terça-feira, 23 de julho de 2013

A violência do erro


Há dois dias, quando nem o papa, nem os brasileirinhos registrados com o nome de Francisco, ontem (22/7), haviam chegado a este mundo, assim como o filho da Kate Middleton e a neve de meio centímetro, a São Joaquim (SC), as notícias diziam que o jovem ciclista, David Santos Souza, de 21 anos, que teve o braço arrancado e jogado no rio por seu parceiro de geração, Alex Siwek, de 22, tinha sido atropelado pela segunda vez.
 
Não entendo nada de trânsito e muito menos de gente, mas tenho me assustado com as consequências de alguns acidentes, como o que aconteceu na manhã de 9/5, quando pensei no assunto pela primeira vez: uma carreta havia pegado fogo, na rodovia Raposo Tavares, perto de São Paulo, “matando uma pessoa e atrapalhando completamente o trânsito”, como narrou o Francisco Mineiro, amigo do Francisco Buarque, no Bom Dia, Brasil daquela quinta-feira. Duas horas depois, vasculhando a Zero Hora (RS), por dever de ofício, fiquei impressionado com os restos da colisão frontal de um caminhão desgovernado contra seis outros veículos, na rua Amélia Teles, na região central de Porto Alegre.
Um mês antes, um ônibus despencara de um viaduto, na avenida Brasil, Rio de Janeiro (RJ), matando sete pessoas, enquanto o motorista altercava com um passageiro. Nessas horas, o vício da profissão me traz, instantaneamente, um arquivo de ocorrências semelhantes, como a morte de um jovem casal, em Curitiba, pelo então deputado, Fernando Ribas Carli Filho, que dirigia completamente embriagado (2009). Há poucas semanas, um empresário de Ribeirão Preto, Alexsandro Ishisato de Souza, atropelou sete pessoas e matou um jovem manifestante, Marcos Delefrate, com sua possante Land Rover, que ganhou fama com o secretário nacional do PT, Silvio Pereira, e vai ser fabricada no Brasil.
Lembro-me de ter conhecido o sistema ABS de freios (Anti-lock breaking system) há mais de 20 anos, quando escrevia para a Mercedes Benz (Sua Boa Estrela), assim como o airbag e outros avanços da tecnologia automotiva, sempre estimulados pela Fórmula 1. Os carros evoluíram, mas quem está no volante continua lá atrás (não é piada, Rubinho).

Sou do tempo em que os desastres bárbaros viravam histórias tenebrosas; ferragens distorcidas eram depositadas na beira da estrada pelo vigilante Carlos e seu amigo Lobo (foto), para servir de alerta a outros viajantes. Capotagens urbanas eram tão raras que a gente parava em volta delas, como formigas em torno de uma barata morta. As curvas da estrada de Santos curavam a solidão, e descer a rua Augusta a 120 por hora era inimaginável, mesmo que se botasse a turma toda do passeio para fora.
Dei meus cavalos-de-pau em estradas de pouco movimento, para impressionar as garotas (nos anos 70), mas a Porsche 550 que matou James Byron Dean, em setembro de 1955, andava a menos de 160 km/h. Hoje, 400 motociclistas morrem nas ruas de São Paulo, por ano, sem nunca ter visto The Wild One (O Selvagem), com Marlon Brando. Quatro ciclistas são atropelados, todos os meses, na grande cidade (um por semana). Os ineptos e os irresponsáveis se multiplicam mais depressa que os pardais espetados nas ruas.

Um velho Ford F600 (tio da Porsche 550 de James Dean) que um dia foi azul, me saúda no estacionamento do Ceagesp, num sábado ensolarado. “Estamos saindo”, me anuncia a senhorinha sansei que vai à boléia, acompanhada pelo ancião que conduz a relíquia, provavelmente seu pai, ou avô. Nenhum problema: ambos são (foram) perfeitamente educados. Essa é a diferença.
O mesmo clima, de educação e respeito, aliás, mantém esticada a rede que sustenta a grande feira do entreposto paulista, armada a menos de 500 metros da lona do Cirque du Soleil, na Vila Leopoldina. Para mim, o varejão é a principal atração de São Paulo. Acabo de me abastecer de quatro cenouras, cinco tomates verdes, uma berinjela, três chuchus, duas abobrinhas e um punhado de ervilha torta, só para manter viva a geladeira, da qual deveria me despedir, naquele dia, para férias de duas semanas. Separação difícil. Agarro um maxixe e pergunto se é jiló, para conferir o conhecimento do atendente. Uma betoneira enche de concreto novo o galpão ao lado, numa zoeira de obras, pregões e cores, das quais sempre tenho saudade.

Finjo confusão depois de pedir um pé de alface americana ao patriarca da banca, que nem me olha, enquanto observa a neta de prováveis cinco anos, a brincar com a filha de uma cliente. A moça da família, uma flor de lótus, me sorri, quando peço mais alguma coisa e finjo reclamar da falta de atenção. Barganho um pouco, e me despeço, enquanto penso na novidade trazida por meu filho, na noite em que ele vem nos comunicar a decisão de aceitar o convite da empresa para trabalhar em outro país: “O varejão do Ceagesp vai acabar”.  
Um erro administrativo, penso, motivado pelo fator trânsito, este imperador que preside todas as nossas demais decisões. O engenheiro de tráfego tornou-se o profissional mais respeitado pelas comunidades, mais que o antigo oráculo grego, que o engenheiro de produção do século passado, que o pastor evangélico da atualidade. Por causa do trânsito, a tecnologia de pagamento à distância evoluiu: entregadores de pizza já não precisam mais ter medo de morrer por causa de cem reais. 

A viagem do Renan Calheiros e do Henrique (Eduardo) Alves foi um erro político, assim como a estrutura que os elegeu, e que vai permanecer a mesma. Como repórter, fiz pelo menos duas reportagens sobre erros médicos, nos anos 80; como editor, tive que entender a definição de erro judiciário: "má subsunção do comportamento à norma em vigor à época do fato". Mas alguns tipos de erro são capazes de engolir o futuro de várias gerações.
Thorndike descobriu que os animais podiam ser ensinados (ou adestrados) pela técnica do ensaio e erro (leis do efeito e do exercício), mas nós, brasileiros, dificilmente associamos ideias como esforço e recompensa, e estamos custando a aprender que, para tirar 10 na prova de Matemática, temos que abrir mão de duas horas de futebol ou de videogame. Ou de um show da Anita, dependendo da nossa idade. Num tempo em que mamãe e o papai ralam o dia inteiro para pagar o tênis e as lanchonetes de marca, e que muitas famílias da suposta classe média continuam tendo mais de três filhos, a Educação nunca se encontra.

Outro dia, numa casa de praia, perguntei aos moços da empresa de energia que foram socorrer uma pane elétrica (e tiveram que voltar, porque o disjuntor bipolar de 50 ampères que eu comprara, a 5 km de distância, tinha defeito) quanto, mais ou menos, eles recebiam, para trabalhar a 70 km distância de suas residências, numa profissão arriscada, que exige adestramento, esforço físico e conhecimento técnico: “Mil e oitenta reais”, informou um deles, notando ter frequentado 17 cursos de especialização.  Já os técnicos da operadora de TV por assinatura que haviam estado na mesma casa, 24 horas antes, fazem jornadas de 12 horas, sem a chamada verba de refeição. E os cientistas sociais demoraram a entender por que o povo foi para as ruas, em junho último.
Esses meninos são colegas de geração da moça que trabalha com os pais, na feira de sábado, e que frequenta o mesmo Butantã do Paulo Vanzolini, ou a Medicina da USP, do Dráuzio Varella: conheci segundos fisioterapeutas, biólogos, dentistas, administradores de fundos bancários. Todos cordiais, brasileiros que acordam às três da manhã para ajudar suas famílias a se manter com dignidade, enquanto terminam seus estudos. Revendem flores, queijo holandês, maçãs argentinas e frangos esquartejados na cidade de Bastos, vizinha da Capital. Alguns se tornaram decasséguis – esses, acabei perdendo de vista.

O Bom Dia de hoje (23/7) informa que um manifestante atirou um coquetel molotov num PM e que a moça que foi atacada por um tubarão, em Boa Viagem, morreu. Tudo muito rápido, tem que sobrar mais tempo para o papa e para a neve de cinco milímetros. Havia uma placa na praia, como as que existem na Austrália. Lá, quando um bicho desses fura a rede, soa um alarme igual àqueles que instalaram em Teresópolis, depois daqueles deslizamentos que sucederam os deslizamentos do ano anterior, e todo mundo sai da água.
O telejornal avisa que os cortes no orçamento serão mais modestos, de apenas R$ 10 bilhões, sem mexer nos gastos sociais – R$ 4,4 bilhões virão das “despesas obrigatórias” (passagens, viagens como aquela do Renan Calheiros e do Henrique Eduardo Alves) – e que nenhum dos 39 ministérios será extinto, nem mesmo aquele das Cidades, cujo titular, Aguinaldo Ribeiro, do PP, está sendo investigado pela PF sob suspeita de superfaturamento na prefeitura de João Pessoa, PB.

 
Eles vão continuar se matando no trânsito depois de pequenos erros, como mudar de faixa sem olhar o retrovisor ou dirigir embriagado um veículo de 300 hp, equipado com câmera de estacionamento, central multimídia, limpador de para-brisa com sensor de chuva e rímel que também funciona como hidratante e bloqueador solar. O erro continuará sendo tão estúpido quanto uma redação do Enem, incompatível com a mente que inventou a lâmpada, o antibiótico e a vacina contra a febre amarela; que mapeou genoma humano e que, depois, criou o celular,  a guerra biológica, os alimentos transgênicos e os drones. Tem remédio para isso?