terça-feira, 3 de março de 2015

Tigres não são precavidos


Apesar do narcisismo do gesto que, neste caso, peço emprestado ao poeta Manuel de Barros, o ato de se colocar na pele de um juiz ou de um simples avaliador de um objeto, trabalho ou concurso tem um alto grau de sedução. Este ano, passei ao largo das especulações, expectativas e programação do Oscar, que eles chamam de maior prêmio da indústria do cinema, mas não consigo deixar de dar pitacos sobre algumas fitas premiadas. Desta vez, o evento me pareceu um tanto esvaziado, mas a qualidade de algumas produções garantiu mais uma safra de boa diversão.

Antes do tapete vermelho, vi e gostei de The Grand Budapest Hotel, de Wes Anderson (Melhor Figurino, Melhor Roteiro Original) – inspirado nos textos do suíço/brasileiro Stephan Zweig – e de Leviatã, de Andrey Zvyagintsev, que era minha aposta para a estatueta de melhor forasteiro, como comentei neste blog, há três meses; talvez por fazer piada de meus heróis antigos, leia-se Lênin, e de tiranos atuais, como o Putin e a corrupção na administração pública de vários países, digamos assim. Filme profético, em vista do genocídio dos ucranianos e o assassinato de Boris Nemtosov, no último sábado (28/2). Mas a estatueta de Filme Estrangeiro foi para o belo, cruel e delicado Ida, do polonês Pavel Pavlikowski, um oposto de Birdman, de Alejandro Iñarritu (Melhor Filme e Melhor Diretor), que estudou direção teatral com outro polonês, Ludwig Margules.

O mestre de Alejandro Iñarritu odiava as firulas hollywoodianas e se concentrava na verdade que o ator pode ser capaz de achar e transmitir. Os críticos disseram que o realizador seguiu um caminho oposto, mas, na minha opinião, a essência do filme está mantida no trabalho de ator, que vem do estômago, tanto de Michael Keaton, como de seu parceiro de set, Edward Norton. Teatro, sem deixar de ser cinema.

Keaton foi preterido como o Melhor Ator – os americanos adoram filmes de superação e Ed Redmayn, de Theory of Everything era o Jared Leto da vez (de Dallas Buyers Club) – mas o velho ator conseguiu extrair o máximo de seu personagem, uma quase paródia de si próprio, pensando no primeiro Batman da vida real, dirigido por Tim Burton, se me permitem o jogo de luz e sombras.

Iñarritu é o segundo mexican boy contemplado com o Oscar de Melhor Diretor. Sucede o compatriota Afonso Cuarón, de Gravity (Gravidade), vencedor do ano passado. Iñarritu conseguiu a proeza de rir de um arquétipo cuidadosamente renovado pelos sobrinhos do Tio Sam, desde a Guerra Fria: o super-herói de Birdman não passa de um alterego invertido do velho ator que não consegue se desvincular de seu antigo papel, o que não chega a ser uma novidade no cinema americano (Goodbye, Dr. Spock). Mas as situações ridículas de Birdman lembram mais a pantomima da luta livre mexicana do que os malabarismos dos X-men ou dos Guardiões da Galaxia.

Ironicamente, as estéticas de Ida e Birdman opõem, de um lado, uma câmera nervosa de planos profundos – inaugurada na telona por Fernando Meirelles em Cidade de Deus – e, de outro, um velho álbum da Rolleiflex de Pavlikowski, no branco e preto quadrado das telas antigas. Os dois filmes disputaram o Oscar de Melhor Fotografia. Deu Emmanuel Lubezki (de Gravity) outra vez. Mas os ângulos geniais de Luckas Zals e Riszard Lenckzewski, de Ida, ficaram na minha retina.
  
No fim, tanto o frenesi de Iñarritu – capaz de provocar náuseas nos desavisados – quanto a narrativa (modorrenta, para muitos) de Pavlikowski, levam o espectador ao mesmo velho e bom nihilismo que vai completando quase um século de vida tranquila e saudável.

Em outro filme de homens-pássaros, Whiplash (Chicote, na tradução literal, que também dá nome a um tema do Jazz), o ator principal, Miles Teller (bom), serve de escada ao seu “supporting actor”, J.K. Simmons – irretocável, no papel (Melhor Ator Coadjuvante). Numa conversa entre os dois, o personagem de Simmons, que é maestro e professor  do baterista Teller, tenta justificar seu rigor (violência) por empurrar as pessoas para além de seus próprios limites, em busca de outros pássaros, ou “Birds”, apelido de um monstro sagrado do gênero, o saxofonista Charlie Parker.

Charlie, que morreu aos 34 anos, de overdose (1955), só alcançou a sua melhor performance depois de praticar muito, para que ninguém risse dele, como aconteceu, numa seção do Kansas City Reno Club, em 1937, quando o baterista Jo Jones, da banda de Count Basie, atirou um prato de bateria a seus pés, por ele ter errado um acorde (Parker tinha 16 anos).

Assisti o trailler de Theory of Everything (A Teoria de Tudo), que levou o Oscar de Melhor Ator (principal), e fiquei satisfeito: por enquanto, a tocante história do herói da ciência vai para o final da minha fila, ao lado de Boyhood, que verei apenas como uma boa idéia. Lembrou-me o único concurso de fantasias de que participei, há quase meio século, no Bauru Tenis Clube, aos 15 anos, metido num robô de papelão revestido de papel prateado construído com a ajuda de uma tia, Maria de Lourdes, hábil costureira e responsável por minhas articulações de entretela sanfonada. Não riam: Star Trek (a série) estreou dois anos mais tarde e o primeiro Star Wars, em 1977. 

As luzes da cabeça eram alimentadas por uma bateria escondida na altura da nuca, e tive medo de levar um choque, ao mergulhar na piscina. A coragem veio com algumas doses de Cuba Libre. Levei o prêmio principal, mas queria mesmo era ser visto pelas meninas que estariam no baile da noite.

Também não vi American Sniper (Sniper Americano), dirigido pelo terceiro velho de direita mais invejado pelos intelectuais de esquerda, Clint Eastwood (o primeiro é Nelson Rodrigues e o segundo, Paulo Francis). Mas este, certamente, será um filme mais fácil de se ver, com um dilema moral mais tranquilo de se digerir. Virou blockbuster nos Estados Unidos, mas a Academia não daria mais um Oscar a um filme sobre a Guerra do Iraque como The Hart Locker (Guerra ao Terror), de Kathryn Bigelow – primeira mulher a vencer o prêmio de Melhor Direção e de Melhor Filme, em 2010. Naquele ano, o outro candidato era Avatar, de James Cameron. Até hoje me vejo na cozinha de Kathy e James enquanto eles discutem quem vai fazer o jantar.

Quando os fatos (execuções) que deram origem ao livro de Chris Kyle, American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Military History, ocorreram – de 1999 a 2006, no mesmo Iraque que, hoje, está parcialmente ocupado pelo ISIS – Jihad John era um pacato estudante da Escola Primária de Santa Maria Madalena, em Londres, a caminho da Universidade de Westminster, onde começaria a frequentar um curso de Tecnologia da Informação, em 2006. Chris Kyle lançou a sua autobiografia em 2012 e mesmo depois de seus 260 homicídios, dificilmente poderia imaginar o grau de atrocidades que uma de suas possíveis futuras vítimas  seria capaz de cometer, dez anos depois.

Essas duas faces pertencem à mesma moeda do mundo que estamos entregando aos nossos filhos e netos, e que alguns intelectuais e empresários-pensadores insistem em tentar encobrir, comparando as estatísticas atuais da violência às mortes da Primeira e da Segunda Guerra, ambas ocorridas no século passado.

“As pessoas”, eles dizem, “vivem mais”. Têm razão. Elas vão mais longe, quando não têm suas vidas interrompidas por tiros de fuzil e metralhadora, nas pacatas ruas de nossas grandes cidades, ou pelo Câncer, de cuja cura, a Ciência nem desconfia, ou pelo Alzheimer, que transforma as suas existências em pálidas sombras daquilo que elas foram um dia, desafiando as emoções de seus entes queridos. Enquanto isso, à nossa volta, vicejam o ódio, a intolerância, a miséria e a ignorância.

Talvez por isso, os nossos jovens venham prescindindo, cada vez mais, do seu próprio futuro, em troca de uns poucos momentos de glória ou de prazer. Mariposas, cantadas por Adoniran Barbosa. Rainhas de bateria afundando no lodo. Manuel de Barros queria que as borboletas governassem o mundo. Poderiam ser cavalos. Gatos são preguiçosos, elefantes, lentos e tigres, imprevidentes. Macacos pensam demais.