sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Sacola na mão




Quando eu era garoto (claro, às vezes, ainda sou), uma das minhas principais crueldades era amarrar uma linha de náilon entre o arbusto da nossa calçada e o muro, com uma lata cheia d’água, e esperar as pessoas que voltavam da venda, à noitinha, com as sacolas carregadas de compras. Nem tudo era embalado em filme poliéster, como hoje. Causávamos muito desconforto e prejuízo, eu e os outros garotos da rua. De vez em quando, levávamos uma carreira de alguma vítima mal humorada, mas até essa adrenalina fazia bem: ninguém tinha skate ou esqui. Nosso rafting era um carrinho de rolimã, e o nosso rapel, as árvores dos vizinhos. Não havia videogame, nem palestras sobre A Família e a Contemporaneidade, do doutor José Ottoni Outeiral, para discutir a desinvenção do brincar.
Numa comedia recente do Adam Sandler, Grown Ups, falando de um reencontro de velhos amigos, um dos filhos do personagem chama a babá, que está na cozinha, por SMS; quando ela chega, reclama que o chocolate quente não é Godiva: “Você quer me matar?”, diz. O filme expõe o seqüestro da molecagem pelo consumismo exacerbado e pela inflação da tecnologia, tendo, como pano de fundo, a fixação dos adultos na adolescência. Mas é só um caça-níqueis, e logo se despede das discussões desagradáveis, ao exibir crianças momentaneamente esquecidas de seus tablets e smartphones, descobrindo como pode ser divertido jogar pedras no lago onde foram obrigadas a passar aquele 4 de julho (Lago Winnipesauke, New Hampshire –EUA).
No meu carrinho de rolimã, a melhor parte vinha antes: percorrer as oficinas do bairro; convencer o mecânico brucutu a entregar um bom rolamento a um moleque metido a besta; encontrar a peça num monte de porcarias cheirando a ferrugem, limpá-la com querosene preto de graxa, lubrificá-la com óleo de cozinha e depois, fazê-la girar até zumbir, num toco de pau. A segunda melhor parte era conseguir o caixote, desmontá-lo, ganhar ou roubar um eixo de madeira do tamanho de um punho cerrado, serrá-lo, furá-lo no meio, arranjar um parafuso de cama com, no mínimo, doze centímetros de comprimento e, finalmente, montar o modelo, com um pedaço de pneu na ponta do freio. Eu não gostava de fazer pipas, mas fabriquei alguns desses carrinhos; vendi jabuticaba e fiz estilingues/atiradeiras, além de ter pintado camisetas de protesto, nos anos 60. Os americanos vendiam refresco na calçada. Lucy, dos Peanuts, tinha uma banca de Psicanálise da qual saíram alguns dos melhores conselhos que já li ou ouvi.
Nem tudo era paz e amor, naqueles anos: quando Guevara virou bandeira, eu o desenhei com carvão na parede da sala de aula, que fui obrigado a pintar, no fim de semana, em troca de não ser expulso da escola.Não apareceu nenhum otário para cair no conto da cerca do Tom Sawyer. Anos depois, quando o meu filho quebrou todas as lâmpadas do corredor de uma escola particular, foi suspenso por três dias, sem nenhuma atividade pedagógica.
Na minha adolescência, além dos atos de vandalismo, montei socos ingleses na oficina de cadeiras de cano e plástico do pai de um amigo. As gangs sempre existiram, mas os nossos confrontos nos bailinhos da época só viraram moda depois de Rebelde sem Causa, de 1955, também conhecido como Juventude Transviada. Brigávamos entre nós (melhor que bater em mendigos), mas o meu soco inglês já nasceu relíquia -nunca foi usado. Alguns de nós usavam canivetes, mas só me lembro de uma vítima, em toda a nossa West Side Story.
Além do conflito de gerações, a guerra-fria, o marketing e a cultura pop, o pós-guerra nos trouxe a capacidade de unir, quimicamente, partículas de alto peso molecular, denominadas monômeros, formando os famosos polímeros, nos quais a humanidade encontrou uma fonte inesgotável de utensílios: de parafusos a painéis de construção, tubos, tecidos e carcaças automotivas, brinquedos de gente pequena e de gente grande, entre eles, as conhecidas sacolas de supermercado que, depois de meia noite, se transformam em lixinhos de banheiro.
Quando se fala em scolas de plástico, essa pauta que não sai da mídia (observação de Hélio Schwartzman, na FSP), penso nas armadilhas da minha infância, mas também nos chapeuzinhos de jornal que um senhor ensinou a fazer, no jornal Hoje da TV Globo, para abastecer os tais lixinhos de banheiro.
– Quem é que vai colocar jornal no lixo do banheiro? – perguntou uma senhora, na fila do caixa do mercado. – Depois que uma dessas especialistas aconselhou as pessoas a trocar os saquinhos de lixo da pia por caixinhas de tetrapack – acrescentou (textualmente) - eu perdi as minhas ilusões. – Que especialista é essa, que não sabe que tetrapack é pior que plástico? De fato, pensei com meus botões. Até as pedras sabem disso, como diria o ministro do STF, Gilmar Mendes, falando das corregedorias de Justiça.
- A gente se habituou à sacola da feira, - disse uma outra, em tom conciliador. – Vamos acabar nos acostumando de novo à sacola do mercado. Concordo com ela. Também me considero um sem-sacola, porque, embora reaproveitasse caixas de papelão descartadas pelos próprios supermercados para trazer as compras, tive que deixar de usá-las por causa da súbita explosão da demanda.
A propósito disso, as animadoras de programas femininos e as produtoras do GNT estão todas de acordo: a sacola retornável voltou à moda. Ok, mas de que tipo? – Eis aí, uma pauta para o Fantástico. Será que a Veja falou a respeito? (há tempos não leio Veja). E as revistas femininas, que nunca vejo? – Já compararam estilos e preços? – Vamos de bolsas adornadas de franjas e fios de ouro, como as da Antiguidade, ou de mochilas indígenas, como aquela moda dos anos setenta, de carregar os filhos nas costas? – Alforjes, cestas de vime ou sacolas de lona verde, com um look militar?
Ensina o nosso oráculo contemporâneo, lá pela quarta ou quinta página de consulta, que os grupos pré-históricos eram nômades e se deslocavam, conforme a necessidade de obter alimentos. Como já haviam descoberto que a pele dos animais servia para proteger o corpo, podem ter desenvolvido também um sistema de receptáculos para carregar e proteger suas caças. Daí a presença de bolsas a tiracolo em desenhos rupestres que datam da pedra lascada (40 milhões anos A.C.).
Nesse aspecto, portanto, estamos voltando à pré-história. Mas, se não há outra solução, porque não mudar? Já nos acostumamos às bicicletas de Moema, no fim de semana. Podemos aproveitar essa onda para transformar outras atitudes e hábitos urbanos que nos incomodam.
Podemos, por exemplo, boicotar os comentários do Neto nas televisões dos restaurantes do bairro, na hora do almoço; obrigar os âncoras do telejornalismo, em geral, a serem menos enfezados (começando pelo Bonner e pelo Boechat; o Celso Freitas só faria algumas seções de fonoaudiologia com o Anderson Silva); executivos que trabalham de gravata não poderiam mais usar cabelo de moicano; parar em fila dupla reduziria as notas dos alunos das escolas particulares; transportadores de valores não poderiam almoçar dentro de seus veículos parados com o motor funcionando, ou o diesel teria que ser mais limpo; cada música romântica e popular que tocasse no rádio (incluindo as do Wando e das afilhadas do Caetano) obrigaria a emissora a compensar o público com uma ária de Puccini ou uma sonata de Bethoven. Quando tudo isso for providenciado, prometo comprar, na segunda-feira seguinte, uma sacola retornável de algodão cru, com uma estampa bem ecológica em silkscreen do lado de fora.