terça-feira, 10 de setembro de 2013

Abaixe a arma!


Como todo comentarista de botequim, costumo misturar ingredientes do que se passa à minha volta para tecer uma teia capaz de reter mosquitos de atenção de amigos que eu não consigo rever todos os dias. Hoje, por exemplo, tento relacionar a elevação da funkeira Anitta ao primeiro plano da música nacional (estrela do Prêmio Multishow) e o suicídio do baixista Champignon, do Charlie Brown Jr, – fatos lamentáveis, embora não equivalentes – cuja analogia explico a seguir. Também vejo relação entre a boa matéria do Alberto Bombig, na revista Época desta semana (Haddad no moedor de carne) e as elocubrações de analistas sobre o futuro político de Barak Obama, tendo a Síria como pano de fundo.

Os rapazes do Manhatan Connection (Globonews, 8/9) discordaram sobre as diferentes modalidades de genocídio, com ou sem leite, açúcar ou crianças espumando. Já o povo da Globonews/notícias discutiu, simplesmente, o transbordo do conflito para toda a região, sem preocupar muito com os 1.500 mortos pelas armas químicas de Assad: talvez isso não coubesse no formato programa. Prefiro as discussões do Legião Estrangeira, da TV Cultura, que reúne correspondentes no Brasil para falar de política internacional, apesar do péssimo título que, além de tudo, rima com o sobrenome da apresentadora, Mônica Teixeira. Lúcia Guimarães, do Estadão (9/9), comparou a situação de Obama à do capitão espanhol do século XV, obrigado pelos piratas a saltar da ponte de seu próprio navio.
A intellighentsia norte-americana, assim como a maior parte daquela população, repudiou/repudia o ataque à Síria, mas os estrategistas de plantão esperavam/esperam que a intervenção fosse/seja para valer. O papa Francisco perguntou qual o verdadeiro sentido da guerra, se resolver problemas ou ensejar bons negócios. Já presidente russo, Vladimir Putin, que apóia o ditador sírio, blefou descaradamente quanto à possibilidade de uma fiscalização da ONU no arsenal do aliado, enquanto Assad, em trajes ocidentais, garantia à CBS não ter assassinado civis com gases venenosos, banidos pela humanidade desde a primeira guerra mundial. Israel, por sua vez, montou o seu guarda-chuva no quintal (iron dome) e assistiu a tudo em silêncio: correr para onde?

Caberia a Obama tomar a decisão de desencorajar o agravamento do genocídio comandado por Assad, com ou sem armas químicas, tendo ou não jihadistas no grupo de rebeldes que se opõem ao ditador. Mas o presidente norte-americano, assim como o prefeito paulistano, mostrou hesitação, ao transferir ao Congresso a responsabilidade por uma decisão que lhe caberia tomar sozinho.  Como a Obama faltou coragem, o sofrimento da população síria tornou-se alvo fácil da propaganda, que dois especialistas norte-americanos em relações internacionais, Albert e Roberta Wohlstetter, definem como “barulho” (espontâneo ou calculado), que se distingue dos “sinais” que antecedem um conflito real.
Na sequência, a velha cena de comic books tomou conta o noticiário:

- Put the gun down – disse o sargento pacifista John Kerry, assessorado pelo selvagem da motocicleta, Vladimir Putin. Se o chefe dos Irmãos Dalton vai obedecer, ou sacar a arma, de surpresa, só vamos saber na próxima cena.
Enquanto isso, o nosso prefeito, Fernando Haddad, enfrenta uma situação financeira paralisante – que ele optou por não denunciar, no início do mandato, por disciplina política: se, no ato da posse, saísse atirando, poderia comprometer a aliança de seu antecessor, Gilberto Kassab, com a sucessão de sua chefe, a presidente Dilma Rousseff. Isso, no entanto, lhe teria dado um certo respiro:  – Perdeu, playboy – diria o punguista que assaltou o Paulinho da Força (e levou 300 reais).

O segundo grande desafio de Haddad também é de natureza política, como revela Bombig, em sua reportagem: em vez de nomear parceiros de partido para as 31 subprefeituras da capital, consideradas um “filé mignon” eleitoral, o menino-prodígio escolheu técnicos e engenheiros. Finalmente, no episódio das passagens do transporte público que acenderam o estopim das manifestações de junho, Haddad “foi engolido” pelos tucanos, na visão de seu padrinho político, o ex-presidente Lula.

A falta de habilidade ou a recusa do prefeito em sucumbir ao compadrio pode abreviar a sua carreira política, mas pode ter sido este, justamente, o fator que lhe permitiu conquistar 56% dos votos válidos da Capital paulista na disputa do segundo turno contra um adversário alquebrado, mas poderoso, como o tucano José Serra. No outro hemisfério, o bom-mocismo do democrata que alimentou a esperança dos amantes da liberdade contra a força do tea party pode decretar o desfecho melancólico de sua carreira. Afinal, a coragem não é um privilégio dos bravos e fortes, lá, como a cara de pau é aqui?
Na relação entre o acesso de Anitta ao trono da música brasileira e o mal-estar causado pela morte de Champignon, do Charlie Brown Jr, a questão é mais delicada. Assim como a morte do Chorão, o suicídio do baixista me comoveu, muitos anos depois de uma sensação parecida, relacionada às mortes de Hendrix, Morrison e Joplin. Tenho um amigo que gosta de comparar o genocídio da II Guerra (50 milhões de mortos) à barbárie atual, a fim de provar que a humanidade evoluiu. O objeto final do raciocínio é concluir que o Brasil, apesar de tudo, melhorou. Não concordo. Não dá para aceitar candidamente o vazio e a depressão em cabeças tão jovens, com tanto a oferecer, num país de saúde tão precária que precisa importar médicos e com uma Educação tão miserável que professorinhas são espancadas nas escolas.

Sempre me lembro de como aprendi Latim (isso mesmo) na escola pública: meu professor, Aníbal Campi, passava um texto onde a ética não era discutida em torno do suborno de um porteiro de garagem, como nas colagens aguadas de Walcyr Carrasco, e sim no meio de um temporal, em plena Odisséia. Alí também se passavam cenas de vingança, raiva, paixão, bravura, hesitação, encanto, contentamento. Era uma briga de gato e rato: eu separava um único parágrafo – mais do que isso, seria pedir muito – e o traduzia com a precisão de que era capaz. Sabia que mais cedo, mais tarde, seria convocado pelo mestre. Simples: era o marginal da galera. A questão era escolher o momento certo de provoca-lo – início, meio e fim da aula anterior corresponderiam a início, meio e fim  da aula seguinte da minha chamada oral.
Durante anos, dormi feliz, por ter ludibriado o professor mais encardido da minha escola. Demorei, mas aprendi – mais satisfeito ainda - que o logro tinha sido meu. Demorei um pouco mais para entender que essa pedagogia seria fundamental, nos dias de hoje, o ensino customizado. Parece uma exigência banal, mas está tão longe dos bancos escolares quanto a professora de uma das melhores escolas de São Paulo que pediu,  recentemente, a um garoto de seis anos, que separasse as dezenas dos avulsos contidos no número sessenta e sete, sem explicar, ao garoto, o significado de “avulsos”.

Não importa que Anitta seja a estrela do Multishow ou que a Ivete Sangallo tenha sido comparada às divas do jazz, numa reportagem de domingo do NYT, embora a sua música não diga nada. Há espaço para tudo na prateleira cultural, mas a entrevista do pianista Marcelo Bratke a Antonio Abujamra, num outro programinha da TV Cultura, Provocações, no último domingo, merecia o horário nobre de uma emissora de massa, para não dizer um telão em praça pública. O pianista ignorou o fato de ser cego, até os 40 anos, porque tentava esconder de si e do mundo essa condição. Bem sucedido, hoje, lidera o projeto Camerata Brasil, na ponta de um processo de formação musical de jovens talentos da periferia. Ah, ele também se apresenta em penitenciárias.
A história de Bratke vai ser contada pela biógrafa inglesa, Kate Snell, que se interessou pelo músico enquanto ele era um desconhecido, em seu próprio país.

Vão me taxar de elitista mas, para mim, a importância da rainha do funk, num país como o nosso, é relativa. Também acho que isso pesa mais na estética dos excluídos do que nas ruas da vila Madalena, em São Paulo, ou na zona sul carioca, que nos legaram Arnaldo, Nando, Erasmo, Roberto, Tim, Tom, Vinícius, Torquato Neto e o que veio depois. A propósito de Torquato, outro suicida que hoje me faz falta, nunca é demais repetir uma de suas belas frases:
Leve um homem e um boi ao matadouro: o que berrar é o homem, mesmo que seja o boi.

Para: Camila, Alexandre, Renata.