Há dois dias, quando nem o papa, nem os brasileirinhos
registrados com o nome de Francisco, ontem (22/7), haviam chegado a este mundo,
assim como o filho da Kate Middleton e a neve de meio centímetro, a São Joaquim
(SC), as notícias diziam que o jovem ciclista, David Santos Souza, de 21 anos,
que teve o braço arrancado e jogado no rio por seu parceiro de geração, Alex
Siwek, de 22, tinha sido atropelado pela segunda vez.
Não entendo nada de trânsito e muito menos de gente, mas
tenho me assustado com as consequências de alguns acidentes, como o que
aconteceu na manhã de 9/5, quando pensei no assunto pela primeira vez: uma carreta
havia pegado fogo, na rodovia Raposo Tavares, perto de São Paulo, “matando uma
pessoa e atrapalhando completamente o trânsito”, como narrou o Francisco
Mineiro, amigo do Francisco Buarque, no Bom
Dia, Brasil daquela quinta-feira. Duas horas depois, vasculhando a
Zero Hora (RS), por dever de ofício, fiquei impressionado com os restos da colisão
frontal de um caminhão desgovernado contra seis outros veículos, na rua Amélia
Teles, na região central de Porto Alegre.
Um mês antes, um ônibus despencara de um viaduto, na avenida
Brasil, Rio de Janeiro (RJ), matando sete pessoas, enquanto o motorista altercava
com um passageiro. Nessas horas, o vício da profissão me traz,
instantaneamente, um arquivo de ocorrências semelhantes, como a morte de um
jovem casal, em Curitiba, pelo então deputado, Fernando Ribas Carli Filho, que
dirigia completamente embriagado (2009). Há poucas semanas, um empresário de
Ribeirão Preto, Alexsandro Ishisato de Souza, atropelou sete pessoas e matou um
jovem manifestante, Marcos Delefrate, com sua possante Land Rover, que ganhou
fama com o secretário nacional do PT, Silvio Pereira, e vai ser fabricada no Brasil.
Lembro-me de ter conhecido o sistema ABS de freios
(Anti-lock breaking system) há mais de 20 anos, quando escrevia para a Mercedes
Benz (Sua Boa Estrela), assim como o
airbag e outros avanços da tecnologia automotiva, sempre estimulados pela
Fórmula 1. Os carros evoluíram, mas quem está no volante continua lá atrás (não
é piada, Rubinho).
Sou do tempo em que os desastres
bárbaros viravam histórias
tenebrosas; ferragens distorcidas eram depositadas na beira da estrada pelo vigilante
Carlos e seu amigo Lobo (foto), para servir de alerta a outros viajantes. Capotagens
urbanas eram tão raras que a gente parava em volta delas, como formigas em torno
de uma barata morta. As curvas da estrada de Santos curavam a solidão, e descer
a rua Augusta a 120 por hora era inimaginável, mesmo que se botasse a turma toda
do passeio para fora.
Dei meus cavalos-de-pau em estradas de pouco movimento, para
impressionar as garotas (nos anos 70), mas a Porsche 550 que matou James Byron
Dean, em setembro de 1955, andava a menos de 160 km/h. Hoje, 400 motociclistas morrem
nas ruas de São Paulo, por ano, sem nunca ter visto The Wild One (O Selvagem), com Marlon Brando. Quatro ciclistas são
atropelados, todos os meses, na grande cidade (um por semana). Os ineptos e os
irresponsáveis se multiplicam mais depressa que os pardais espetados nas ruas.
Um velho Ford F600 (tio
da Porsche 550 de James Dean) que um dia foi azul, me saúda no estacionamento
do Ceagesp, num sábado ensolarado. “Estamos saindo”, me anuncia a senhorinha
sansei que vai à boléia, acompanhada pelo ancião que conduz a relíquia,
provavelmente seu pai, ou avô. Nenhum problema: ambos são (foram) perfeitamente
educados. Essa é a diferença.
O mesmo clima, de educação e respeito, aliás, mantém
esticada a rede que sustenta a grande feira do entreposto paulista, armada a
menos de 500 metros da lona do Cirque du Soleil, na Vila Leopoldina. Para mim,
o varejão é a principal atração de São Paulo. Acabo de me abastecer de quatro
cenouras, cinco tomates verdes, uma berinjela, três chuchus, duas abobrinhas e
um punhado de ervilha torta, só para manter viva a geladeira, da qual deveria me despedir,
naquele dia, para férias de duas semanas. Separação difícil. Agarro um maxixe
e pergunto se é jiló, para conferir o conhecimento do atendente. Uma betoneira
enche de concreto novo o galpão ao lado, numa zoeira de obras, pregões e cores,
das quais sempre tenho saudade.
Finjo confusão depois de pedir um pé de alface americana ao
patriarca da banca, que nem me olha, enquanto observa a neta de prováveis cinco
anos, a brincar com a filha de uma cliente. A moça da família, uma flor de
lótus, me sorri, quando peço mais alguma coisa e finjo reclamar da falta de
atenção. Barganho um pouco, e me despeço, enquanto penso na novidade trazida por
meu filho, na noite em que ele vem nos comunicar a decisão de aceitar o convite
da empresa para trabalhar em outro país: “O varejão do Ceagesp vai acabar”.
Um erro administrativo, penso, motivado pelo fator trânsito,
este imperador que preside todas as nossas demais decisões. O engenheiro de
tráfego tornou-se o profissional mais respeitado pelas comunidades, mais que o
antigo oráculo grego, que o engenheiro de produção do século passado, que o pastor
evangélico da atualidade. Por causa do trânsito, a tecnologia de pagamento à
distância evoluiu: entregadores de pizza já não precisam mais ter medo de
morrer por causa de cem reais.
A viagem do Renan Calheiros e do Henrique (Eduardo) Alves
foi um erro político, assim como a estrutura que os elegeu, e que vai
permanecer a mesma. Como repórter, fiz pelo menos duas reportagens sobre erros
médicos, nos anos 80; como editor, tive que entender a definição de erro
judiciário: "má subsunção do comportamento à norma em vigor à época do
fato". Mas alguns tipos de erro
são capazes de engolir o futuro de várias gerações.
Thorndike descobriu que os animais podiam ser ensinados (ou
adestrados) pela técnica do ensaio e erro (leis
do efeito e do exercício), mas nós, brasileiros, dificilmente associamos ideias
como esforço e recompensa, e estamos custando a aprender que, para tirar 10 na
prova de Matemática, temos que abrir mão de duas horas de futebol ou de
videogame. Ou de um show da Anita, dependendo da nossa idade. Num tempo em que
mamãe e o papai ralam o dia inteiro para pagar o tênis e as lanchonetes de
marca, e que muitas famílias da suposta classe média continuam tendo mais de
três filhos, a Educação nunca se encontra.
Outro dia, numa casa de praia, perguntei aos moços da
empresa de energia que foram socorrer uma pane elétrica (e tiveram que voltar,
porque o disjuntor bipolar de 50 ampères que eu comprara, a 5 km de distância,
tinha defeito) quanto, mais ou menos, eles recebiam, para trabalhar a 70 km distância
de suas residências, numa profissão arriscada, que exige adestramento, esforço
físico e conhecimento técnico: “Mil e oitenta reais”, informou um deles, notando
ter frequentado 17 cursos de especialização.
Já os técnicos da operadora de TV por assinatura que haviam estado na mesma
casa, 24 horas antes, fazem jornadas de 12 horas, sem a chamada verba de refeição. E os cientistas
sociais demoraram a entender por que o povo foi para as ruas, em junho último.
Esses meninos são colegas de geração da moça que trabalha
com os pais, na feira de sábado, e que frequenta o mesmo Butantã do Paulo Vanzolini,
ou a Medicina da USP, do Dráuzio Varella: conheci segundos fisioterapeutas, biólogos,
dentistas, administradores de fundos bancários. Todos cordiais, brasileiros que
acordam às três da manhã para ajudar suas famílias a se manter com dignidade,
enquanto terminam seus estudos. Revendem flores, queijo holandês, maçãs
argentinas e frangos esquartejados na cidade de Bastos, vizinha da Capital. Alguns
se tornaram decasséguis – esses, acabei perdendo de vista.
O Bom Dia de hoje (23/7) informa que um manifestante atirou
um coquetel molotov num PM e que a moça que foi atacada por um tubarão, em Boa
Viagem, morreu. Tudo muito rápido, tem que sobrar mais tempo para o papa e para
a neve de cinco milímetros. Havia uma placa na praia, como as que existem na
Austrália. Lá, quando um bicho desses fura a rede, soa um alarme igual àqueles
que instalaram em Teresópolis, depois daqueles deslizamentos que sucederam os
deslizamentos do ano anterior, e todo mundo sai da água.
O telejornal avisa que os cortes no orçamento serão mais
modestos, de apenas R$ 10 bilhões, sem mexer nos gastos sociais – R$ 4,4 bilhões virão das “despesas obrigatórias”
(passagens, viagens como aquela do Renan Calheiros e do Henrique Eduardo Alves)
– e que nenhum dos 39 ministérios será extinto, nem mesmo aquele das Cidades,
cujo titular, Aguinaldo Ribeiro, do PP, está sendo investigado pela PF sob
suspeita de superfaturamento na prefeitura de João Pessoa, PB.
Eles vão continuar se matando no trânsito depois de pequenos
erros, como mudar de faixa sem olhar o retrovisor ou dirigir embriagado um
veículo de 300 hp, equipado com câmera de estacionamento, central multimídia, limpador
de para-brisa com sensor de chuva e rímel que também funciona como hidratante e
bloqueador solar. O erro continuará sendo tão estúpido quanto uma redação do
Enem, incompatível com a mente que inventou a lâmpada, o antibiótico e a vacina
contra a febre amarela; que mapeou genoma humano e que, depois, criou o
celular, a guerra biológica, os alimentos
transgênicos e os drones. Tem remédio para isso?