quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Não volto pra você nunca mais

Entre os tesouros encontrados na fazenda de Sandra Moreira e JB de Souza Freitas, antigo amigo e mestre, na semana passada, estava “Você vai voltar pra mim”, de Bernardo Kucinski. Uma coletânea de contos reunidos pela Cosac Naify (2014), que me trouxe, entre outras memórias, as narrativas de Gorki – aquela mistura de ironia e singeleza – em histórias deliciosamente amargas como “Um homem muito alto”, “O garoto de Liverpool” e “A mãe rezadeira”.  

Havia outras preciosidades, além da hospitalidade dos anfitriões, pássaros e flores: cartuns do genial Nicolielo, parceiro de Souza Freitas desde os anos 60, no Diário de Bauru – que se tornou eterno há três meses; 20 mil LPs, com raridades que incluem o encontro de Mercedes Sosa com Milton Nascimento, em 1983; Fernando Pessoa na voz de João Villaret e uma coleção das primeiras gravações da Motown, com Diana Ross (The Supremes), Marvin Gaye e Smokey Robson. Sobre um balcão de farmácia do século passado, o sonoplasta opera seus dois toca-discos Dual CS505 e Phillips.

Tocamos Lili Marlene, com la Dietrich, J’ai deux amours, com Josephine Baker, Viola Quebrada, com Pena Branca e Xavantinho, a Fantasia Triunfal do Hino Nacional Brasileiro, de Gottschalk, com Eudóxia de Barros, e a Internacional Socialista – no original. Também ouvimos Gracinha Leporace – que o Sérgio Mendes nos arrebatou muito cedo – e solos de Jobim, Stan Getz e Miles Davis.

Quando a memória se esgarça, reencontros trazem a sensação do encaixe da peça-chave de um quebra-cabeça, mesmo que você não esteja numa sessão de terapia. O futuro Memorial JB de Souza Freitas, no município de Cambará-PR – sede da fazenda – ou em Lindóia-SP, onde ele nasceu e conserva outras preciosidades, guarda, além de canivetes, isolantes de cabos de alta tensão feitos de porcelana e obras de Hélio Oiticica, Elifas Andreato, Carlos Scliar – entre outros artistas – uma inusitada coleção de ‘cartazes da fome na Era Bolsonaro’.

Souza Freitas tem a estranha mania de ajudar vadios, como o daquele poema de Pessoa, “Cruzou por mim, veio a ter comigo numa rua da Baixa”, interpretado por Jô Soares no disco “A Música em Pessoa” (1985): comprou cartazes de papelão pedindo ajuda para matar a fome, e já resgatou do carrinho de recicladores, fotos de São Paulo dos anos 40 feitas por Jean Manzon (1915-1990).

Mas o que me incomodou, nessa visita, foi a obra de Kucinski. Dei de cara com o espelho estampado no meio do caminho dos contos de “Você vai voltar pra mim”: as atrocidades cometidas pelos esbirros da ditadura militar contra nós – jovens idealistas – nos chamados anos de chumbo. Principalmente agora, que a brutalidade e a ignorância voltam a ameaçar a nossa liberdade e os nossos desejos de paz, beleza e justiça.

Assombrados pelo fantasma da repetição da história, lutamos para acreditar em dias melhores, apesar da barbárie que cresce à nossa volta. Dias de sombras, perseguições, assassinatos, ideologias de ódio. Não podemos permitir, em nenhuma hipótese, a volta de uma ditadura como a de 1964. Seguimos em busca do equilíbrio, em cima da corda bamba. Não vai ser fácil, mas se o Bernardo Kucinski, – Alô, Bernardo! – conseguiu, em sua deliciosa narrativa, podemos alcançar esse mesmo objetivo. Como diria a personagem título do livro, se, hoje, estivesse entre nós: “Não volto pra você nunca mais”.