quarta-feira, 16 de abril de 2014

Trabalhadores do Brasil

A primeira lição que o filme Getúlio, de Carla Camurati (produção), João Jardim (direção) e George Moura (roteiro), me ensinou, foi a de que não se pode percorrer os 7,1 km que separam a minha casa, perto do Morumbi Shopping, na Chácara Santo Antonio (São Paulo), e o Shopping Iguatemi, no Jardim Paulistano, no final de uma segunda-feira, de carro, em menos duas horas. Até o Tony Ramos, ator da Globo que mora no Rio de Janeiro, sabe disso. Ele mencionou o trânsito, ao falar, na abertura da seção de pré-estreia do filme:

- Estreia atrasa mesmo, é um fato – afirmou, sem rodeios. Nem parecia o sujeito atormentado que dentro de alguns minutos viria a se matar, com um tiro no coração. Uma segunda coisa me passou pela cabeça, logo de cara: a coragem dessa mulher, artista brasileira, Carla Camurati, que já nos havia legado uma Carlota Joaquina e um Dom João VI deslumbrantes, com Marieta Severo e Marco Nanini. – Quem mais – pensei – poderia remexer nesse baú sem causar rebuliço?

Como um velhote que viveu aqueles anos, ainda moleque, embora de ouvido (nossa família só tinha um rádio), posso achar que o Lacerda do Alexandre Borges merecia um espaço maior na fita; que Darcy Vargas (Clarisse Abujamra) poderia ter sido vista dançando num cabaré ou surpreendendo um vulto sinuoso nos corredores do palácio (Virginia Lane), e que a truculência de Gregório Fortunato (Thiago Justino) merecia mais fotogramas do que o seu enriquecimento ilícito. Alzirinha (Drica Lopes) está impecável.
Nos créditos, o filme propõe uma extensão de Getúlio em Juscelino Kubitscheck (presidente da República de 1956 a 1961), e uma relação direta entre a conspiração dos militares de 1954 contra Vargas e o golpe de 1964 contra João Goulart, este sim, seu herdeiro político. Faz isso sem dissecar as entranhas do conservadorismo das elites e dos quartéis, de antes e de depois, que tinham a mesma sanha que consumiu o velho presidente, mas que mudou de perfil, desde aquela época: além da aliança entre o poder econômico, a igreja e os militares, o golpe de 64 contou com o apoio de uma classe média conservadora e assustada, trunfo que a UDN de Lacerda não possuía, em 1955.

Mas se a tentação de atacar o pragmatismo dos audazes que voltaram seus refletores às paredes do Catete usando o “fácil” conteúdo dramático dos últimos dias de Vargas é quase irresistível, o impulso de valorizar a competência deles é mais forte: a descontaminação política do enredo tornou-se, a meu ver, um de seus principais atrativos. Embora desvinculado de ideologias, o filme lembra “Z”, de Costa Gravas. É tenso e vertiginoso, mas não chega a ser um thriller. No entanto, propõe uma consulta à Internet sobre a História de um Brasil que essa moçada não viveu, e desconhece.
Embora pessoalmente não tenha afinidade com nenhuma forma de populismo, penso que talvez falte, ao filme de João Jardim, um registro mais vigoroso das realizações de Vargas, no período de sua ditadura. Além de estatizar o petróleo e de fundar a base da indústria nacional, com a CSN, ele nos legou duas ou três décadas de um desenvolvimento econômico que sustentou o país até a crise do petróleo, em 1973. Aos interessados, recomendo a leitura da edição histórica da revista Exame de 2004, “A força do líder”, à venda no Mercado Livre.

O Alexandre Borges foi tão bacana comigo, anteontem (14/4), indicando o caminho mais fácil até sala de projeção, no meio da muvuca formada em torno do elenco, que eu nem deveria dizer isso, mas o Lacerda visto por você, Alexandre, um paladino da justiça, não era nada simpático, observado de perto: ex-comunista (como seu pai, Maurício), Carlos (Marx) Frederico (Engels) Lacerda foi um jornalista brilhante, um grande tribuno e, no início de sua carreira política, combateu, de fato, a corrupção.
Lacerda fez um bom governo, no Estado da Guanabara, de 1960 a 1965. Mas nunca foi o democrata que dizia haver se tornado. Entre os tons da direita que vão do autoritarismo (agudos) à hidrofobia (graves), o carioca era um barítono. Tentou derrubar Juscelino e, para muitos historiadores, foi o responsável pela renúncia de Jânio. Isso tudo, sem mencionar as articulações para o Golpe de 64.
O Alexandre Borges, bom ator, ficou bem no papel, mas o Cláudio Tovar, que fez o deputado governista, é a cara do Lacerda.  Todo o elenco do filme, aliás, foi bem escolhido, incluindo o Marcelo Médici, no papel (dramático) de Luthero Vargas. Em nenhum momento, o vi repetir, diante do pai, a frase que tornou célebre: “Cada um com seus pobrema”. A trilha original, do argentino Federico Jusid, é excepcional, assim como o figurino, de Marcelo Pires e Valéria Stefani. Gostei do “personagem” Palácio do Catete, mas eliminaria alguns fotogramas que mostram a cama do velho presidente, embora isso tenha contribuído para destacar o seu cansaço, naqueles dias. Não me cabe comentar a performance de Tony Ramos, outro bom ator.

Enfim, ver o Getúlio de João Jardim, a partir de 1º de maio, será um bom programa para todos nós, trabalhadores do Brasil, penso eu. Bem melhor que ver o Big Brother do Pedro Bial, mesmo assessorado pela gracinha da Monica Iozzi.