quinta-feira, 10 de abril de 2014

Eu também não mereço

Jornalista Nana Queiroz, protestando na Internet contra o resultado de pesquisa do IPEA

Concordo com o protesto das mulheres na Internet contra a premissa absurda de que pouca roupa significa um apelo ao estupro. Estou de acordo com as sociólogas que vieram juntar-se às manifestantes para sustentar que, mesmo o novo percentual de respostas apuradas pelo IPEA (26%, contra 65% divulgados anteriormente), é escandaloso. O próprio desvio do órgão – sem trocadilhos – não passa de um gesto obsceno.  Apóio e me solidarizo com essas mulheres por me sentir, eu próprio, vítima de estupro, quase que diário, enquanto cidadão. 

Ouvir o relator da Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional, Romero Jucá, dizer que a CPI da Petrobras “Combo” (ampliada para apurar irregularidades de antigos governos de São Paulo e de Pernambuco) representa um confronto político me assusta. A premissa ignora o conhecimento da sociedade de que a base do governo nunca se dispôs a investigar as irregularidades de antigos governos do PSDB em São Paulo (caso Alstom) e do PSB, em Pernambuco (porto de Suape), justamente por ter o seu rabo preso.

Vladimir Nabukov tem um conto prodigioso, La Veneziana, que surge de um súbito rompimento de uma rotina modorrenta que se sucede a cada dia, na qual, após o café da manhã vem sempre o almoço e depois deste, o jantar. Justamente depois de um desses jantares prolongados, um personagem com espírito em formação descobre, ao ouvir um velho marchand e restaurador de arte, ser possível viajar para dentro de uma pintura, tomando-se o cuidado de nela não se permanecer retido para sempre.

Mas eu vivo o oposto de um tempo que se arrasta, viscoso e pachorrento: a morte violenta faz parte do meu dia a dia, assim como os trens entupidos, os ônibus incendiados, o trânsito caótico, os efeitos simultâneos de secas e enchentes, os call centers que não funcionam, assaltos ao vivo e on line, entrega de produtos que eu não pedi, defeitos nos que pedi, prefeitos que obrigam alunos a ir para a escola envergando fardas com a sua propaganda política, outros que submetem as crianças a um rodízio de aulas por falta de carteiras e outros, ainda, que forçam os pais dos estudantes a comprar kits de material escolar mais caros que os da papelaria (e com a foto dele, prefeito). 

Queria voltar a viver daqui a cinco séculos, para ver o que historiadores como o francês Jacques Le Goff, que reescreveu a Idade Média a partir dos non-evenements (não-acontecimentos) em vez de analisar fatos como batalhas e coroações, como esses historiadores fariam para dar suporte lógico à evolução das mentalidades no Brasil de hoje, neste continente esquecido. Seria engraçado ver tudo isso pelo avesso de novo, ou seja: uma História construída por um cotidiano grotesco, sem nenhuma interrupção ou mudança causada por fato relevante (como as Diretas Já). 

Qual a relação, voltando a Romero Jucá, entre as suspeitas de propina da construtora Camargo Correa a políticos, via doleiro Yousseff – no caso dessa suspeita, uma obra orçada em R$ 2 bilhões vai custar R$ 20 bilhões – ou das relações deste mesmo doleiro com o vice-presidente da Câmara dos Deputados, André Vargas, do PT – também investigado por suspeita de favorecimento ao laboratório Labogen, junto ao Ministério da Saúde – com o que ele, Jucá, chama de “disputa política”?

As pessoas morrem por falta de atendimento médico e hospitalar e, enquanto o Conselho de Medicina denuncia o estado catastrófico dos hospitais brasileiros, o meu prefeito recomenda, pelo rádio, que, em caso de suspeita de dengue, eu procure um posto de Saúde. Trata-se, por sinal, do mesmo moço que mandou pintar umas faixas na cidade, para resolver o problema do trânsito, há cerca de um ano. No Rio, aquele outro, que instituiu multa por se jogar lixo no chão, acaba sendo filmado atirando no ar o seu próprio resíduo sólido de consumo.

O  jornal que hoje deveria trazer, como brinde, um álbum de figurinhas da Copa, não chegou. Óbvio. Reclamei por dois dias seguidos. A edição acabou sendo entregue, mas sem as figurinhas (!). O endereço fica numa rua onde funcionou, por mais de um ano, um ponto de táxi que não tinha licença para tal. Eu e meus vizinhos nos cansamos de reclamar das condições de higiene no local, onde pelo menos dois taxistas foram flagrados urinando na calçada, à luz do dia. O lugar continua sendo ponto de descarte de entulho, em frente a um shopping de classe média (daquela antiga) e a uma agência do Banco do Brasil.

Sobre a Copa, o Itaquerão vai consumindo vidas, como um videogame, embora ainda longe de sua conclusão, às vésperas do jogo que deve abrir a competição. As “arenas” Pantanal (MS), da Baixada (PR) e  Amazonia  (Manaus) foram inauguradas com problemas. As pessoas também acreditavam que os aeroportos estariam reformados, sem “tapeação”. No front das Olimpíadas de 2016, somos obrigados a conviver com as reclamações das federações olímpicas do mundo todo contra o atraso nas obras da Rio 2016.

"Como integrante da comissão de coordenação, tenho que compartilhar com vocês muitas preocupações", disse Francesco Ricci Bitti, presidente da ASOIF, aos membros do organismo durante conferência em Belek, na Turquia (Reuters, 8/4). "Estamos satisfeitos com nosso relacionamento com o comitê organizador da Olimpíada, mas o apoio do governo é tardio e insuficiente”, declarou. “O fluxo de caixa não é positivo, e o apoio está atrasado e não chega. Eles têm muito discurso, mas não dinheiro, e palavras não bastam", completou. Deixa o Lula ouvir você, Francesco Bitti: todo mundo vai saber que você não passa de um agente infiltrado do PSDB.

O ex-presidente, aliás, depois dos últimos escândalos, conclamou o PT a somar forças para combater a “massa de informações deturpadas que vem sendo divulgada pela imprensa, para prejudicar o partido nas próximas eleições”. Disse que “o governo tem que ir para cima” e “reagir com unhas e dentes” às acusações que pesam contra o ele e que podem prejudicar o seu projeto de reeleição. Sobre a ética, combate à corrupção, realizações, melhoria nas condições de vida das pessoas – no transporte, na saúde, na educação e na segurança – sobre reforma tributária, gargalos na infraestrutura ou controle de gastos públicos – nem uma palavra.

Lula referiu-se à CPI dos Correios (que gerou o Mensalão) como exemplo de ameaças que devem ser combatidas pelo partido, e eu me lembrei que, há poucos dias, tive dois  exemplos  seguidos de ser esta mais uma instituição brasileira que, a exemplo de outras, parou de funcionar (adequadamente). No entanto, os Correios estão montando, em conjunto com a Receita Federal, um sistema para fiscalizar as importações por meio de encomendas,  que saltaram de 1,2 milhão de pacotes, em janeiro e fevereiro de 2013, para 1,7 milhão, nos dois primeiros meses deste ano. Estupro só é refresco nos olhos dos outros.


Para o ministro da Fazenda, Guido Mantega, a inflação recorde dos últimos 11 anos é apenas consequência da falta de chuvas que afetou a produção de hortifrutigranjeiros. Enquanto isso, o senador Gim Argello (PTB-DF), suspeito de lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva, falsidade ideológica e peculato (conforme inquéritos do STF), foi indicado pelo governo para uma vaga no Tribunal de Contas da União. Ok, isso pode não ser um estupro propriamente dito, mas que tal, atentado ao pudor?