quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Maurício Shogun x Winnie Mandela



Tina Brown, diretora da Newsweek (que deixa de circular este mês, no papel) disse, e a Folha de S. Paulo reproduziu, em sua edição de domingo passado (2/12): “Homem se sente ameaçado diante de mulher forte”. Verdade. Nos últimos dias, tenho visto aumentar o bando de brucutus que não conseguem reconhecer a hegemonia do poder feminino, e isso me preocupa mais do que a invasão de corinthianos no Japão. Autoridade não se questiona, acata-se, certo? - Índices que medem a inflação ou o valor adicionado (PIB), por exemplo, só servem para ajustar as expectativas de quem carrega nas costas a responsabilidade do comando, senão, viram uma coisa incômoda, corrosiva. Deixaram esse pessoal do IBGE fazer uma greve atrás da outra, e olha aí resultado: qualquer dia, vamos virar uma Argentina, onde a imprensa pode tudo. Temos que abrir os olhos.

E a elite que comprou aquele monte ações das estatais com o Fundo de Garantia? – Essa gente não entende que abrir mão de uma parte do lucro, às vezes, pode ajudar num projeto mais amplo, como o palácio de um deputado, numerário para a campanha de uma governadora maranhense que precise, ou uma viagem a Paris de um governador fluminense (ou sogra de um governador cearense). Essas coisas também significam um Brasil sem pobreza, estão pensando o quê? – Eu digo: deixem o povo reclamar, se eles podem comprar o carrinho básico deles por módicos trinta mil reais, sem pagar o IPI, por que nós não podemos ter o nosso Land Rover Evoque (ou Mitsubishi Pajero) na garagem? - Pedem uma Educação de qualidade: tem um monte de faculdade de Medicina por aí, formando profissionais cada vez mais competentes para prestar um serviço de saúde que melhora a cada dia: - Isso não conta?

Sim, mas Tina Brown (que dirigiu a Vanity Fair), autora da frase lá em cima, organiza a conferência Women in the World (Mulheres no Mundo), realizada pela primeira vez fora dos Estados Unidos, no último dia 4/12, em São Paulo, só para falar mal da homarada. Participaram Xuxa e a Condoleezza Rice, mas, ainda assim, foi melhor do que aquela convenção de peludos que o João Dória Jr promove, anualmente, em Águas de São Pedro, para garantir o leite maltado das crianças, e que agora tem transmissão ao vivo pelo SBT (a audiência do Sílvio Santos, no dia 11/12, deve ter adorado). Só tem um problema, dona Tina: com o seu viés jornalístico, a senhora tende a exagerar um a situação da mulher contemporânea que, em sua opinião, tornou-se complacente e passiva. “Nossas mulheres não marcham mais”, reclamou, numa péssima tradução da Folha, referindo-se a suas compatriotas.

Mrs Brown ficou decepcionada com a falta de mobilização de suas patrícias (não é trocadilho, moçada) em torno das políticas contraceptivas ameaçadas por uma eventual vitória republicana nas eleições presidenciais de seu país. “Havia um grande risco de um salto atrás na nossa política reprodutiva”, disse. E reclamou que, hoje, a consciência das mulheres norte-americanas (devidamente instaladas no pleno exercício de sua própria cidadania) limita-se a repudiar a proibição de dirigir às mulheres da Arábia Saudita, e a obrigatoriedade do xador, no Irã (burca é outra coisa: é o que a gente jogava em Bauru). “Hillary foi atirada no lixo pela mídia, e ninguém fez nada”, afirmou à FSP.

Na mesma edição, aliás, a Folha trouxe uma entrevista com a contra-almirante Dalva Mendes, a primeira a alcançar essa patente, em nosso país. Na opinião dela, a inclusão das mulheres na linha bélica demanda um estudo mais cuidadoso: “A gravidez é um problema”, assinalou. “Você já entrou num navio de guerra, com aquele cheiro de óleo?”, indagou à repórter, Damaris Giuliana. “Já pensou quem está grávida? E quem estiver amamentando?”. Ao que parece, a comandada discorda da comandante suprema, que, em agosto, assinou uma Lei obrigando o Exército a incluir mulheres na linha de frente, dentro de cinco anos. Mas o melhor trecho da entrevista foi a explicação (mantida pelo jornal) de que as primeiras fardas da Marinha tiveram que ser adaptadas, por terem sido feitas para manequins, não para mulheres “normais”.

Talvez, afinal, a contra-almirante Dalva Mendes se encaixasse na definição de “mulher forte” de Tina Brown, embora se mantenha casada, até hoje, com o sujeito que a tirou para dançar quando ela tinha apenas 14 anos. “Meu pai é cearense”, avisou ao pretendente, “e tem aquela mentalidade de filha minha, é no cabresto”. Mas o moço não teve medo. “Meu pai ficou tão desconcertado que o mandou ir lá em casa, no dia seguinte”.

Seria deselegante usar a frase de um célebre machista, para desqualificar a opinião da ativista norte-americana em relação aos homens que se defrontam com mulheres fortes, como ela disse (toda unanimidade é burra). Mas eu me permito discordar da frase dela, começando pela raiz: será que para ela, a sua xará, Tina Turner, não caberia na classificação de mulher forte? - E Hillary Clinton, sim? Marisa Monte seria frágil e Cassia Eller, forte? Irmã Dulce, Dilma Roussef ou Maitê Proença: – quem venceria essa disputa? - Lota de Macedo Soares, que projetou o Parque do Flamengo e suicidou-se por amor (como vai contar Bruno Barreto, em A Arte de Perder, com estréia prevista para fevereiro próximo, no Festival de Berlim), era forte ou frágil?

E quanto aos homens? O lateral direito Alessandro, do Corínthians, que acabo de ver, em partida contra o Al Alhy (time do qual ninguém mais vai se lembrar, daqui a meia hora) é mais forte ou mais fraco que, por exemplo, o Raí, que fala francês e dirige uma fundação de amparo à juventude? Quem você classificaria como o mais forte: Gandhi ou Churchill? – Oswaldo Cruz ou Anderson Silva? Mandela, Bill Clinton ou John Wayne? Machado ou Joaquim Nabuco? Jobim ou Vinícius?

E como seriam as relações entre esses homens e mulheres? Gandhi teria se casado com a Irmã Dulce ou teria preferido a Maitê Proença? E se Mandella tivesse se encontrado Dilma Roussef, antes de conhecer a Winnie? – Lota e Cassia Eller dariam liga? E a Marisa Monte, teria preferido o Alessandro ao Raí? Como Hillary reagiria a uma cantada do Vinícius, que Elizabeth Bishop adorou? Aliás, será que a poderosa secretária de Estado dos EUA, finalmente, perdoou Bill, depois da vitória dos democratas nas últimas eleições?

Todas essas combinações e conjecturas ficam boas demais no papel. Na vida "real", dou razão a quem coloca o feminismo dos sutiãs queimados na gaveta da história, e se preocupa mais com o crescimento desproporcional das religiões na sociedade contemporânea, inclusive do ponto de vista da mulher - no Islã, sim, mas também em Utah, em Nagoya (onde rolou o citado jogo do Corínthians) ou no Mississipi. E quanto o câncer, o que me dizem sobre o câncer? – E da violência doméstica contra a mulher? E da mão de obra infantil? (vi dezenas de meninos-flexas neste último fim de semana, nas esquinas do Brooklin, em São Paulo). – E que tal a falta de saneamento básico, na oitava economia do mundo, que, aliás, promete derrubar mais uma centena de casas penduradas em nossas encostas, neste verão?

Podem me criticar, mas é isso o que penso. As mulheres merecem todas as suas conquistas, mas precisam nos ajudar a combater mistificações como essas, de que continuam oprimidas, ou de que fazer oposição ao governo é ser de direita; temos que lutar conta a injustiça, contra a corrupção, as desigualdades, a nossa mania de confundir o público com o privado, de jogar lixo na rua, de dirigir bêbado e de desrespeitar a natureza: temos muito mais o que fazer juntos, mulheres e homens. Essa disputazinha de poder é coisa de novela, e, mesmo assim, requentada. Vale o talento da Irene Ravache e do Toni Ramos, no máximo. E, talvez, a barriguinha da irritadiça Luana Piovani.
Legenda: O "afiche" (Maio de 68) é uma beleza, mas eu trocaria pelo texto do Newton Moreno para Maria do Caritó

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O crânio de Yorick


Se a Globo pôde chamar o recente bombardeio à faixa de Gaza de conflito entre Israel e o Hamas, como se os palestinos não tivessem sofrido as consequências da escalada de violência conduzida pelo primeiro ministro Benjamin Netanyahu, com vista na eleição de janeiro próximo para o Knesset (parlamento israelense), então eu posso definir a guerra entre o PCC e a polícia de São Paulo como um transtorno de personalidade por parte dos marginais ligados à organização, que têm uma notória dificuldade em lidar com a autoridade, num processo que os psicólogos costumam classificar como fenômeno disruptivo.

Dependendo da cognição, juízo crítico, conhecimento e disposição ao entendimento, tais estados supostamente pétreos podem seguir por caminhos mais favoráveis e de menor sofrimento, tanto para a pessoa deles portadora, quanto dos demais à sua volta. Sabendo lidar com essa questão, o indivíduo poderá se adaptar perfeitamente à sua maneira de ser, disciplinar pulsões, esquemas de pensamentos, impulsos específicos desses transtornos, e tal manejo poderá ser de tal forma eficiente que a qualidade da vida emocional será muito melhorada (CID.10 – Classificação Internacional de Doenças - OMS).

No país da piada pronta, o delegado geral da Polícia Civil, Marcos Carneiro de Lima, encontrou outra explicação para essa guerra, conforme declarou ontem, 22/11, data da posse do novo secretário de Segurança do Estado, Fernando Grella Vieira. Lima encontrou indícios da volta de grupos de extermínio na onda de violência que atinge a Capital. Provavelmente o delegado acha que a execução de marginais suspeitos de fenômenos disruptivos, no passado, se restringiu à ação do ex-pm Florisvaldo de Oliveira, o cabo Bruno, na década de 80, ou ao Esquadrão da Morte que atuou em São Paulo de 1968 a 1971.

A ele recomendo a leitura de O Matador, de Patrícia Melo, adaptado para o cinema por Rubem Fonseca, no filme O homem do ano, dirigido por José Henrique Fonseca e interpretado por Murilo Benício, numa atuação bem diferente daquela do Tufão que acabou garfando a Débora Falabella (melhor do que ganhar a Copa do Mundo, que o Corínthians disputa, em dezembro).

Quanto ao Oriente Médio, numa chamada para o programa Sem Fronteiras, de Monica Valdwogel, na Globonews, anteontem (21/11), a emissora chamou a guerra na Faixa de Gaza de conflito entre Israel e Palestina. Das duas, uma: ou a empresa pensa que o público de sua TV a cabo é mais adulto e melhor informado do que o público que assiste à Xuxa, Faustão e JN, ou a ordem de atender aos interesses (imaginados) do lobby israelense-norte-americano foi suspensa temporariamente, em homenagem ao Dia de Ação de Graças nos EUA (22/11) que, também imaginariamente, pode ter ensejado a anunciada trégua entre Israel e a Palestina, nessa mesma data.

Ao entrar na Faixa de Gaza durante a transmissão do Bom Dia Brasil, também de ontem, o repórter, Carlos de Lanoy, disse que o clima, entre os palestinos, era de comemoração e alívio. Só não se sabe por quanto tempo. Gostaria de entender um pouco mais da política interna de Israel, para avaliar se existe alguma chance de se derrotar, nas urnas, a coligação de extrema direita entre o Likud de Netanyahu e o Yisrael Beiteinu, de Avigdor Lieberman. Duvido que, mesmo pensando, acima de tudo, em sua própria segurança, um judeu norte-americano como Phillip Roth, de quem leio, neste momento, Patrimony, ou os brasileiros de origem ou de religião judaica que conheço, optassem pela violência como única forma de proteção.

A melancolia (russa) que reconheço no livro de Roth sobre o declínio e a morte – temas recorrentes, em sua Literatura – não me autoriza a pensar de outro jeito. Da mesma forma, a ternura ácida e bem humorada de Portnoy’s Complaint, outro texto autobiográfico do autor, que trata de infância num bairro judeu de Nova Jersey, onde ele cresceu, protegido da Guerra e do preconceito. A figura do pai, abordada nos dois livros, mereceria outro extenso comentário, se não estivéssemos tratando aqui, simplesmente, da universalidade da arte e como forma de combate à hipocrisia e à violência.

Voltei a pensar no assunto ontem à noite, durante um breve recital de Schumann, igualmente melancólico (Quinteto para Piano Op.44), na Bienal de SP (30ª), para o qual fui convidado por um dos patrocinadores da mostra, cuja organização teve a boa idéia de promover uma visita exclusiva de convidados de seus principais patrocinadores, como contrapartida ao mecenato. Neste caso, tanto o patrocinador quanto o patrocinado mantinham, fora da Bienal, programas socioeducativos que, graças à sua convergência, tornaram-se correspondentes ou colaborativos, como diriam meus amigos de TI.

A peça de Schumann foi interpretada, a quatro mãos, pelos irmãos Heloísa e Amilcar Zanin, envolvidos por uma cortina circular que mostrou uma projeção multifacetada de cenas urbanas, outros recitais e paisagens, exceto numa tela lateral de 16 mm situada numa das paredes de fundo, que exibiu tiros de artilharia inspirados (imagino) nas Guerras Napoleônicas que minaram o império austro-hungaro na época do compositor. O espetáculo em si foi outra boa idéia, mas eu teria inserido imagens de flores e valsas entre os disparos de canhões: considerado o maior compositor do Romantismo alemão, Schumann conseguia aliar frescor e uma profunda melancolia em suas obras, na maioria, canções líricas baseadas nos poemas de Heine, como as de Schubert, que o antecedeu nesse gênero musical.

Nos dois anos em que se escondeu do serviço militar, lecionando na escola do pai, de 1813 a 1815, Schubert compôs mais de 150 lieder, gênero que o consagraria (universalmente), igualmente inspiradas em Heine, em Goethe e em Sheakespeare. O mesmo Sheakespeare citado por Roth em Patrimony, numa passagem em que o autor examina a tomografia do cérebro do pai doente, e lembra uma frase de Hamlet sobre o crânio de Yorik: “Ele me carregou nos ombros, mil vezes”.

Boas idéias, melancolia e a saudade antecipada do filho do rugby, que parte para a América, dentro de um mês, para uma longa temporada, me levam a citar uma frase recente dele próprio, depois de uma discussão acerca de uma expressão inadequada* que eu censurei mas, que, arbitrada pelo avô, meu eterno professor, ganhou uma conotação de possível. Eu, obviamente, protestei contra o engodo:

- Você deveria ser advogado - disse, referindo-me a uma piada interna, sobre a relação dele com a irmã mais velha.

- Publicitário é um advogado que não deu certo, você devia saber – ele devolveu, lembrando a própria profissão, que ele considera ser a minha grande frustração de velho jornalista.

- Que nada, garoto. Idéias como as que vocês desperdiçam, vendendo sabonete, poderiam salvar o mundo.

Imagem: mais uma do impagável Sempé: "Eu disse para você tirar a máscara antes de brigar com eles".
(*) O Correio impeliu o Consulado a não encaminhar passaportes pelas empresas de Courrier.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Amor, vou até o salão

Ouvi essa despedida muitas vezes, em Bauru-SP, onde passei parte da minha infância e juventude. No interior, qualquer sala com mais de cinco metros quadrados tende a virar salão de beleza, inclusive na casa da pessoa que for capaz de duvidar disso. Não é incomum o cliente ajudar na mise en place ou a varrer o chão enquanto aguarda a vez, como aconteceu comigo, durante um surto de boa vizinhança que me levou a acompanhar uma sogra a um desses estabelecimentos: eu tinha pressa.

Faz tempo que isso aconteceu, mas como, a esta altura da vida, toda a minha memória se resume ao disco rígido deste computador, achei que era disso que se tratava, quando a mulher de um amigo o saudou dessa forma, no último fim de semana, enquanto nos debruçávamos sobre nossas cervejinhas, a falar de futebol e política, já que o nosso principal assunto (filosofia), nos dias de hoje, exige cautela. O pessoal do Edir Macedo não armou um boicote contra a novela da Globo, só porque um ator é cavalo de Ogum?

Bem, se a mulher da pessoa está dizendo que vai ao salão, por que duvidar? - Melhor que receber um massagista no jardim de inverno, ou avisar que vai ao shopping com a mãe, o que, por sua vez, é bem melhor ouvir: “Vou visitar uma amiga”. Este último comunicado costuma disparar um alerta vermelho em qualquer marido. Geralmente, vem precedido por avisos de indisposição e dor de cabeça na véspera.

Mulheres fazem reuniões de Recrutamento e Seleção em mesinhas do Starbucks, onde me encontro agora. A mulher chegou à Presidência da República (óbvio). E às funções adjacentes da Presidência da República (não tão óbvio). Primeiro e segundo escalões. Chegou ao topo das grandes corporações, às Olimpíadas e à Magistratura (as ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia aí estão, em companhia de Joaquim Barbosa); à Ciência (Mayana Zatz), às Artes e à Literatura (Clarisse, Lígia, Nélida, Cecília, Rachel). As mulheres têm até um programa de debates na TV a Cabo, o Saia Justa, para fazer contraponto com o antigo Mulheres, da TV Gazeta, que só falava de perfumaria, como o Jornal Nacional.

Para melhorar os índices de audiência da novela das sete, a Globo deu-se ao luxo de reunir, numa única cena: Maitê Proença, Letícia Sabatella, Giulia Gam, Cláudia Ohana e Regiane Alves, que não aparece em negrito no Google, mas já deu muito trabalho a pais e maridos.

Mulheres, com toda a justiça, não são mais figuras acessórias, como deixou claro, num anúncio de TV, a poderosa secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton. Hillary, aliás, poderia ter imposto um tom mais incisivo à administração democrata, se naquela casa não houvesse uma outra figura excepcional, Michelle Obama, que inverteu a frase de David (o sujeito que matou Golias, mas apanhava da parceira): “Por trás de uma grande mulher, há sempre um grande homem”.

Segundo Paul McCartney, de quem o novo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, é fã (será que o Serra gosta dos Stones?), a humanidade jamais teria conhecido a canção “Imagine”, se Lennon não tivesse abandonado os Beatles para se casar com Yoko Ono. E olhe que Mrs. Ono não pode ser considerada, assim, um colírio para os olhos. Já o goleiro italiano Buffon, que agarrou tudo, na última Copa, tem tudo para justificar uma obediência irrestrita dentro de casa. Por causa deste comentário, serei crucificado como sexista, dentro de algumas horas. Não ouso criticar as escorregadelas filosóficas da professora Marilena Chauy, para não ser chamado de tucano, o que já seria demais. Mas que as mulheres tomaram conta do mundo, não tenho dúvidas.

Nem reclamo. Nós, seres masculinos, transportamos, hoje, um peso bem menor do que a escoliose moral carregada ao longo de séculos. Em lugar de cafajestes incorrigíveis, viramos “seres racionais”, bons de orçamento doméstico, consumidores contidos; somos mais decididos no restaurante e "mais cooperativos" nas tarefas domésticas; aprendemos a dividir a conta de luz e a discutir a relação, o que nos deixou “mais sensíveis”, e alguns de nós aprenderam a tocar instrumentos, a cozinhar e trocar fraldas, não exatamente nesta ordem.

Mas não perdemos nossas antigas habilidades de abrir coisas (portas, latas, garrafas), de construir balanços de corda e edifícios, além de trocar pneus. Por tudo isso, já somos considerados toleráveis e até admitidos em rodas feministas, como o sacana do Xico Sá, que sempre tem uma tirada maldosa para alfinetar o próprio gênero (ele precisa mais do que a maioria de nós, vamos entender assim).

O tiro de misericórdia no meu orgulho masculino foi desferido pela jornalista amiga, Lúcia Guimarães, que só por ter abandonado o Manhattan Conection já mereceria o nosso respeito. Em sua coluna no Estadão da última segunda-feira (8/10), “Mística Masculina”, ela decreta, de cara: “O homem está ameaçado de extinção”. E diz, reproduzindo o zeigest norte-americano atual: “Somos mais educadas, competentes, adaptáveis e podemos ser engravidadas num laboratório”.

Um sentimento de independência ambígua, como ela admite, interpretando “The end of the man”, de Hanna Rosin, a crônica da obsolescência masculina. Lucia bate duro, ao endossar a premissa de que o homem norte-americano perdeu a sua importância social. No fim do artigo,  tenta apaziguar os ânimos, dando a entender que a guerra social, nos EUA, não é de gênero, e sim de classes. Não me iludo: foi apenas um desvio da formação gauche.

O fato é que, depois de passar duas horas tentando chegar ao quarto maior evento mundial da indústria automotiva, na última sexta-feira (26/10), driblando o trânsito na ponte da Casa Verde, os marronzinhos da CET, um batalhão de cambistas que ignoram a sua credencial de jornalista e insistem para que você lhes venda o ingresso usado pela metade do preço, para que eles possam revendê-lo “ganhando alguma coisa”, além de vários quilômetros de pais de quarenta anos com seus filhos de dez e jovens desocupados com suas latas de cerveja e anedotas estúpidas, cheguei, enfim, ao interior parque de exposições do Anhembi.

As máquinas que os italianos, com a sua habilidade ancestral, sempre associaram ao sexo feminino, estavam lá: as Mercedes, as Porshe, as Chrisler, as BM, as Renault, as Audi, modelos japoneses, coreanos; fuscas, suvs, carros-conceito, carros elétricos, Fórmula 1. Porém, as outras máquinas, que, ao longo das últimas décadas, atrairam hordas masculinas interessadas em conferir formas perfeitas, design de última geração e desempenho impecável, não estavam mais lá.

Em vez disso, havia: workshop para mulheres, estúdio de maquiagem, lounge feminino, manicures e cabelereiros como atrações dos estandes das grandes marcas. Meninos, eu vi. Não ousem me perguntar as razões, os motivos, mas, certamente, não faltariam argumentos para justificar o fenômeno: ascensão social, poder e decisão de compra, segmentação do setor, redistribuição de tarefas, mudança no modelo tradicional de família, conspiração das elites (este, certamente, um exagero petista).

O vício de jornalista não me foi suficiente para motivar uma volta ao Anhembi, a fim de catalogar e classificar todos esses atrativos às novas consumidoras, com suas promoções e serviços. Mesmo considerando que o fenômeno passou desapercebido pela grande mídia. Num lugar que, até ontem, era um dos poucos redutos masculinos que restavam intocados no mundo.

No fim, talvez as mulheres tenham razão: foi preciso a mulher daquele meu amigo voltar o passeio, no último sábado, carregada de chaveirinhos e comentários sobre as últimas versões xis-ípisilon-zê do modelo XPTO do fabricante Delta, para que eu entendesse: ela tinha ido ao Salão do Automóvel que, afinal, virou coisa de mulher.

(Foto) Cockpit de um B-52: adivinhe quem está no comando: homem ou mulher?

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O Sistema


Entro na loja bem decorada da operadora de celular (fica a uma quadra de minha casa). Por cortesia, pergunto ao guardião que tenta organizar o atendimento, distribuindo senhas iguais a pessoas com demandas muito parecidas:

- A Josiane?

Ele me responde varrendo o salão com um olhar de jogador de basquete: – Está atendendo.

- Onde? – pergunto, com uma falsa intimidade. Ele perde a concentração e olha para a porta do cubículo onde eles, de fato, trabalham. Não resisto:

- Lá dentro? – Não, ele esclarece, esboçando um sorriso. Sabe que foi apanhado. Quebrei a primeira resistência do Sistema. Mudo de direção enquanto outra atendente vem chamá-lo: tem mais gente chegando (não pára nunca).

- Fábio? – pergunto ao garoto precocemente amadurecido que passa a meu lado, depois de uma espiadela no crachá que ele carrega. Já o vi outras vezes, sempre correndo, sempre assustado, provando que o avanço tecnológico pode encurtar as distâncias, mas só faz aumentar a nossa produtividade.

Digo:

- Você me conhece, eu tenho vindo aqui várias vezes (recebo um olhar de reconhecimento). É que a Josiane está sempre muito pressionada, sempre com muito trabalho, e é a única que entende deste aparelho. Eu só preciso transferir a minha agenda, do antigo telefone para o novo.

- Só isso? – ele desconfia. Respondo que sim, buscando o aparelho antigo dentro da pasta. O novo já está nas mãos dele.

– Isso, eu consigo resolver – admite. Boa pessoa, pergunta o que aconteceu com a tela do meu aparelho antigo, rasgada ao meio por uma feia cicatriz. Digo que escorregou da minha mão e explico que só a tela me custaria o dobro de um aparelho novo, já que eu não tenho a nota fiscal do antigo.

- Não era um genérico – me escuso. – Mas você sabe, eles ficam tentando evitar que as pessoas tragam lá de fora, pela metade do preço. Ele não pode concordar. Mas abre o notebook que está na bancada à nossa frente, enquanto aciona a tela principal do meu aparelho, que exibe instantaneamente a marca de outra operadora.

- Eu tenho duas outras linhas no concorrente – justifico. – Renovei o contrato por mais um ano, numa delas, e o telefone saiu um pouco mais barato do que aqui. Quem usa é o meu filho. A minha, continua sendo a daqui. Ontem, fiz a transferência das minhas contas de e-mail com o Marcos, seu colega do Atendimento Vip – acrescento, desnecessariamente. Fui atendido com toda a delicadeza que costuma ser dispensada a um heterossexual quase ancião, como eu (penso).

Amanhã (continuo pensando) virei novamente, para instalar os aplicativos do Facebook, Twitter e algum portal de conteúdo. Depois de amanhã, virei para entender se vale a pena baixar música neste aparelho, como enviar foto e vídeo por e-mail. Mas posso fazer isso na loja da outra operadora, que me vendeu o aparelho, para distribuir um pouco as tarefas entre as duas empresas.

Lembro-me de como foi bom ser tão mal atendido nas duas outras lojas dessa outra operadora onde estive algumas vezes, antes de comprar, finalmente, o novo aparelho. Funcionários com péssimo treinamento me ensinaram, ao longo de uma cadeia impressionante de erros:

1) A escolher os planos mais adequados aos meus interesses (exige pelo menos três visitas);

2) A encontrar um aparelho tecnicamente avançado, dentro da menor faixa de preço (duas visitas, dependendo do atendente), e

3) Como desencavar o melhor desconto contido na estreita margem de negociação franqueada aos atendentes (quatro a cinco visitas).

Nunca perdi meu tempo. Todas essas visitas foram encaixadas em passagens obrigatórias em frente às lojas, em horários de pouco movimento, encaixados entre minhas reuniões. Salvo exceções como a de hoje, sexta-feira, oito da noite, num shopping que se parece com uma rua de Mumbai, em dia de festa. 

Penso na expressão da dona do quiosque desse mesmo shopping center onde, inicialmente levei o meu celular quebrado (para um orçamento que levaria, no mínimo, 24 horas), quando lhe comunico que o meu aparelho novo custou a metade do que ela me pediu pelo conserto do antigo.

- Eu respeito muito o seu trabalho – digo – e sei que você paga um aluguel muito caro. Mas como, agora, posso esperar, vou consertá-lo quando tiver que passar pela Santa Ifigênia (Centro de São Paulo-SP). É nesse local (penso) que você,  provavelmente, compra suas peças de reposição e as horas de trabalho de um bando de brasileirinhos espertos, empregados por  contrabandistas com sotaques estranhos.

Percebo, pela primeira vez, porque gosto tanto da Santa Ifigênia, talvez mais até do que o Ceagesp, onde o que me atrai, além da bagunça e das cores, é a livre negociação de preços, peixes e  piadas. Um mar de anarquia que se entende sem nenhuma dificuldade, desdenhando de castigos bíblicos.

Aqueles cubículos e galerias escuras de Santa Ifigênia (filha de Hirtacus, noiva de Mateus) e suas minúsculas oficinas de desbloqueio de videogames estão povoados por meus antigos fantasmas do subúrbio e por colegas da velha escola que nos ensinou a romper as barreiras do Sistema, depois a mudar as coisas por dentro de Sistema, e finalmente, a me desviar do Sistema, como faço até hoje, muitas vezes sem perceber.

Aprendi a passar pelo pronto-socorro e retirar uma senha antes de cumprir outras tarefas, para voltar duas horas depois, quando, de fato, serei atendido; a migrar do banco mais caro para o mais barato (ou vice-versa, no caso de shows de blues); a usar as brechas das companhias aéreas para viajar com milhas que, hoje, não valem mais nada; a jogar uma operadora de telefonia contra a outra, entre outros pequenos malabarismos, na medida de um possível, a cada dia mais estreito, cada vez menos provável e menos verossímil, um ponto microscópico, que, do fundo do meu Alzheimer, já mal consigo enxergar. 

Foto: Adoniran Barbosa, autor de Viaduto Santa Ifigênia, no próprio (Quero ficar ausente, o que os olhos não vê, o coração não sente)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Vexame astronômico


Com a guerra religiosa invadindo o espaço das ideologias, seja nas eleições municipais de SP-capital, seja nas presidenciais norte-americanas (ver análise do ex-ministro da Cultura, Sérgio Rouanet), temo pelo pior, inclusive na condição de ex-leitor do Charlie Hebdo, que escolheu justo este momento para ironizar a fé, tanto mulçumana quanto judaica. Em São Paulo, executivos de grandes empresas estariam planejando, à revelia do João Doria Jr, um movimento para a construção de templo de vidro e aço, sobre a Marginal do Pinheiros, em honra e adoração à Sexta-Feira. Não deve ser por acaso que o âncora do Bom Dia Brasil, Chico Pinheiro, despediu-se de seu público, hoje (21/09) com a saudação: “Graças a Deus, é Sexta-Feira!”.

É bem verdade que um amigo, conhecedor das minhas esquisitices, me ligou na quinta-feira à noite (19/9), para comentar as mudanças organizacionais do Jornal Nacional, anunciadas pelo mesmo Jornal Nacional, enquanto eu viajava de São Paulo ao Rio: algo que nem eu nem ele poderíamos supor, quando éramos obrigados produzir jornais internos de empresas, chamados house organs ou órgãos da casa: “A informação renderia, no máximo, um e-mail corporativo”, observou ele gravemente. "Não vi, não posso criticar", reclamei.

Mas admito que a exaltação (nada mineira) do Chico Pinheiro pode ter sido apenas mais um reflexo da perda de qualidade do nosso telejornalismo, em busca do próprio rabo, nesses tempos de grandes audiências pentecostais e pressões da internet, o que não assustaria tanto quanto o surgimento de uma nova doutrina capaz de transformar a Sexta-Feira numa espécie de entidade, a exemplo da matéria escura, que a ciência conhece pouco. Basta de fanatismo e conspirações das elites golpistas, vocês não acham?

Uma explicação mais simples para a empolgação do Chico Pinheiro poderia estar nessa mudança de ambiente a que ele foi submetido, ao se transferir para a Cidade Maravilhosa, depois de uma longa adaptação à Paulicéia, algo que lhe rendeu uma sisudez incompatível com o seu estágio no Clube da Esquina, embora apropriada à musculatura exigida de um jornalista de Cidade,obrigado a enfrentar destemperos de autoridades do porte da ex-prefeita e atual ministra da Cultura, Marta Suplicy.

A gravata rosa choque usada pelo âncora, nesta manhã, denunciava um estado de alma de quem seria capaz de beijar a Ana Maria Braga, se isso garantisse  um fim de expediente antecipado no Jardim Botânico.

Ok, Chico, é difícil resistir à pressão de um fim de semana carioca. O Rio tem seus problemas: a comida em alguns restaurantes, a poluição da baía de Guanabara, a diretoria de Flamengo, o trânsito e a falta d'água na “Região dos Lagos”, as ultrapassagens de ciclistas na contramão de quem corre a pé pela pista de Cooper da Lagoa e o cheiro de ralo na curva do túnel Rebouças, nessa mesma Lagoa que o Eike Baptista prontificou-se a despoluir, se lhe descontassem o valor correspondente no Imposto de Renda.

Tem, ainda, o mausoléu do César Maia (que é a cara dele), e a presença do ex-governador na campanha eleitoral gratuita, obrigando as pessoas a retirar rapidamente as crianças da sala; os engarrafamentos da avenida Sernambetiba, as UPP competindo com a falta de oportunidades nas favelas, o calor, o Carnaval, xixi nas ruas e carros sobre as calçadas ((vão dizer que em São Paulo, não se pode nem praticar uma chacina sem sofrer uma chacina).

Mas a Cidade Maravilhosa tem muitos apelos, como os fins de semana esperados ardentemente pelo apresentador-amante-da-MPB, a graciosa paisagem humana observada até nas janelas de um ônibus que cruza a praia de Botafogo enquanto atravesso a rua, as montanhas, a confeitaria Colombo, os royalties do petróleo que oxigenam a cidade, as vitrines de Ipanema, o Baixo Leblon, o chopinho bem tirado em qualquer esquina, o mate gelado, o biscoito Globo, a empada praiana e as atrizes  flagradas na praia com suas dobrinhas pelos paparazzi que alimentam os portais na internet, nos intervalos do Big Brother de Pedro Bial.

E, claro, as novidades cariocas. Ontem, por exemplo, descobri que o Meia Hora (R$ 0,50) tem uma circulação de 260 mil exemplares, a uma curta distância da tiragem do Extra, muito além das vendas dos jornais populares de São Paulo, que não chegam perto de 100 mil de exemplares. Os 7,5 milhões de publicações impressas que circulam no país estão abaixo dos Asahi Shimbun vendidos diariamente no Japão (segundo jornal mais importante daquele país). Em compensação, não temos os chineses querendo nos pegar para Cristo (desculpem) para aliviar a nossa incapacidade de espernear contra o nosso próprio governo. Aqui, tem julgamento do Mensalão!

O Rio tem outras qualidades: ontem, ao me deslocar do aeroporto Santos Dumont até o local de um compromisso e me desculpar com o taxista pela curta corrida, ouvi, como resposta, que em prato raso se come várias vezes, ao passo que num prato fundo, só se come uma vez. Na volta, fui informado, por outro taxista, que a escassez desse tipo de condução, quando chove, no Rio (portanto, raramente) é causada não pelo aumento da procura, mas, sim, pela redução da oferta, provocada pela súbita elevação do risco de acidentes: “Ninguém quer levar prejuízo, meu parceiro”, informou o cidadão, “todo mundo encosta e espera a chuva passar”.

Em outro encontro de trabalho, fui informado por uma conhecida que, ao negar um aumento a um funcionário pouco produtivo, este acabou pedindo transferência, depois de ver frustrada a sua reclamação ao chefe dela, uma vez contrariada a sua expectativa por um tradicional aumento anual, por tempo de serviço. Achei melhor não comentar nada sobre a greve dos Correios, que têm o monopólio da remessa de contas de luz, por exemplo, algo que poderia ter sido eliminado desde que as concessionárias de energia passaram a utilizar dispositivos móveis na leitura de seus medidores de consumo. 

Os tablets, aliás, já substituíram os laptops nos vôos da Ponte Aérea, embora não tenham resolvido o problema da infra-estrutura dos aeroportos, nem os atrasos das companhias. Muito menos a deseducação de passageiros que costumam se sentar em poltronas de outras pessoas, tossir sobre os seus vizinhos e falar em altos brados, com expressões com longo tempo de serviço, como as do carioca que viajou comigo anteontem: sinergia, off-shore, banner, promo, petshop, startup e “setar” (no sentido de lançar, ajeitar ou arrumar - não tenho o contexto).

Na volta, foi a vez de uma paulista explicar à sua vizinha de bordo uma espécie de happening que ela foi encarregada de promover, num espaço situado no coração dos Jardins, com música chill out, espaço performático, decoração vintage no lounge, welcome drink e araras com roupas de marca para umas comprinhas. É por isso que os jornais, dentro ou fora dos tablets, continuam sendo importantes, apesar de seus vieses, pregas e bordados.

Desta vez, estou preparado: mergulho numa explicação da natureza da matéria escura citada acima, assim chamada (atenção, fundamentalistas)  por não absorver nem emitir luz, e cujo efeito gravitacional impede a matéria das galáxias que se movem no espaço de se desmantelar e se dispersar, considerando a velocidade em que elas se deslocam:

“A única força capaz de segurar as coisas nos seus devidos lugares”, leio, “é a gravidade, e a gravidade depende da massa de um objeto. O problema é que a quantidade de matéria visível nas galáxias e aglomerados não é suficiente para gerar a atração gravitacional necessária para evitar que elas saiam voando por aí. Algum cabo invisível está segurando o carro na pista, e esse cabo é a matéria escura. Todas as pesquisas indicam que há cinco vezes mais matéria escura do que matéria visível, ou seja: todo o que a gente enxerga corresponde a 20% do que existe no universo, como se não soubéssemos da existência do ar. Este, no entanto, é feito de matéria comum. No caso da matéria escura, os cientistas não têm a menor idéia do que ela é feita”, algo que eles consideram  "um vexame astronômico".
Vexame astronômico, então, é isso?

Ilustração: Hakujaden, primeiro filme de animação colorido produzido no Japão (1958) sobre uma lenda da mitologia chinesa, A Serpente Branca, que fala de amor x intolerância.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Sangue do Diabo



26% do eleitorado paulistano (composto por 7,1 milhões de eleitores) prefere uma igreja em cada esquina (em vez de escolas), como prega o candidato que lidera as pesquisas na Capital, Celso Russomano Bom-para-as-partes, escorado no apoio do bispo Edir Macedo e sua igreja universal. Por analogia, três outros candidatos defendem o contrário: o escritor e ex-secretário da Educação, Gabriel Chalita, o ex-ministro da Educação, Fernando Haddad, e o professor de Economia e Administração da USP, José Serra. Mas a democracia, como já se disse, é o regime menos ruim da era pós-moderna, com todos os seus problemas e distorções.

Talvez o eleitorado tenha razão: o ensino público pré-ditadura, com seus pedros segundos e caetanos de campos, deixou apenas saudades. A herança maldita do governo militar veio a corroer, também, a qualidade do ensino privado, cujos núcleos de excelência se mantiveram, por alguns anos, escorados nas doutrinas missionárias católica e/ou protestante, mas sucumbiram aos apelos do mercado, conforme se observa atualmente: uma praça de alimentação, um laboratório de TI ou uma feira de trainées podem ser mais atrativos do que uma linha pedagógica alternativa, como a montessoriana ou um professor de Matemática maluco (de tão inteligente), ambos do meu tempo.

Poucas exceções restaram desses antigos centros de excelência, mas a estrutura vitoriana dos ensinos público e privado se manteve. Em parte por culpa nossa, a geração dos sessenta e setenta, que optou por não se meter mais em confusão, por comodismo ou por falta de tempo. Quando meus filhos concluíram o ensino médio, as raríssimas reivindicações de pais eram tratadas como caprichos de crianças insubordinadas; matrículas e mensalidades eram pagas antes dos períodos de prestação de serviços. Nenhum professor debatia o seu programa ou critérios com as famílias das crianças.

Em falta de boas escolas e faculdades, talvez o melhor mesmo seja garantir um terreninho no céu, para depois deste vale de lágrimas, onde o sofrimento é certo: por que melhorar o transporte público ou reconstruir ferrovias se a cada tropeço do PIB (Produto Interno Bruto), vamos despejar mais dois milhões de automóveis nas ruas? - Do jeito que está, a saúde pública serve melhor aos projetos megalômanos de poder de agremiações políticas, fundados na corrupção que paralisa a administração pública ou no pragmatismo de líderes embriagados por sua visão deformada de mundo e de política.

A habitação e o trabalho passam pelos mesmos caminhos tortuosos. A energia e a produção agrícola, que funcionam, dão-se o direto de ignorar os princípios elementares da sustentabilidade. Melhor não pensar.

Quem, portanto, vai tirar a razão dos eleitores de Russomano Bom-para-as-partes? – Nada como o consolo divino. Fora isso, a campanha política, na TV, é uma farsa tão insípida que não consegue despertar o menor interesse por parte do público, sobretudo quando comparada à colcha de retalhos de clássicos da Literatura que compõe a novela das nove, que vem logo a seguir, encenada por profissionais.

Lembram-se do Sangue do Diabo? Tanto a igreja em cada esquina como a campanha política em sí são variações da mesma substância, para não se falar do próprio diabo, que, finalmente, deu as caras, na BR 324, na Bahia, no último sábado (8/9) tendo sido devidamente autuado pela Polícia Rodoviária Federal que lá, para nosso alívio, não está em greve.

Em artigo publicado ontem (11/9) no Estadão, o PhD Alexandre Barros, da Universidade de Chicago, que deve ter aproveitado a greve deles para falar com a gente, sugeriu um ensino customizado, lembrando que sua própria dificuldade em Matemática (Discalculia) não o impediu de curtir os princípios de Malba Tahan (O Homem que Calculava, Editora Record), de aprender Física com seu Poliopticon e Química com o seu Laboratório Químico Juvenil (foto), que me dá saudades do professor José Atílio Vanin. Com esse laboratório, Alexandre afirma ter produzido um líquido fluorescente e tinta invisível (nenhuma analogia com o seu texto).

No outro dia, uma sobrinha minha, formada em Oceanografia, explicou da seguinte forma as propriedades dos lenços removedores de esmalte que ela usava durante uma viagem que fazíamos juntos: “Deve ter um pouco de acetona para quebrar as moléculas do esmalte, um álcool para ajudar a diluir e alguma glicerina para que elas escorreguem para o papel, onde vão ficar presas nas fibras, enquanto o solvente evapora”. Perfeita aula de Química, do jeito antigo: - Boa, Mariana.

É preciso reconhecer que, antigamente, pais e brinquedos educavam em casa, a escola era apenas um complemento. Hoje, quem educa é a TV e a web. Mas com a orientação adequada, você consegue extrarir algum conhecimento dessas duas ferramentas, substitutas dos Tesouros da Juventude. Quer ver? – Para a tinta invisível, basta misturar suco de limão e leite; depositada sobre uma folha de papel, a mistura vai revelar o que foi escrito quando se aquece o papel.

Já o Sangue do Diabo se fabrica com dois dedos de álcool, dois dedos de água, uma colherinha de fenolftaleína e uma tampinha de frasco com amoníaco. O resultado mancha (como essa campanha política na TV), mas evapora logo, para que a gente esqueça o estrago e vá brincar de outra coisa, ou fazer a nossa lição de casa, esta sim, que não pode mais esperar.

Sugestão: antes de votar num vereador, em São Paulo Capital, onde uma cadeira na Câmara custa, em média R$ 8 milhões, consulte o ranking da Ong Voto Consciente.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Miudezas

Nada mais fútil do que aqueles kits de emergência que ficam nos banheiros dos hotéis, com agulhas, seis tipos de linha, dois botões e um alfinete de fralda do tamanho de uma mosca varejeira: tenho três desses no armário do escritório, há anos. O nome é vanity pack. Guardo, ainda, um sewing kit (conjunto de coser, ou costurar), um midnight recover (máscara reparadora noturna), um protetor auricular e uma calçadeira de plástico, sem falar nos hidratantes, óleos de banho e uma infinidade de outros pacotinhos feitos para brincar com a nossa tara por brindes e miniaturas.

Descubro, pela Internet, que tem muita gente ganhando dinheiro com isso, enquanto eu me preocupo com essas porcarias quando viajo, sempre a trabalho. Também coleciono artigos de cultura inútil das revistas de empresas aéreas, como “Nosso poder de digestão segue o ciclo do sol”; “Cinco palestras imperdíveis”; “A conferência que quer mudar o mundo” (falando sobre o TED-Technology, Entertainment, Design, de Harvard), e “Insensatez”, sobre a falta que fazem casas de bossa nova no Brasil, como as de tango, na Argentina, ou as de jazz, em Chicago.


O diabo mora mesmo nos detalhes: não consigo pagar R$ 25,00 ou US$ 14 por um drinque nos bares dos hotéis; atravesso a rua para beber mais barato, em vez de procurar a loura misteriosa que distrai a imaginação de executivos de camisa amassada nesses lugares de pouso. Às vezes, compensa: um passeio de algumas quadras no bairro de Palermo, em Buenos Aires, pode revelar letreiros interessantes: Alma Secreta (estética integral), No somos santos (bistrô), Demorate aqui (joias), Atempo-hotel.

Acho engraçado receber um release falando de um novo tira-manchas à base de frutas cítricas – devolvo, sugerindo à remetente enviar ao pessoal que cobre o Mensalão – mas não absorvo premissas óbvias como: não tentar sair de Curitiba de avião, no inverno, antes das dez da manhã. Na semana passada, acordei, mais uma vez, de madrugada, para pegar um vôo às 8h30, que na minha chegada ao aeroporto, às 7h15, tinha sido cancelado.

As empresas aéreas, embora também estejam na mira da Grande Gerente, como as de telefonia e as de saúde, adoram reacomodar seus passageiros de dois ou três vôos cancelados num terceiro, que geralmente sai lotado, muito mais tarde, levando clientes que passaram horas espremidos nas salas horríveis dos aeroportos (o limite de atraso dessas empresas, antes que a brincadeira saia caro, é de quatro horas). A culpa é quase sempre do clima, mas chover no molhado é falar da Infraero, cujo sinal de Internet, no aeroporto de Curitiba (como na maioria dos demais), funciona menos do que a própria Infraero.

Pedi ao pessoal da Transportes Aéreos Marília que me liberasse o sinal de wi-fi da sala vip da empresa (mostrei o meu cartão de embarque, mas não tinha o cartão azul, de quem já aguentou 50 mil milhas, nos últimos meses). O burocrata do check-in me respondeu, feliz: “Não podemos”, no exato momento em que o Marco Bologna disputava uma partida de pólo em Porto Feliz, a convite do famoso champagne francês.

Longe de minha parceira, de cujo modem costumo me aproveitar, nessas ocasiões, fui até a Sala Vip, onde uma funcionária mais adequada ao seu público me concedeu uma hora de sinal grátis, a título de promoção. Passei novamente pelo raio x da PF que, nesse dia, estava trabalhando normalmente, mas, de volta à sala de embarque, o sinal parou de funcionar, afugentado pelo cheiro de manteiga rançosa que tomava conta do ambiente.

O aroma da lanchonete me fez lembrar da história ouvida na véspera de um colega, Humberto Pintado de Souza, que tem uma agência de notícias no Rio, e que foi procurar escola para os filhos, na semana passada, tendo sido convidado por uma das grandes empresas do setor a conhecer as suas instalações, começando pela praça de alimentação que, de acordo com a coordenadora pedagógica, contará, a partir do ano que vem, com restaurantes das bandeiras mais famosas do mundo. Perto de mim, o Humberto é um santo: avisou, educadamente, à moçoila, que entraria em contato, na primeira oportunidade.

Curitiba tem um ar laico, ou menos católico, que me atrai: conheço uma igreja que virou depósito de materiais numa área industrial, depois que a comunidade do entorno foi devidamente compensada pela construção de um novo templo. A mesma empresa mantém uma boa área de mata nativa, onde velhas araucárias resistem à fúria paranaense do soja.

Os traços da imigração européia estão na pele clara, nos cabelos alourados e nos gestos contidos, mas a ilusão de civilização cosmopolita que é vendida aos migrantes de Cascavel, Guarapuava e Cornélio Procópio, cessam aí: Ratinho Júnior, filho do Carlos Massa (aquela mistura de Mazzaropi com o Cão Detetive Rabugento) é o primeiro colocado nas pesquisas para a eleição do novo prefeito. O que posso dizer, como paulistano (adotado), se o Russomano bom para as partes divide, com o Serra e o Fernando Haddad, as preferências do nosso eleitorado? Pelo menos, penso, em São Paulo, casais que frequentam restaurantes não se sentam separados por gênero, como aqui: meninas de um lado, meninos do outro.

Tem mais: no restaurante em que me encontro, a senhora da mesa ao lado (que tem um ar de juíza) paga a conta do casal de namorados, e pergunta ao filho pelo pai dele, seu marido. O garoto explica, com um risinho irônico, que o velho não pôde vir por estar assistindo à novela das nove; essa mesma novela ganhou uma página do segundo caderno do Estadão de ontem (28/8) porque o diretor leu Dostoievsky. Convenhamos: os plágios não são perceptíveis à maioria das pessoas, e ele soube eleger a Débora Falabella, que faz todo mundo em volta brilhar, e José Abreu, egresso do bom teatro curitibano.

Nas ruas dos bairros de classe média de Curitiba por onde passei, nesta visita (Água Verde, Batel, Bigorrilho, Centro Cívico) o tráfego é veloz, sem compaixão para com os pedestres: aproveitem, vocês estão a dois passos de se arrastar pelas ruas, como nós, cariocas e paulistanos. Moto, nem pensar: aqui, quando não morremos atropelados por madames de Land Rover, somos autuados por marronzinhos escondidos nas sombras, com pistolas-radares.

Mas os paranaenses em Curitiba trabalham duro e são bons comerciantes: o atendimento, nas lojas e empresas de serviços, é impecável. Penso nisso quando o mâitre do restaurante onde descanso do dia pesado se aproxima, para anunciar, solícito: “Nós vamos se mudar. O nome do endereço eu esqueci; não, espera: é Teixeira Coelho”. O vinho e a comida estavam ótimos, mas não posso recomendar o local, com medo de apanhar.

domingo, 29 de julho de 2012

Antiturista


Sei que deveria estar escrevendo agora sobre a mudança da estação na Serra da Canastra, refúgio que divido há anos com o lobo guará, o tamanduá-bandeira e gente com sobrenome de gente, como o Eninho da Gasparina, o Antonio do Chico e o Ebenezer Júnior, e onde o João de Barro e o Xexéu vêm rareando desde que o tucano aprendeu a pescar os filhotes deles na casa de um e na bolsa do outro, nesse tempo em que as frutas do mato e das fazendas dão lugar à florada do inverno, sarapintando de cores o mato dourado daquelas montanhas cheias de nascentes, rios e cachoeiras.

Mas o trabalho não me tem dado trégua e eis-me enviado, hora para outra, ao outro lado do mundo, para um lugar que, no tempo do Marco Polo, se chamava Sião, no meu, Indochina (do Vietnã) e hoje abriga o Taciano Dantas, diretor financeiro da Coca-Cola para a Ásia: Prathe Thai, em sânscrito, ou Tailândia, em português, a terra do tsunami de 2004 (na costa de Andaman), da paradisíaca Phang-Nga, ao sul, onde foram filmadas as cenas de 007 contra Goldfinger; das místicas Chiang Mai e Chiang Rai, ao norte, onde repousa o Buda mais perfeito do mundo, e da histórica Kansanaburi, ao centro, que inspirou o filme A Ponte do Rio Kwai. Ko Phi Phi, do filme A Praia, fica no extremo sul e me disseram que hoje, vive lotada de turistas que andam em barcos de sete andares.

O meu primeiro olhar estrangeiro foi para os templos, belíssimos, que se sucedem como as igrejas evangélicas no Brasil, quando a nossa impressão é de que haveriam uns poucos, citados nos catálogos turísticos, como relíquias. Perguntei ao funcionário da ONU em Bangkok onde achar o que comer por ali, sendo sábado, e ele me apontou um templo vizinho, dizendo “lá dentro” com o indicador voltado para um arco feito com o braço esquerdo fechado no tórax. Passei por um ambulante de espetinhos descoloridos e fui seguindo o movimento até despertar num velório, com pessoas vestidas de preto e ar grave, como convém à circunstância.

A última despedida acontece num crematório voltado para um pátio com o aspecto de uma pequena rua, cercado por prédios menores onde se realizam as cerimônias que não tive tempo de entender: comida, sujeitos vestidos de branco e sacerdotes budistas entoando seus mantras. Uma das salas de velório devia ser do falecido que acabava de ser depositado no forno: dezenas de coroas, mas nenhuma pessoa rezando; na outra, jazia um militar, cercado pelo desdém de seus soldados; em outra, uma mulher. Continuei perambulando em busca de uma lanchonete que se tornara uma lembrança da minha primeira intenção, e no alto de uma escada, encontrei uma sala de vidro cheia de caixões em cima de mesas, cada um identificado pela foto do seu conteúdo.

Resolvi me retirar ao ser convidado a participar de uma das cerimônias, não sem antes conhecer o templo principal, à direita do crematório, e que, naquele momento, estava fechado, como tentou me explicar um guarda sonolento com cara de criança. Um outro surgiu de dentro uma casinha de apoio para me dizer, numa espécie de inglês, que a igreja abriria às quatro e fecharia às seis. Eu tinha perdido a fome, mas expliquei que buscava um lugar para comer e o sujeito praticamente me pegou pela mão e me levou por uma ruela que não se vê do pátio do templo, até me depositar numa rua transversal com muito movimento, em frente a uma lanchonete onde, por deferência, pedi um prato do dia, que se compunha de uma tigela de arroz com pedaços de galinha, um camarão praticamente vivo e alguns anéis de lula com restos de suas entranhas. Acompanhava o prato um caldo com alguma coisa boiando que engoli depressa, me sentindo um voluntário de guerra.


Mais tarde, escapei do happy hour na ONU para conhecer o interior do templo, ornado por paredes de pano bordado e presidido por um Buda dourado, tranquilo e deslumbrante. 

O Buda está em toda parte, na Tailândia, do cumprimento usual das mãos juntas sobre o peito, dos locais aos estrangeiros, às incontáveis miniaturas, inclusive uma de se pendurar no berço de recém-nascidos, estátuas e palanquins-altares que se vendem na beira das estradas, como nossas panelas de barro, bananas ouro e casinhas de cachorro.

O que não está, nem nos folhetos, nem das reportagens de turismo, é a informação de que os taxistas, inclusive em Bangkok, não falam qualquer língua ocidental, exceto, alguns, umas poucas palavras de inglês, embora sejam muito prestativos, como todos os tailandeses, o que, às vezes, chega a exasperar almas atormentadas como a minha. Eles fingem entender o que você quer, ou fazem você acreditar que o seu pedido foi atendido, mas algum tempo depois, admitem que nada do que você disse ou pretendeu foi percebido. Preciso dizer isso à Marisa Monte: gentileza demais, atrapalha.

Depois de visitar o Grande Palace, um conjunto arquitetônico de templos e palácio erguido no século 18 inspirado e em substituição a uma vila semelhante, destruída pelos birmaneses na então capital Ayuthaia, descobre-se que tanto os taxistas quanto os pilotos de tuc-tucs (versão moderna dos riquixás) devem ter feito estágio no Carnaval carioca, uma vez que se recusam a atender os turistas pelo preço indicado pelo taxímetro: depois de andar e falar muito, saquei o meu PhD em Brasil e convenci um motorista a me levar até uma estação de trem, ali perto, que também abriga uma parada da única linha de metrô da cidade, mas que passa pela região central, dos grandes hotéis.

Dois outros  passeios são ensinados pelos hotéis. No que eu fiquei, aliás, havia um festival brasileiro que durou toda a semana, com gritos de Ivete Sangalo ecoando pelos quartos até tarde da noite. Um dos passeios é, justamente, à antiga capital, Ayuthaia, que fica a 90 km da capital e oferece as ruínas da invasão birmanesa e elefantes que carregam turistas nas costas por cerca de 300 metros, como pôneis na praça central de Atibaia-SP ou em Poços de Caldas-MG. O outro é ao Templo do Tigre, em Kanchanaburi, a 184 km, onde se pode posar ao lado de alguns tigres cansados dos exercícios matinais e de barriga cheia: funciona das 12 às 15 horas. Nada é perto, na Tailândia: o trânsito é infernal, e leva-se no mínimo duas horas para ir a qualquer lugar fora de Bangkok.

A grande diversão, além da comunicação difícil, é o floating market de Ratchaburi, que eu e meus parceiros de viagem já tínhamos intenção de visitar: assim como a moeda, que você só consegue enxergar acima de 30 unidades (um dólar), os preços flutuam mais que os barcos, em canais que se parecem com  ruas e avenidas coalhadas de canoas a motor levando turistas do mundo todo, mas, principalmente, asiáticos. As lojas são administradas por famílias da comunidade local. Se alguém se interessa pela mercadoria, o lojista puxa o barco da pessoa para si e começa a negociar. Comprei um par de apitos de imitar passarinhos por 400 bath, dos quais, um parceiro de viagem, mais adiante, comprou três por apenas 100 bath. Mas consegui um conjunto de velas por 300 bath, idêntico ao que a minha colega havia comprado por 500 bath. Aleguei que não tinha mais dinheiro, o que era verdade.

A cultura local tem muitas curiosidades: a adoração do povo pelo rei (existem outdoors de Bhumibol Aduliadej por todo o país), os prostíbulos exclusivos de japoneses e os ladyboys (garotos mulheres), travestis que foram criados para agir como mulheres, geralmente os terceiros filhos de famílias que já possuiam dois meninos, para ajudar no equilíbrio emocional da casa. Há, também, os escorpiões, lavas e gafanhotos no palito, que, em Bangkok, já foram mais populares. Bons restaurantes servem uma comida assemelhada à que se encontra por aqui, mas nada parecido com as iguarias de uma Carla Pernambuco, por exemplo.

Se você diz que é do Brasil, a primeira palavra que vem é “football” (não soccer), seguida por um torto “Ronaldo”. Nosso piloteiro do floating market foi o único a dizer “Neymar”. Mas o mais me chamou a atenção foi um aviso pregado nos táxis, mostrando um circulo com uma transversal sobre um traseiro que expele uma nuvem de gás, o que quer dizer, sem meias palavras: proibido peidar.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Conselho de Mãe


D. Eugênio Salles apoiou abertamente a ditadura e rezava missas encomendadas pelo Dr. Roberto, meu xará, sempre que um incêndio destruía um lote de equipamentos da TV Globo, inicialmente bancados pela associada Time-Life, mas assegurados em nome dos proprietários locais. Por trabalhar no jornal da Casa, tive que “cobrir” pelo menos uma dessas celebrações. Segundo a lenda, foi assim que a família consolidou a sua participação majoritária no império em que se transformou a Venus Platinada. Eu não teria me lembrado disso, se o caixão do velho sacerdote não tivesse sido adornado por uma pombinha branca, nas fotos das primeiras páginas dos nossos jornais de anteontem (11/7), anunciando o seu velório.


Se a pombinha fosse Espírito Santo, certamente teria escapado para a foto ao lado, do maranhense, Rejaniel de Jesus Silva Santos, que encontrou R$ 20 mil roubados de um restaurante japonês, na fria madrugada de segunda-feira, 9/7, e os devolveu à polícia, tendo merecido, por isso, o reconhecimento e uma nova chance de se readaptar à sociedade (se o restaurante fosse brasileiro, ele teria recebido um vaucher para 30 refeições gratuitas): acordar cedo, lavar o rosto, pegar o caminhão, limpar peixe, jogar água, comer, dormir e acordar de novo para, quem sabe, um dia, poder voltar a ser vagabundo, como na história do meu sábio amigo napolitano, Elio Cepollina, com suas sete décadas de trabalho duro, nas costas e no olhar, sempre benfazejo.

Ainda nas noticias de anteontem, inspiradas em Voltaire, tivemos a frase do prefeito de Palmas, Raul Filho, na CPI do Cachoeira: “Tive a infelicidade de ser filmado”. Lembro: estamos às vésperas das eleições. Nesse mesmo dia, o presidente do PT, jornalista Rui Falcão, deu a entender que a proximidade das eleições pode privar, momentaneamente, o egrégio STF de sua capacidade de discernimento. Enquanto folheio o jornal, recebo a mensagem de um vereador que me pede votos, a partir do Litoral. Não ouvia falar do sujeito há exatos quatro anos. Devolvo com fotos da minha rua alagada, sem iluminação pública até hoje, e logo me chega uma resposta padrão, agradecendo o meu apoio.

Estamos purgando os anos de ditadura, me diz um amigo. Será? Será que o ex-futuro procurador do Estado, Demóstenes Torres, não teria acordado, nesse sagrado dia 11/7, acreditando que podia escapar da cassação? – Terminou o dia, vejo depois, dizendo que mentir não fere o decoro.

Ainda sobre a ditadura, achei forçada a comparação entre a presidente Dilma Rousseff e o general Ernesto Geisel, quanto ao estilo de governar (firmeza, tecnocracia, nacionalismo) mas, certamente, a insolência do presidente eleito da CUT, Vagner Freitas, contra o STF (9/11, dia da Revolução Constitucionalista de 32) tem raízes na imaturidade jurássica do nosso Golbery de Cruzeiro do Oeste. Ambos ameaçaram mobilizar as massas em defesa dos acusados do Mensalão. Seria de que jeito, meus bons amigos? - Com uma Festa da Achiropita ou com show de Zezé di Camargo, incluindo o sorteio de um Volkswagen zerinho, na porta da Ford?

Em matéria de sindicalismo tupiniquim new order, sou mais o Paulinho da Força, que não engana ninguém. Aliás,  o Paulinho já merecia uma ponta em show da Chayenne (grande Cláudia Abreu) na novela das sete. Vou dar a ideia ao Jorge Fernando. Falta ousadia às novelas da Globo. Afinal, se os sindicatos podem organizar atos públicos montados em torno de uma leitura de poemas de Drummond, por que a novela não pode ser ambientada num evento sindical? – Passei por um desses protestos, ontem (12/7), em frente à sede do IBGE, na rua Santa Luzia, no Rio, e não resisti. Perguntei, numa rodinha de gresvistas: - Vocês são quantos? Minha vontade era perguntar: - Têm certeza de que não preferem trabalhar na iniciativa privada? (ninguém mais pode chamar ninguém de malufista).

A propósito de ditadura, direita, esquerda, coisa e tal, perguntei, hoje, ao José Dirceu, via Facebook de um amigo, se ele não gostaria de mobilizar as massas contra o Ronaldo Caiado, que atropelou alguns itens da MP do Código Florestal, ontem, e prometeu passar um rolo compressor nas demais restrições que trazem insegurança jurídica ao produtor rural. Mas reconheço: nem pagando uma verbinha de US$ 10 e dando sanduíche, como os Kirchnner. Perguntem ao Ariel Palácios. As pessoas querem chinelo e TV a cabo. Além do que, mobilizar as massas em favor dos acusados do Mensalão, convenhamos, seria como dar bom dia a cavalo e depois, pedir ao cachorro para tomar conta da empada jogada às galinhas.

Veja bem, Dirceu: uma amiga minha (eu também tenho amigas) frequenta um grupo de discussão, numa rede social, chamado Conselho de Mãe. A maioria das frequentadoras, como o nome sugere, é de recém-mamães. Você sabe que, do ponto de vista plástico, essa não é a melhor fase das mulheres. Pois bem. Não é que uma personal trainner saradona descobriu o grupo e resolveu anunciar seus préstimos justamente nesse fórum? – Massagens, relaxamento, coisa e tal – tudo a domicílio. Ao lado, uma foto, provavelmente destinada a estimular as participantes a alcançar as formas da professora. Uma coisa meio Pigmaleão, como, às vezes, meu amigo, você se coloca. Não deu um minuto para essa minha amiga, que nasceu e cresceu na Moóca, comentar:

- Filha, com esse seu corpão, você não entra na minha casa, mas de jeito nenhum! Em menos de 3 minutos, o comentário tinha recebido 56 curtições e 25 manifestações de apoio. Claro, ninguém nunca mais ouviu falar da tal personal trainner. Moral da história: melhor deixar para lá essa história de mobilizar as massas contra o julgamento do Mensalão.


segunda-feira, 4 de junho de 2012

Toca Legião Urbana


É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã: nunca fui tiete do Legião Urbana (sou do tempo da Dolores Duran), mas achei o bárbaro o tributo que os remanescentes do grupo, Marcelo Bonfá e Dado Vila Lobos, acompanhados pelo Wagner Moura e pela imensa plateia de adoradores da banda prestaram a Renato Russo, nos dois shows promovidos no Espaço das Américas, em São Paulo, nos dias 29 e 30/5. Vi a gravação pela MTV, ontem, 3/5, no aquecimento ao MTV Awards, que é a praia do Charlie Sheen e do ex da Katy Parry (Russel Brand). Além de tudo, o tributo ao Legião trouxe a emissora de volta à vitrine da mídia, sob a batuta do mestre Zico Góes.  
Um tititi mal humorado circulou na rede com piadinhas do gênero “Wagner, como Renato Russo é um ótimo Capitão Nascimento”, mas ninguém de bom senso esperava um cantor afinado. O cara foi às alturas, como qualquer fã, e não comprometeu a usinagem do ator. Talvez tenha se emocionado um pouco além da conta, ao cantar a sua preferida Andrea Doria, mas no conjunto da obra, esteve impecável. Muito bom que as pessoas se lembrem de canções como Índios, Que país é este, Monte Castelo, Faroeste Caboclo, Eu sei.

Na manhã de ontem, depois de uma corridinha de domingo no parque, tive que virar a cabeça para ter certeza do que via e ouvia: um pai de classe média alta, presumo, acompanhado por um amigo, ensinava o filho, que aparentava uns sete anos, a ter atitude:

- É fácil fazer a bicicleta durar. Basta aprender a dizer não. Se você der alguma coisa, eles sempre vão pedir mais. São uns arrombados, uns fdap, têm que se f..., manda eles à pqp. O único jeito de as suas coisas durarem – repetiu - é nunca emprestar nem dar nada a ninguém.

Fiquei assistindo àquela cena, perplexo – eu, que não sou nenhum gentleman – e, enquanto os três se afastavam, notei uma grande estrela de David tatuada nas costas do suposto pai (ele estava sem camisa), o que me fez refletir sobre a ignorância e o ódio.
Pouco depois do parque, na domingueira lá de casa, minha filha e o namorado me contaram a seguinte história: na fila da reinauguração do Teatro São Pedro, com Eudóxia de Barros e Julio Medaglia, um desvalido lhes pediu um ingresso, depois de um breve relato de como a bebida lhe estragara a carreira na Música. Nesta, ele buscaria algum alento. Chorava, mas parecia sóbrio. Recebeu o ingresso. No meio da peça, levantou-se da poltrona e começou a gesticular e a esbravejar com algum inimigo imaginário, em altos brados. Foi retirado à força. A beleza tragada pelo vício.

Na mesma noite desse episódio, do outro lado da cidade, eu e Jack Daniels seguíamos a guitarra incandescente de Joe Bonamassa, que não conseguiu lotar nem a metade da casa em que encerrava uma turnê, iniciada há quatro meses, em Lisboa, Portugal. Bonamassa não fabrica fetuccine, como o nome sugere, mas já foi considerado, pela Classic Rock Magazine, “a melhor definição do Blues-Rock contemporâneo”. Circulam, sobre ele, baboseiras como “melhor guitarrista do mundo” ou “o novo Eric Clapton”. A caminho do meu show, que, aliás, estava repleto de pais quarentões e seus filhos adolescentes amantes de boa música, passei por um congestionamento-monstro, formado na porta de outro show, este do Fábio Júnior.

Tinha coisas piores acontecendo na cidade: fiquei com medo de ser confundido com material reciclável por algum voluntário da Virada Sustentável; pavor de encontrar alguém que quisesse comentar comigo a estreia de A Fazenda, de encontrar o Paulo Maluf no meio de um filme na TV, ou de dormir depois do almoço e sonhar com o Faustão, de cuecas, brigando com a Giselle Bundchen num Tribunal de Justiça. Na semana passada, tinha sonhado com um roda-viva formado pela Hebe, o Amaury Jr, o , a Marília Gabriela e o Da Tena, todos entrevistando o Zé Sarney.

Mas o mundo continuou girando como uma bola de espelhos, e refletindo: o garoto branco da costa leste cantando voz rouca do Mississipi; o bêbado que atravessou a Cerro Corá na frente do Júlio Medaglia; os bispos evangélicos marchando contra o fim do aluguel na TV aberta; a dúvida da Carol Portaluppi entre posar nua ou receber uma verba equivalente do papai Renato Gaúcho; os cascudos do MMA chorando feito criança; o Brasil perdendo mais uma para o México; o pibinho do Mantega; o naufrágio de mais uma CPI e a seca do Nordeste (138 municípios), chegando às manchetes, mas sem conversar com a Rio + 20, que começa na semana que vem.

Sunday, bloody sunday. Pelo menos, o autor da canção, embora ajude muita gente, está cada vez mais milionário, e na condição de irlandês, não precisa participar das homenagens à Rainha. Quanto a mim, resta o consolo de saber que os meus filhos me entendem (um pouco), talvez por terem ouvido, na marra, Crosby, Stills Nash & Young, (Ensine bem as crianças, o inferno dos pais vai logo desaparecer), muito antes da MPB da segunda geração. Mesmo assim, precisei do tributo ao Legião Urbana para resolver o meu domingo. Ave Renato Russo.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Português e Matemática

Carnaval x Quaresma, de Pietr Bruegel

Tem tanta coisa acontecendo, que a crise internacional e os sinais de fumaça que o ministro Mantega mandou para a Geral, lá do Planalto, vão se dissipando mais depressa que o enxofre e o CO2 que poluem o nosso ar. Querem ver? – O Pedro acordou. Bom para a família, ótimo para os jovens cantores sertanejos que agradecem às orações de milhares de fãs, todos os dias, pelos telejornais, mas para mim, que nem conheço o rapaz, o que mais significa? Segunda notícia: a rainha da Inglaterra visitou a feira de flores do Chelsea, em Londres, aquele bairro cujo time de futebol acaba de vencer a Liga dos Campeões da Europa. – Ok, mas quem vai comprar todas aquelas flores? – A Grécia?

Carlinhos Cachoeira não falou na CPI, outra informação do dia. Honrou o nosso acordo secreto de manter o meu post aí abaixo, “Fale com ela”, atual. Crônica que eu, erroneamente, havia datado. Ele não disse nada, mas a Xuxa foi convidada para depor numa outra CPI, depois de revelar, no último domingo, em cadeia nacional, ter sofrido abuso sexual na infância. Livrou-nos, com a sua coragem, de um grande mal: achar que havia alguma coisa errada no fato de ela não gostar tanto assim de companhia masculina, exceto a dos campeões nacionais, Ayrton Sena e Pelé. Não consultei a minha terapeuta para saber se esse reconhecimento me obriga a ver o programa da moça, nas tardes de sábado. 

Os 100 anos que Nelson Rodrigues faria, em agosto, ensejaram, com o perdão da palavra, uma boa crônica do chato do Arnaldo Jabor, um de seus melhores discípulos (OESP, 22/5/2012). Mais: a filha do Datena posou para uma grife de maiôs e o Paulo Coelho deixou-se fotografar ao lado da modelo tcheca Karolina Kurkova, em Cannes. Karolina, quando jovem, teve problemas com a própria altura, como Clint Eastwood, que resolvia o bulling da infância e da pré-adolescência (era magro e desengonçado) na base porrada.  “As coisas eram mais simples”, disse à revista Piauí deste singelo mês de maio. “Vivemos uma geração meio mariquinhas”.

Clint é um bom cineasta, como Jabor, mas não conseguiu emplacar o seu filme recente, J.Edgar (Hoover), com Leonardo di Caprio. Um produto que o crítico, Luiz Carlos Merten, do Estadão, gostou (“adoro quando diretores machos abordam o universo gay – batem duro, mas há neles uma compaixão pelo sofrimento que os diretores gays, como o Visconti, não conseguem ter, sem cair na autocomiseração”), mas considerou depressivo. “O homem que reformou o FBI, perseguiu obsessivamente o comunismo e chantageou poderosos, era apaixonado pela mãe e, sem sair do armário, destruiu todos a quem amou”. Mais: adorava fofocar e bajular as estrelas, segundo Don de Lillo, em “Submundo”,  livro que pode ter inspirado Eastwood.

Por falar em submundo, eu, que vejo o Datena, na Bandeirantes, no fim do dia, para renovar minha fé na Justiça, o vi recusar, no outro dia, uma reportagem que a Produção preparou com carinho, por considerá-la de muito baixo nível: “Homem decepa a orelha da mulher durante uma briga”, anunciou, constrangido, tendo desabafado, em seguida: “Eu me recuso a dar essa matéria”. Raramente se vê essa coragem, no jornalismo. Provavelmente, o Johnny Saad não assiste ao Datena. Está vendo, Edir Macedo, do que você se livrou?

Mas, voltando às celebridades e às definições de direita e esquerda, das quais tratou o Jabor, em seu artigo de hoje. No ressentimento do cineasta com a malhação de seus antigos parceiros ao filme Toda nudez será castigada (1973), parceiros estes que passaram a elogiar a obra, depois que a ditadura militar a proibiu, cabe um reparo: não é verdade que toda a esquerda da época tenha odiado Nelson Rodrigues, para incensá-lo só depois de sua consagração como artista.

Ainda garoto, tive o privilégio de trabalhar a duas mesas de onde o Nelson costurava suas crônicas, na redação de O Globo. De fato, nunca lhe dirigi uma palavra. Mas tive a decência de me reconciliar com ele e de reconhecer o seu gênio imediatamente depois de começar a ler suas obras, que, até então me haviam sonegado. Quem me conhece de perto sabe a fórmula antipreconceito que usei, ao educar os filhos, mais tarde: “Eu podia ter aprendido muito com o Nelson, mas nunca me atrevi a tentar, por causa de um preconceito idiota”. 

Como as bruxas existem, recebi, justamente hoje, uma dessas bobagens da Internet, classificando comportamentos de direita e de esquerda, o que serviu para reviver discussões saudavelmente idiotas de um grupo de amigos, de diferentes culturas, que se reúne de vez em quando, como um filme de Monicelli. Havia, claro, no material, clichês republicanos e esquerdistas, pequenas crueldades e até algum humor , mas o pior é que ele chegou a suscitar uma discussão séria sobre o que é progressismo e conservadorismo, hoje: de um lado, o humanismo carola dos herdeiros de Kant,  disfarçado de consciência ambiental, de outro, a ética do indivíduo, baseada no saudável niilismo nietzcheano. Parecia uma preliminar do Cigano contra o Frank Mir. A essa altura, alguém teve o bom senso de propor que a conversa continuasse num bar.

Enquanto isso, resolvi mandar, ao grupo, os seguintes trechos de um artigo do Tomzé com a melhor definição de direita e esquerda que li ou ouvi, recentemente:
“Em Irará aprendia-se também a tabuada. A tabuada era mais misteriosa do que aqueles navios que não tínhamos onde atracar, mais enigmática do que os infiéis que precisávamos expulsar. Era uma experiência dolorida. Oito vezes sete, 56. Eu me perguntava: "Quem pode, de sã consciência, provar que oito vezes sete é 56?" Oito vezes cinco, 40, oito vezes seis, 48. Um dia, me perguntei, com medo da resposta, quanto era dez vezes dez. Dizia para mim mesmo: "Ai, minha Nossa Senhora, aí vai ser um inferno completo". Quando a professora respondeu "cem", tive um grande prazer. Pensei: Deus está bem intencionado com a humanidade, Deus está olhando pelos seus filhos, pelas suas criaturas.

Para mim, a grande criatura era o alfabeto. A mãe até ensinava, desavisada, antes que entrássemos na escola, que "b" e "a" davam "ba", "b" e "e", "bé", "b" e "i", "bi". Mas, e para entender o que era isso? Quando janeiro chegou, e comecei na escola, com meus oito anos recentes, a professora mandou ler em silêncio, e eu nunca pensei que aqueles sinais podiam transmitir coisas tão exatas como aquele texto. O texto dizia que um aluno, colega nosso, tava com um problema em casa, e então pedia licença à professora para ir para casa. Nossa Senhora, era um verdadeiro assombro! Olhei para o lado, sem acreditar que todo mundo estava vendo o aluno pedir à professora para ir pra casa, se levantar, fazer esse gesto que movimenta milhões de músculos. Eu desconfiava que aquilo, aqueles sinais, não eram capazes de transmitir a todo mundo igual ao que eu estava entendendo”.