quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Tocantins


As queimadas prosseguem (14/10/2010) mas o cerrado resiste
Cobra, tatu, raposa, tamanduá bandeira, cateto, lagartos, pássaros de todos os tipos, do espertíssimo tziu à ema, bela e solene (Raes America, lista vermelha da fauna em extinção); papagaios, tucanos, gralhas, maracanãs, pássaros pretos cantores das águas do Jalapão, por onde andei, nos últimos dias. Tocantins é o Estado da senadora Kátia Abreu, líder ruralista do DEM. “A maior vitoriosa das últimas eleições”, segundo o locutor de FM de Palmas, a capital “porque, além de reeleger-se, elegeu o filho (Irajá Abreu) e uma sobrinha para o Congresso Nacional”.

Fizemos um rali, não um safári, como imaginávamos. Não tente aventurar-se, como eu, num carro pequeno, “não-traçado”, como eles dizem. Não é só pela venda que os guias do Jalapão exageram a rudeza dos caminhos, embora a maioria deles pertença às mesmas famílias, seja parceira das mesmas pousadas e possua as únicas caminhonetes que fazem passeios, a partir de Ponte Alta e Mateiros. Negocie antes, mas vá com eles. Subverta os roteiros para curtir mais banhos de cachoeira e piscinas naturais, entremeados por horas de sacolejos. As melhores pousadas podiam ser ainda melhores, se fizessem pão caseiro, pelo menos aos sábados, quando o irmão padeiro, adventista, não pode trabalhar.

Aliança, obra missionária e confissão luterana; nazareno, graça e vida, assembléia, universal, ebenézer: são muitas, as igrejas pentecostais nos municípios de Palmas, Porto Nacional, Ponte Alta, Mateiros, São Félix, todos no roteiro do Jalapão.

Eles viveriam solitários em Mateiros, os evangélicos, sem a motivação que têm hoje se, há cerca de um mês, um padre (negro) não tivesse chegado ao lugar. Na segunda-feira, 11 de outubro, a Assembléia de Deus, da tenor Marie, disputava o platô da aldeia com a igreja católica, que nem de longe lembra a cadetral de Chartres que o Paulo Coelho deve ter visitado. É um galpão de paredes simples, mal acabado. Mas a tríade de NS Aparecida, ou o trido, como diz o seu Giulio, dono da pousada local, foi uma batalha campal: de um lado, os adventistas, com seu carro de som, do outro, o padre, com óculos de tartaruga e megafone, anunciando o leilão de peixes e galinhas sacrificados pela fé católica. Campos e economias opostos, em busca da mesma indulgência: partilha/participação versus doação/caridade.

Premissas evangélicas inatacáveis vigoram nessas comunidades. Vão além do medo do inferno e da determinação no cumprimento dos compromissos assumidos: respeito, cordialidade e uma ironia mineiro-goiana intimidam o nosso sarcasmo habitual. O entusiasmo deles nos supera em muito, a nós, sulistas, como diria o ariano Márcio Garcia, a propósito dessas diferenças.

No Jalapão, a camaradagem, como definíamos solidariedade antes da Viviane Senna modernizar a filantropia, chama a atenção. Poderia ser influência dos evangélicos, mas é cultura do lugar, o menos habitado do país (1,2 pessoa por km2). Participamos de dois resgates não tiveram a tecnologia nem a cobertura da heróica sobrevivência dos mineiros chilenos, mas que foram dignos de nota.

Primeiro, ajudamos um ex-pescador cearense que já teve oito barcos e hoje cria camarões; ele, a namorada e o pai dela. Ficaram num atoleiro que media mais de 50 metros de comprimento, entre o rio Novo e as dunas de Mateiros. Media, porque a topografia local muda ao sabor do vento. Dois dias depois, a 12 km de Mateiros, tivemos ajuda de dois rapazes de Feira de Santana para tirar nosso próprio carrinho de um lamaçal com meio metro de profundidade.

O Fordinho 4.000 não-tracionado no qual eles vinham de São Félix quase caiu no mesmo buraco. Usamos enxada, foice e um macaco montado em cima de pedras, uma pesando mais de cinco quilos, mas, principalmente, braços e pernas enfiados na lama. Foram duas horas de espera e uma hora de trabalhos forçados, mas a visita ao fervedouro, ali perto, e à cachoeira do Formiga compensaram.

Os tocantinenses sentem (ainda?) esse orgulho atávico que, além da camaradagem, inclui: hospitalidade, pequi, saci, mulheres graciosas, homens de verdade, alguma ética e um sentido de pertencimento que os antropólogos enxergam na nova classe média. Além disso, eles têm fé: vão tocando suas vidas/negócios e ocupando aquele território, no que – imagino – se vêem prestando um serviço à nação.

As pessoas já esqueceram como se deu essa apropriação de terras que nós, nos anos 70, chamávamos indígenas. Em seus verdes 20 anos, a história do Estado vem tentando acomodar esses fatos e versões sob o manto do progresso rápido: a cidade que mais cresce, oportunidades para todos. Ninguém esconde as dificuldades do processo: um clima quente e seco, na maior parte do ano, uma natureza que custa a se entregar. O cerrado reage rápido às incontáveis queimadas e as plantas brotam em dois ou três dias, até no meio de estradas por onde, de vez em quando, passam caminhões e carros como o nosso.

Mas a principal componente do orgulho tocantinense que percebemos, no Estado de Kátia Abreu, pode ter vindo de uma premissa lulista: “Lembrem-se que o Tocantins era a parte esquecida de Goiás”. Pode ser. Mas a vendedora de multimarcas do novo shopping, o Capim Dourado, prefere Dourados-MS (não é trocadilho), de onde veio: “lá, as fazendeiras gastam mais”, ela diz, “ao passo que as de Palmas, só compram uma roupa se for a única peça da loja”. Segundo ela, as usineiras do Pantanal Sul (modalidade liberada pelo Zeca do PT, durante sua gestão como governador do MS) são menos novas ricas do que as boiadeiras do Tocantins.

Ao contrário do que informa o Ministério da Cultura, o nome Jalapão não vem só do radical jalapa, trepadeira nativa na região, cuja raiz é usada como remédio para o estômago, associada à palavra pão, ingerido com o chá da planta para atenuar o sabor amargo. Provamos uma cachaça feita com parte da raiz da planta e que, dependendo da dose, pode ser chamada de jalapinha, jalapa ou jalapão, o que teria dado o nome ao lugar.

Ontem (13), numa freada brusca, bati na carapaça de um tatu, que atravessara a estrada correndo. O pára-choque era de plástico, mas antes de conhecer o desfecho do acidente, a parceira ficou tão desesperada como se eu tivesse atropelado uma criança. Eu contava esse história ao frentista de um posto de gasolina de Porto Nacional, horas mais tarde, quando um colega dele se acercou. Tive que admitir ter procurado pelo bicho para ver se aproveitava a caça. Esse é o Tocantins.

“Eles queimam pra plantar?”, pergunto a seu Paulo, dono de um bar feito de pau-a-pique, em frente à entrada das Dunas. “Eles queimam para atentar”, ele responde, e eu custo a entender. “Botar boi, forçar o capim dourado a brotar mais em cima, caçar a ema. Tudo é desculpa”, ele diz. “Queimam por maldade”. O bar tem uma pequena mesa de sinuca sob um trançado de palha, só vende cerveja ou cachaça. Na parede, um cartaz previne: “Fiado, só para maiores de 100 anos, acompanhados pelos avós”.

Enquanto isso, em Palmas, os gaúchos donos da melhor churrascaria e da melhor pizzaria da cidade sofrem para servir rúcula e salada de alface em seus estabelecimentos. Mas o maior problema é o lixo que se acumula nas ruelas escondidas atrás das grandes avenidas e rotatórias da capital planejada. No Estado dos empreendedores e da justiça social, como diz o slogan, o progresso, como cerca de 20% do eleitorado brasileiro já descobriu, não precisaria abrir mão do aproveitamento racional dos recursos naturais.

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