segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Notícias do lado de cá


Corro o risco desta mensagem se parecer com aqueles bilhetes de amantes do século XVIII, mas, sendo você, meu amigo/amiga esse/essa famoso/famosa âncora da TV, prefiro parecer ridículo a expor a sua identidade e o seu modo de pensar, neste espaço público. Isso poderia prejudica-lo/a nesta aldeia em que trabalhamos e vivemos (assim mesmo, nesta ordem), e que, nestas eleições, votou amplamente contra o governo - reeleito, embora chamuscado e, quem sabe, renovado - embora nisto, me custe acreditar.
  
Li, ontem (26/10), no intervalo entre dois dos poucos filmes desta 38ª Mostra de Cinema que consegui ver – Sangue Azul, de Lírio Ferreira, e Um pombo no galho refletindo sobre a existência, de Roy Andersson – o artigo do sociólogo Jessé de Souza, da UFF, no caderno Aliás do Estadão, também de ontem, que você me recomendou: “O caminho da inclusão”.  Seguem algumas observações.

A tese do sociólogo tem piada, como dizem os portugueses, o que deve ter chamado a sua atenção: de fato, nos últimos 12 anos, fomos governados pelas forças derrotadas em 1964, que representavam os nossos anseios por uma sociedade mais inclusiva, mas que não detinha o efetivo controle das práticas econômica e sociais vigentes no país.

“A fragilidade”, diz o articulista, “das conquistas obtidas por esse modelo de governo é explicada pela manutenção da força social e econômica do modelo anterior". Para o sociólogo, o mote do Estado ineficiente e corrupto, contraposto à suposta virtude e eficiência do mercado representa “a única bandeira de legitimação do modelo excludente de uma sociedade ainda detém o poder real”. Para ele, esse é “o único pretexto por meio dos quais os interesses privados do 1% mais rico podem ser travestidos do suposto interesse geral”.

Lembro aqui uma das frases típicas do comandante geral das referidas forças que nos governam, há 12 anos, ao discursar, enquanto presidente, na inauguração de um estabelecimento de conhecida rede varejista: "Quanto mais tempo a gente der de prestação e quanto mais barata a prestação, mais as pessoas vão poder comprar, porque no meio da parte mais pobre da população, eles não têm a preocupação se vai custar cinco ou seis vezes mais" (sic).

Ora, se o modelo que representa os anseios por uma sociedade mais inclusiva chegou ao poder pela via democrática, preconizando o reformismo, em vez da substituição do Estado burguês pela ditadura do proletariado, rumo à socialização dos meios de produção que nos conduziria à sonhada anarquia, por que razão o sociólogo quer atribuir os desvios do atual governo  – que ele chama de fragilidades – aos vícios de uma classe dominante que permanece no poder?

Os “progressistas”, que eu, a propósito, não reconheço como tal, costumam desdenhar das críticas aos notórios casos de desvios de patrimônio público cometidos pelo tal modelo inclusivo, nos últimos 12 anos. Para esses “progressistas”, como você sabe, as críticas não passam de “moralismo burguês”. 

Possivelmente, no inconsciente deles,todas as mazelas dos governos “populares” são justa vingança contra a opressão da classe dominante ou, no caso dos bem nascidos, como nosso ídolo, Ernesto Lynch, representam uma expropriação legítima da riqueza para redistribuição aos menos dotados: coisa de Saint Simon, ou de Guilherme Tell, dependendo do grau de escolaridade do interlocutor.

Não concordo com a simplificação de Jessé de Souza ao atribuir o caráter de ladroagem ao jogo especulativo do mercado de capitais. A Universidade Federal Fluminense não vem se comunicando com a Fundação Getúlio Vargas. Mas ouso cometer o mesmo erro ao afirmar que um líder das massas capaz de congratular-se com uma empresa privada que explora a boa fé e as carências do consumidor de baixa renda não tem “moral” para conduzir um projeto de poder voltado à redução das desigualdades.

Quem são, afinal, os parceiros e principais beneficiários da expropriação dos recursos que fluem para o Estado burguês, advindos dos impostos da “elite” que votou contra o atual modelo “inclusivo” de governo? (quase 50% dos brasileiros): – O povo? - Recursos destinados pelo atual governo ao Bolsa Família somaram R$ 24,5 bilhões, em 2013. Somente o orçamento da refinaria Abreu e Lima – apontado como um dos principais focos de desvios pela Operação Lava Jato – saltou R$ 2 bilhões para R$ 18 bilhões.

Talvez o nosso grande líder não importe com o fato de uma obra pública custar cinco, seis ou dez vezes o seu valor real (como não importa, para o pobre, segundo ele, o número de prestações que ele tem a pagar). Mas será que essa diferença vai parar no bolso dos 99% que, segundo o sociólogo Jessé de Souza, não têm acesso à riqueza? - Não é bem o que as investigações da Polícia Federal e da Justiça vêm indicando.

Que tipo de reformismo, afinal, vem a ser este, que, para manter-se no poder, permite o desvio de alimentos, remédios e recursos produzidos por milhões de cidadãos que pagam seus impostos em dia? - Será que a decisão de destinar bilhões do BNDES – um banco público – aos “campeões” do empresariado nacional pode ser considerada como parte dos “limites”  impostos ao modelo inclusivo pela sociedade conservadora? 

Segundo Jessé de Souza, “o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de corrupção organizada, começando pelo controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime: o funcionário do Estado corrupto e o batedor de carteira, enquanto o especulador de Wall Street (matriz da Avenida Paulista), que frauda balanços  e arruína o acionista minoritário da bolsa, ganha bônus milionários e sai na capa da revista Time”. Cândido. 


Jessé de Souza insiste em afirmar que, no Brasil, 1% detêm 70% do PIB e 30% referem-se aos salários dos outros 99%. Inverídico. E que, nas sociedades capitalistas mais dinâmicas, como França e Alemanha, essa relação é inversa. Esquece-se, convenientemente, de que as Leis contra a corrupção, nesses países, incluem, além de severas penas de prisão, multas de valor exorbitante e penhora de bens dos condenados. Que um deputado, na Suécia do cineasta citado acima (Roy Andersson), vive num apartamento funcional de 40 m2, servido por lavanderia comunitária, sem empregada. E com uma regra clara: “Deixe tudo limpo”. Nenhum parlamentar sueco tem direito a carro e muito menos, a motorista.

O sociólogo também diz que o brasileiro “é tolo por suportar uma transferência de renda incompatível com o que ocorre na Europa, por meio do superfaturamento de bens e serviços, além de juros muito altos”. Esquece-se, mais uma vez, convenientemente, que o principal lider do modelo inclusivo que governa o país há 12 anos sempre desprezou, publicamente, a educação formal, considerada, pelas sociedades avançadas, como a principal, senão a única, ferramenta de libertação da parcela mais pobre da sociedade. 

Esperto, esse líder do modelo inclusivo tem uma notória capacidade de transformar pequenos deslizes de seus opositores em chavões facilmente compreensíveis pelo “povão”, e que, depois de repetidos à exaustão, acabam ganhando uma dimensão real, posteriormente transformada em teses por seguidores apaixonados, mantidos pelas universidades públicas (como o autor do artigo recomendado por você).

Segundo o sociólogo Jessé de Souza, aliás, “o Estado é o único lugar onde a corrupção ainda é visível e, como tal, tem alguma possibilidade do controle real”. Isso, meu caro amigo, não é poesia, nem dialética.Trata-se do mais absoluto delírio. Assim como só pode ser insano afirmar que “os protestos de junho de 2013 foram promovidos pela classe média, sócia menor do 1% de endinheirados que defende os privilégios de uma pequena minoria”. 

Talvez você, proprietário de um carro confortável, conquistado com mérito e esforço próprios – não esteja habituado ao transporte público aqui da aldeia. Eu, sim. Posso garantir que as manifestações de junho não foram massa de manobra da elite branca.

Não parei de ler o artigo do Jessé de Souza nem quando ele disse que "a oposição reflete a raiva ancestral de uma sociedade escravocrata, acostumada a um exército de servidores cordatos e humilhados, o que explicaria a tolice dos que compram a idéia absurda de mais mercado no país mais injusto e concentrado do mundo”. Exemplos (meus) dessa “tolice”: obras públicas superfaturadas, beneficiando empreiteiras patrocinadoras de campanhas eleitorais; manutenção artificial do nível de emprego por meio de privilégios para um determinado setor da economia, em detrimento de outros; política fiscal desastrosa, mantendo o inchaço da máquina pública e o controle da inflação com o represamento de tarifas públicas. - Muito técnico, para um sociólogo?

Mas me diverti com a afirmação final do artigo, de que “foi com um mínimo de estímulo que as classes populares voluntariosas encheram de otimismo e vigor uma sociedade estagnada e decadente”. Provavelmente esse “mínimo de estímulo” a que ele se refere são os shows de axé, comícios animados por cantores de sertanejo universitário ou festas populares no interior da Bahia, promovidas com uma “mínima parcela” do patrimônio público expropriada da tal minoria escravista de 1% da sociedade brasileira. Tudo em nome da promoção da classe oprimida às benesses da sociedade moderna, certo?

Bem, agradeço a diversão, mas devo confessar que gostei mais dos filmes acima citados, produtos da “indústria cultural” criticada pelo colega de Jessé de Souza, o filósofo Theodor Adorno (1903-1969), que ambos já curtimos, e que tem uma frase boa para o momento que vivemos: “Ou a humanidade renuncia à violência da lei de talião, ou a pretendida práxis política radical renova o terror do passado”. 

Em retribuição, convido você a ver um outro filme da Mostra, Retorno a Ítaca (Laurent Cantet), baseado num conto do cubano Leonardo Padura Fuentes, que conta a história de um exilado  que volta à ilha e reencontra amigos que não vê há 15 anos. Afloram conflitos como os que perduram entre nós.  – Por que Cuba? – perguntaram a Cantet. – Porque ela foi mitificada no imaginário da esquerda – ele respondeu – mas permanece como um foco de resistência ao mundo globalizado. 

Foto: "Um pombo..." Trailler: https://www.youtube.com/watch?v=MhpedyLXevo#t=42

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