quinta-feira, 27 de março de 2014

Tudo Verdade


No país dos encoxadores e dos coxinhas, apresentadores de TV carregam vasos de cemitérios e anônimos surrupiam placas de bronze que ornam jazigos dos arquitetos da cultura nacional. Salve Monteiro Lobato. Do lado de fora, assassinos em série depositam pedaços de suas vítimas em sacos de lixo (Narizinho, Rabicó, Pica-pau) enquanto as masmorras dos castelos do reino seguem incapazes de deter os saqueadores do tesouro nacional. Neste mundo, não há humanos, mas, sim, monstros, que são absolutamente normais. O homem do tempo é um guarda-chuva e a moça do telejornal tem um olho só.
O sujeito das laqueaduras pagas pelo SUS (Asdrúbal Bentes, PMDB-PA) aparece ao lado da Rainha, antes de deixar o Castelo para cuidar da própria beleza, como pintar o cabelo da cor das asas da graúna, a la Iracema. A louraça de Jandira (Anabel Sabatini, prefeita) se alimenta da merenda das crianças e o alcaide da aldeia vizinha (Gil Arantes, Barueri) confisca as sementes dos pais, que trabalham duro no campo (kits de material escolar custam o dobro do preço na papelaria). Na floresta, soam as trombetas, raposas e javalis correm para seus esconderijos. Que monstro me mordeu? – Como é que o Cao Hamburger e seus convidados vão encarar o roteiro de sua nova série educativa? – Tenho um amigo de três anos que usa o tablet do pai, enquanto o meu, passa a maior parte do tempo desligado.
Edílson não paga a pensão e é preso, o Capetinha. Ganham tão pouco, os nossos bobos, que seus parentes mais próximos precisam enganar os coletores de tributos e, de sobra, as camareiras que rondam os jardins de seus palácios. Miss Brasil World Cities (Michele Martins), tem fuzil, carabina ponto 30 e bala de metralhadora. Mas a piada do dia é o retiro espiritual do Arauto do Rei em terras longínquas, além da cordilheira. Lá não tem rinha de galo, mas os cartéis vivem se engalfinhando: cuidado, amigo.
Na brisa do outono, as árvores se aquietam, já não andam mais, nem voam pela cidade, fustigadas pelo tempo. O ar nos transformou em pequenos deuses, seguidos por nossas sombras azuis. Mas não há mais trapezistas, nem vendedores de sorvete em lata, quebra-queixo ou amoladores de facas assobiando pelas ruas. Nem alpinistas escalando edifícios, nem caravanas do circo, com tigres enjaulados e mocinhas indianas sobre elefantes enormes, e palhaços montando camelos, altivos e modorrentos. Já não existe esse tipo de notícia, que costumava encerrar os telejornais da noite.

Os malucos que pintavam listras de camisa sobre o próprio corpo e usavam meio melão na cabeça, para viajar até Venus em sua ilusão super-sport (e que inventaram o amor) foram substituídos por outros, que saem nús, para matar, a tesouradas, os namorados de suas mães (Avenida Alessandro Marchió, Mineiros-GO). Não há mais procissões, nem enterros. Talvez por isso, os túmulos estejam abandonados. Nossos mortos, que costumavam assustar e criar causos para o Rolando Boldrin contar às crianças, já se foram, desta para outra melhor: estão mortos, mas não são estúpidos.
O Mágico de Oz promete iluminar e aquecer a Europa, ouço dizer. Parte do Acre (trocado por um cavalo) e de Rondônia foram entregues à Bolívia, também escuto. Coisa do rio Madeira e seus igarapés, que resolveram se rebelar, como aquelas rãzinhas que atrasaram a construção de Santo Antonio e Jirau. De seu Lugar Incomum, a ex-vj Didi Wagner mostra a Vitória da Samotrácia, no alto de uma escadaria no Louvre, mas as notícias dizem que, em Vitória da Conquista, foi inventado o rodízio do ensino, por falta de carteiras na escola Fidelcina Carvalho Santos. Uma coisa é uma coisa, mas não é bem assim.

Na luz da manhã, parte da boa gente da vila se reúne em torno da pista do aeroclube para ver o Padre Mutante voar. Ele ajeita seu engenho na cabeceira da estrada, suando – passou ali toda a noite – e saúda o sacristão, que chega puxando uma bezerrinha malhada, que Seu Francisco acaba de doar ao experimento: dois homens ajudam a ajeitá-la na gaiola de madeira colocada entre as traves da passarola, um tanto incrédulos. A bichinha não geme, mas seus olhos arregalados denotam medo, e surpresa.
As pessoas não têm medo, ao contrário: algumas levam balões de borracha, reco-reco e cataventos em varetas de bambú, apropriados à ocasião, além de garrafas de soda e pedaços de serpentina: querem que a coisa vá bem. O padre experimenta os varões das duas grandes asas de pano, testando sua força, e mexe no assento do eixo que se ergue sobre o triângulo das rodas de bicicleta. Examina a tensão da corrente, esfrega as mãos nas calças manchadas de graxa e se afasta alguns passos, admirando a própria obra: tudo pronto.
A pequena multidão sacoleja e logo silencia. O padre ajeita a passarola na cabeceira da pista, mira o horizonte e monta no selim. Começa a pedalar com esforço, e se precipita na média distância, ajudado pelo vento de popa; pedala mais rápido e se afasta. A uns cem metros dali, a geringonça levita um instante, e se alça no ar, como se tivesse perdido todo o peso, as grandes asas brilhando no sol, as pernas finas da bezerra penduradas no ar. O povo hurra, feliz, como se cada um tivesse criado um pedaço da engenhoca.

Lá longe, um vulto escuro despenca do pássaro de madeira: uma cesta virada ao contrário, com alguma coisa pendurada. O padre se precipita na mata, mais rápido do que se poderia esperar, visto àquela distância. As pessoas se mexem, desajeitadas, esticando o pescoço. Depois de algum tempo, ele aparece pequenino, na outra extremidade da pista, acenando com o que sobrou da camisa que usava quando subiu pelos ares. Da passarola, nem sinal.
Algumas milhas dali (quilômetros não funcionam nesse tipo de história), um moço que voltava da roça – porque tinha esquecido de levar a cabaça de água – ouve um mugido solene, vindo de uma moita de capim. Afasta o mato, e vê a bezerra malhada, uma das patas presa nos restos da gaiola de madeira. Quase sem acreditar, ele afasta as ripas que impedem o bicho de se por de pé, e percebe que ela está bem. Olha e agradece ao céu.
Pouco depois, o moço marcha feliz, puxando a vaquinha pela corda, pensando no leite e nas compras que fará com o produto da venda, dias à frente. Inflação, nunca mais. Ele vai juntar dinheiro, e comprar uma pick-up tracionada, não vai mais andar a pé. Na pick-up, vai poder levar o seu milho e a sua cana até o celeiro do Seu Asdrúbal, chefe da cooperativa local. Vendo o seu progresso, o homem vai tratá-lo com respeito, e talvez até lhe empreste o trombone que jaz abandonado no canto de sua sala. Com esse instrumento, o moço poderá ganhar mais alguns trocados, tocando nas festas das fazendas vizinhas.
E foi pensando nisso que o moço veio parar na feira da vila, levado por seus passos e sonhos, até encontrar o sujeito que acaba de lhe oferecer, pela bezerra, uma nota de cem e mais um punhado de feijões mágicos, vindos do TCU, que, segundo o cidadão, ele deve plantar perto da cerca, para, dentro de mais alguns meses, poder subir, pela árvore mágica que terá brotado alí, até a terra dos gigantes, onde vai encontrar uma galinha mágica, capaz de botar ovos de ouro e resolver todos os seus problemas para sempre.