terça-feira, 24 de maio de 2011

Saudades de Aguinaldo Silva





- No fish, no fisherman – diz o homem africano ao repórter da CNN, diante do estaleiro artesanal da família, que produz barcos de pesca há mais de um século em Nungwi, no oceano índico. Zanzibar pode ter perdido o seu apeal, mas o repórter, indiano, claramente, a ama. - So, you have trouble – diz ele, dirigindo-se ao artesão. Volta-se para a câmera e explica a função do mangue, onde os peixes vêm desovar e criar seus filhotes, antes de voltar para o fundo do mar. Aperto o controle remoto: – Nós pega os peixe? – pergunta Willam Waak ao filósofo, Roberto Romano.

Insisto no controle remoto e vejo cenas da destruição em Joplin (Janis, sinto sua falta), no Missouri, EUA, um desastre natural. Outro clic, e aparece uma fazenda, em Mato Grosso:

– Eu recebi a terra do jeito que ela está – diz o sujeito de chapéu panamá e óculos de grife, olhando para a câmera com firmeza. – Ele (o vendedor, certamente) prometeu me entregar a área já queimada, prontinha pra plantar. Em off, o repórter explica que o cidadão arrendou a terra antes de examiná-la. A devastação é mostrada de um helicóptero que, segundo o repórter, busca um local seguro para pousar, enquanto madeireiros clandestinos saltam de cinco carretas carregadas de toras e correm para o mato. Irônico? – Vejam o que a senadora, Kátia Abreu disse ontem (23/5) da exigência de reposição de mata nativa pelos produtores rurais: “É coisa de burocrata”.

Mais um clic, e Bob Dylan (70!) aparece numa velha tomada em branco e preto, convidando mister Tambourine a cantar uma canção enquanto ele não está dormindo como, certamente, estará agora o seu fã número um no Brasil, o senador Eduardo Suplicy, longe da polêmica sobre o ministro Palocci, do metrô de Higienópolis, da PM na USP –Sim ou não, do mensalinho de Campinas-SP e do naufrágio no lago Paranoá-DF. Dylan resmunga “like a rolling stone” e, como tudo acontece comigo, mudo de canal em tempo de ver a suíte da morte de um sem-teto na boca do túnel do Rio Comprido, no último domingo. Mais polêmica.

Mais fácil assistir ao noticiário da Record, no qual uma briga de um vira-lata com dois pitbull, na periferia de São Paulo, leva famílias às vias de fato. Heródoto Barbeiro aparece em outra notícia, depois de estrear no Jornal da Record News, vamos ver se você melhora esse índice de audiência, meu caro.

Volto às polêmicas midiáticas recentes: a imprensa quase passou ao largo da questão da amamentação em público, que a Folha de S.Paulo, esse grande jornal da gente brasileira, não deixou escapar, tendo publicado uma grande mesa redonda a respeito, em sua edição do último domingo. Com tanto assunto, penso, por que ler, no Economist, a matéria sobre a força do nordeste brazuquês, que cresceu 4,1% enquanto o resto do país evoluía apenas 3,6%?

A mídia precisa mesmo reencontrar o seu rumo, mas a (ótima) cobertura de Luiz Carlos Merten sobre Cannes não consegue comover o tal de público, nem a exegese da Psicanálise do último domingo (22/5), nem a notícia da construção de uma base chinesa no Paquistão, na página de Internacional de hoje (24/5), ou as conseqüências da pressão de Obama sobre Netanyahu depois da morte de Bin Laden, vis a vis a nova geopolítica no Oriente Médio.

Em Nova York, o Amazon já vende mais e-books do que livros impressos, mas o suporte, no caso, é o que menos importa. A gente quer ver o dedo na ferida, mas, para isso, é preciso buscar a ferida, e tratá-la. Passei metade da vida construindo notícias e a outra metade, virando-as do avesso, ou lendo notícia velha, como explicava minha mãe às amigas, sobre o que eu faço.

Portanto, sinto-me bem quando, no meio de um longo mergulho, como o que fiz, recentemente, em notícias sobre uma grande empresa do setor de turismo, encontro o depoimento do proprietário de um grande hotel carioca, sócio do governo, (antigas ações) no qual um funcionário público participa, periodicamente, da reunião do conselho administrativo, em Copacabana.

“Ele é uma boa pessoa”, diz o empresário sobre o seu colega de conselho. “Mesmo quando vem ao Rio às sextas-feiras, volta no mesmo dia para Brasília, sem ficar para o fim de semana”. O repórter transcreveu a frase sem alterá-la, embora o sentido de “boa pessoa” tenha sido, claramente, o de “pessoa de bem”. Não importa, estamos discutindo se nós pega os peixe ou se o Código Florestal vai ou não ser votado.

Aquilo me deixou com saudade do meu bom e velho (sorry) copydesk, Aguinaldo Silva, em O Globo, nos anos 70, nosso Honoré de Balzac dos dias atuais. Dêem uma olhada no que ele poderia fazer com esse texto, caso viesse a misturar as suas duas funções, a antiga e a atual:

O tal funcionário pode ser um canalha que morou no Rio e agora aproveita as reuniões do conselho no hotel para bancar suas visitas à família, na cidade maravilhosa (ninguém vê quando ele chega). Pode ser um pervertido, que apanha da mulher e não consegue ficar uma noite sequer longe dela. Pode estar recebendo favores de alguma senhora irresistível, na mesma Copacabana, em conluio com o taxista que costuma pegá-lo na porta do hotel. Pode, enfim, tratar-se de um orgulhoso incorrigível, arrogante, incapaz de qualquer ato de degradação moral, por mínima que seja. Ou ser um personagem de Pushkin, daqueles que tremem de medo só de pensar em cometer algum desvio.

Do lado do proprietário do hotel, há outras possibilidades. Hipótese um: estamos tão habituados às mazelas da máquina pública que qualquer atitude republicana é, para nós, motivo de júbilo. Hipótese dois: secretamente, achamos que o cidadão não fica no hotel nos fins de semana porque tem uma amante nas Laranjeiras. Mas não verbalizamos a suspeita (E se Deus existe?). Hipótese três: melhor elogiar publicamente o safardana, antes que ele resolva aproveitar a mordomia.

Pois é, Aguinaldo, afinal, você tinha razão: novela rende muito mais do que jornal. A foto do mergulho é do genial Jonne Roriz, do nosso velho O Globo, enviada pelo Xando Pereira, do A Tarde.