Apesar do narcisismo do gesto que, neste caso, peço emprestado ao poeta Manuel de
Barros, o ato de se colocar na pele de um juiz
ou de um simples avaliador de um objeto, trabalho ou concurso tem um alto grau
de sedução. Este ano, passei ao largo das especulações, expectativas e
programação do Oscar, que eles chamam de maior prêmio da indústria do cinema,
mas não consigo deixar de dar pitacos sobre algumas fitas premiadas. Desta vez, o evento me pareceu um tanto esvaziado, mas a qualidade de algumas produções garantiu mais uma safra de boa diversão.
Antes do tapete vermelho, vi e gostei de The Grand Budapest Hotel, de Wes
Anderson (Melhor Figurino, Melhor Roteiro Original) – inspirado nos textos do suíço/brasileiro
Stephan Zweig – e de Leviatã, de Andrey
Zvyagintsev, que era minha aposta para a estatueta de melhor forasteiro, como
comentei neste blog, há três meses; talvez por fazer piada de meus heróis antigos,
leia-se Lênin, e de tiranos atuais, como o Putin e a corrupção na administração
pública de vários países, digamos assim. Filme profético, em vista do genocídio
dos ucranianos e o assassinato de Boris Nemtosov, no último sábado (28/2). Mas a
estatueta de Filme Estrangeiro foi para o belo, cruel e delicado Ida, do polonês Pavel Pavlikowski, um
oposto de Birdman, de Alejandro
Iñarritu (Melhor Filme e Melhor Diretor), que estudou direção teatral com outro
polonês, Ludwig Margules.
O mestre de Alejandro Iñarritu odiava as firulas
hollywoodianas e se concentrava na verdade que o ator pode ser capaz de achar e
transmitir. Os críticos disseram que o realizador seguiu um caminho oposto, mas,
na minha opinião, a essência do filme está mantida no trabalho de ator,
que vem do estômago, tanto de Michael Keaton, como de seu parceiro de set,
Edward Norton. Teatro, sem deixar de ser cinema.
Keaton foi preterido como o Melhor Ator – os americanos
adoram filmes de superação e Ed Redmayn, de Theory
of Everything era o Jared Leto da vez (de Dallas Buyers Club) – mas o velho ator conseguiu extrair o máximo de seu
personagem, uma quase paródia de si próprio, pensando no primeiro
Batman da vida real, dirigido por Tim Burton, se me permitem o
jogo de luz e sombras.
Iñarritu é o segundo
mexican boy contemplado com o Oscar de Melhor Diretor. Sucede o compatriota
Afonso Cuarón, de Gravity (Gravidade),
vencedor do ano passado. Iñarritu conseguiu a proeza de rir de um arquétipo
cuidadosamente renovado pelos sobrinhos do Tio Sam, desde a Guerra Fria: o
super-herói de Birdman não passa de
um alterego invertido do velho ator que não consegue se desvincular de seu
antigo papel, o que não chega a ser uma novidade no cinema americano (Goodbye, Dr. Spock). Mas as situações ridículas
de Birdman lembram mais a pantomima
da luta livre mexicana do que os malabarismos dos X-men ou dos Guardiões da
Galaxia.
Ironicamente, as estéticas de Ida
e Birdman opõem, de um
lado, uma câmera nervosa de planos profundos – inaugurada na telona
por Fernando Meirelles em Cidade de Deus
– e, de outro, um velho álbum da Rolleiflex de Pavlikowski, no branco e preto quadrado das telas antigas. Os dois filmes disputaram o Oscar de Melhor
Fotografia. Deu Emmanuel Lubezki (de Gravity)
outra vez. Mas os ângulos geniais de Luckas Zals e Riszard Lenckzewski, de Ida, ficaram na minha retina.
No fim, tanto o frenesi de Iñarritu – capaz de provocar
náuseas nos desavisados – quanto a narrativa (modorrenta, para muitos) de
Pavlikowski, levam o espectador ao mesmo velho e bom nihilismo que vai completando
quase um século de vida tranquila e saudável.
Em outro filme de homens-pássaros, Whiplash (Chicote, na tradução literal, que também dá nome a um tema do Jazz), o ator principal, Miles
Teller (bom), serve de escada ao seu “supporting actor”, J.K. Simmons –
irretocável, no papel (Melhor Ator Coadjuvante). Numa conversa entre os dois, o
personagem de Simmons, que é maestro e professor do baterista Teller, tenta
justificar seu rigor (violência) por empurrar
as pessoas para além de seus próprios limites, em busca de outros pássaros, ou “Birds”,
apelido de um monstro sagrado do gênero, o saxofonista Charlie Parker.
Charlie, que morreu aos 34 anos, de overdose (1955), só
alcançou a sua melhor performance depois de praticar muito, para que ninguém
risse dele, como aconteceu, numa seção do Kansas City Reno Club, em 1937,
quando o baterista Jo Jones, da banda de Count Basie, atirou um prato de
bateria a seus pés, por ele ter errado um acorde (Parker tinha 16 anos).
Assisti o trailler de Theory
of Everything (A Teoria de Tudo), que levou o Oscar de Melhor Ator (principal), e fiquei satisfeito: por enquanto, a tocante história do herói da ciência vai para o final da
minha fila, ao lado de Boyhood, que
verei apenas como uma boa idéia.
Lembrou-me o único concurso de fantasias de que participei, há quase meio
século, no Bauru Tenis Clube, aos 15 anos, metido num robô de papelão revestido
de papel prateado construído com a ajuda de uma tia, Maria de Lourdes, hábil
costureira e responsável por minhas articulações de entretela sanfonada. Não riam: Star Trek (a série) estreou dois anos mais tarde e o primeiro Star Wars, em 1977.
As luzes da cabeça eram alimentadas por uma bateria escondida na altura da nuca, e tive medo de levar um choque, ao mergulhar na piscina. A coragem veio com algumas doses de Cuba Libre. Levei o prêmio principal, mas queria mesmo era ser visto pelas meninas que estariam no baile da noite.
As luzes da cabeça eram alimentadas por uma bateria escondida na altura da nuca, e tive medo de levar um choque, ao mergulhar na piscina. A coragem veio com algumas doses de Cuba Libre. Levei o prêmio principal, mas queria mesmo era ser visto pelas meninas que estariam no baile da noite.
Também não vi American
Sniper (Sniper Americano), dirigido pelo terceiro velho de direita mais invejado pelos intelectuais de esquerda, Clint
Eastwood (o primeiro é Nelson Rodrigues e o segundo, Paulo Francis). Mas este,
certamente, será um filme mais fácil de se ver, com um dilema moral mais tranquilo de
se digerir. Virou blockbuster nos Estados Unidos, mas a Academia não daria mais
um Oscar a um filme sobre a Guerra do Iraque como The Hart Locker (Guerra ao Terror), de Kathryn Bigelow – primeira
mulher a vencer o prêmio de Melhor Direção e de Melhor Filme, em 2010. Naquele ano, o outro candidato era Avatar, de James Cameron. Até hoje me vejo na cozinha de Kathy
e James enquanto eles discutem quem vai fazer o jantar.
Quando os fatos (execuções) que deram origem ao livro de Chris
Kyle, American Sniper: The Autobiography
of the Most Lethal Sniper in U.S. Military History, ocorreram – de 1999 a
2006, no mesmo Iraque que, hoje, está parcialmente ocupado pelo ISIS – Jihad John era um pacato
estudante da Escola Primária de Santa Maria Madalena, em Londres, a caminho da
Universidade de Westminster, onde começaria a frequentar um curso de
Tecnologia da Informação, em 2006. Chris Kyle lançou a sua
autobiografia em 2012 e mesmo depois de seus 260 homicídios, dificilmente
poderia imaginar o grau de atrocidades que uma de suas possíveis futuras vítimas seria capaz de cometer, dez anos depois.
Essas duas faces pertencem à mesma moeda do mundo que
estamos entregando aos nossos filhos e netos, e que alguns intelectuais e
empresários-pensadores insistem em tentar encobrir, comparando as estatísticas
atuais da violência às mortes da Primeira e da Segunda Guerra, ambas ocorridas no século
passado.
“As pessoas”, eles dizem, “vivem mais”. Têm razão. Elas vão
mais longe, quando não têm suas vidas interrompidas por tiros de fuzil e
metralhadora, nas pacatas ruas de nossas grandes cidades, ou pelo Câncer, de
cuja cura, a Ciência nem desconfia, ou pelo Alzheimer, que transforma as suas
existências em pálidas sombras daquilo que elas foram um dia, desafiando as
emoções de seus entes queridos. Enquanto isso, à nossa volta, vicejam o ódio, a
intolerância, a miséria e a ignorância.
Talvez por isso, os nossos jovens venham prescindindo, cada
vez mais, do seu próprio futuro, em troca de uns poucos momentos de glória ou
de prazer. Mariposas, cantadas por Adoniran Barbosa. Rainhas de bateria afundando no lodo. Manuel de Barros
queria que as borboletas governassem o mundo. Poderiam ser cavalos. Gatos são
preguiçosos, elefantes, lentos e tigres, imprevidentes. Macacos pensam demais.