Mostra, para mim, foi um sucesso, porque eu comecei tarde demais (estava fora da cidade, na primeira semana) e, depois de ver o meu primeiro filme, La strada verso casa (O Caminho para Casa), suado, depois de uma sexta-feira em São Paulo (28/10) , no shopping Pompéia, pensei que a minha principal aquisição, ao dar esse mergulho, seria ter conhecido o Zaffari, supermercado gaúcho que visitei nos cinco minutos que restavam antes do encerramento das atividades do dia, à meia noite, em busca de uma água mineral. Encontrei a minha cerveja preferida, pivô de uma guerra entre fabricante e grandes redes do varejo, ao preço usual. Excelente alternativa à ditadura dos grandes supermercados e das águas minerais, embora longe do meu roteiro e dos meus hábitos.


No mundo de fato, enquanto isso, a briga dos cantores brothers era substituída pela morte do cinegrafista, o que daria lugar à visita do inimigo público, Nem, ao Pronto Socorro de São Conrado, protegido por cinqüenta de seus guarda-costas, enquanto a polícia anunciava aos quatro ventos a sua intenção de pacificar a Rocinha – sede comercial do traficante. Uma invasão parecida com a que ocorreu no Morro do Alemão, provavelmente, com todas aquelas prisões.
Ao mesmo tempo, o Uol anunciava que o UFC na Globo será narrado por Galvão Bueno, praticamente endeusado pelo público que curte esse esporte. Para evitar acidentes, o lutador, Victor Belfort, foi escalado como comentarista. O portal também informava que o médico de Michael Jackson saiu do tribunal algemado, enquanto que a família comemorava a “justiça” de um provável seguro polpudo, e os fans urravam no quintal.

Mas foi, como eu disse, uma boa Mostra, exceto, claro, pela morte de Cakoff, às vésperas de sua realização (14/10). Leon tinha, claro, suas manias, mas ergueu um edifício que tão cedo não vai ruir, ao contrário de algumas pontes e prédios residenciais de de nossas cidades. Até o Piteco (a vinheta) e a animação de Maurício de Souza se casaram bem com a 35ª. Mostra, que transformou A Caverna dos Sonhos Esquecidos, de Werner Herzog, numa de suas atrações principais, embora eu tenha achado o filme arrastado.

Não consegui ver nenhum dos russos badalados: A cor da romã, de Sayat Nova, Movimento reverso, de Stempkovsky, nenhum Sokurov (queria muito ver O Fausto) ou Paradjanov, nada. Tampouco os brazucas: À margem do Xingu, Eu receberia as piores notícias, Teus olhos meus e Amanhã nunca mais (que devem entrar no circuito comercial, espero). Nem os dois orientais que pretendia assistir, Jiro dreams of sushi e Yellow sea (este, ainda vou tentar); muito menos, os americanos Cut, Detachment, e Tudo pelo poder, outro que deve chegar aos cinemas em breve, assim como o Garoto da bicicleta, do belga Jean Pierre Dardenne. Tinha muita coisa para se ver, além disso: iranianos, islandeses, franceses, alemães, argentinos. No ano que vem, tem mais. Certo, Renata?

Vi, e recomendo: As neves de Kilimanjaro, de Robert Guediguian, A Educação, de Dirk Lutter, Late Bloomers (que tem a minha cara), Irmãs nunca mais, de Marco Bellocchio, e os já citados A estrada para casa, A ilusão cômica e Frango com ameixas, este, sem dúvida, o melhor dos que vi, e que dividiu o prêmio do público com Detachment, de Tony Kaye.


Para compensar o almoço perdido, devo tentar, hoje, a minha receita do frango com ameixas (secas, descaroçadas, em molho que leva uma colher de mel e um punhado de amêndoas em lascas douradas numa pitada de manteiga, pulverizado com gergelim). O frango será temperado com limão e alho, e refogado na cebola, com uma pitada de açafrão, antes de cozinhar numa xícara de vinho branco, outra de água fervente. Tentem e me digam o que acharam.