quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Quebra tudo, Obama!

Cruxifixação, de Pablo Picasso

“Quebra tudo, lá!” é o que o Barak Obama deve ter ouvido dos amigos dele, em Washington, antes de embarcar no Airforce One para participar dos funerais de Nelson Madiba Mandela. O mesmo conselho deve ter chegado aos “nóias” da região central de São Paulo que, não contentes em transformar as ruas Helvétia e Dino Bueno numa favela e produzir blecautes privados nos edifícios daquela zona, como o Miri (praça Júlio Prestes), estão arrebentando bueiros e caixas de luz da zona sul, em busca de fios e placas que vão virar pedras de dois reais, como ocorreu na madrugada de hoje (11/12), na avenida Roque Petroni, interrompendo o trânsito, a 100 metros do Shopping Morumbi (semáforos apagados). Quero ver o Chico Buarque fazer disso uma canção.

Como acordei às seis, animado pelos apitos dos CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), peguei o livro do Cláudio Santos, “Macho do Século 21”, que estava na cabeceira, para reler a definição de democracia que ele tentou inventar, depois de viver quase dois anos na supercivilizada Cingapura, onde você pode levar uma chibatada por pichar um muro, ser preso por estar nú dentro de casa ou ser multado por mascar  chicletes.  Não vou estragar a sua leitura, mas vale a pena entender o que está por trás desse folclore e o que essa semidemocracia, um dos 10 países menos corruptos do mundo, devolve aos cidadãos que pagam seus impostos.
Além do ciúme de Michelle Obama, as redes sociais, ontem (10/12) estavam lotadas das tradicionais manifestações de desprezo da “esquerda”, desta vez, em relação aos sinais de pesar exibidos pelo “stablishment” pela morte do líder sul-africano, cuja luta contra o apartheid não mereceu, de parte desse mesmo “stablishment”, à época, a mesma admiração manifestada agora. Correto. Mas toda essa festa em torno do grande lider deve-se, justamente, ao seu pragmatismo, simbolizado na célebre frase de que é preciso libertar não apenas o prisioneiro, mas também o carcereiro. Pragmatismo este, aliás, derivado do socialismo no qual acreditamos – e de alguma forma, conseguimos – mudar, senão o mundo, a nossa compreensão dele.

De outro lado, além do não racismo (ou cultura multirracial) o CNA (Conselho Nacional Africano) de Mandela nos ajuda a compreender o que se passa aqui, em certa medida, pelo olhar do jornalista Bill Keller, do NYT (New York Times), que o Estadão de hoje (11/12) traduziu: “O que incapacita o CNA não é a doutrina. É alguma coisa da natureza dos movimentos de libertação. Unidos pelo que são contra, eles tendem a ser conspirativos, a dissimular o dissenso, a privilegiar os fins aos meios”. Que tal, Ruy Falcão?.
Vivam os grandes jornais – ainda circulando ou já transformados em centros de produção de notícias para meios diversos. Não fosse por eles, não saberíamos que os funerais de Mandela, além de provocar uma fofoca na corte e um novo Fla-Flu nas redes sociais, ensejaram um longo convívio de oito horas entre alguns dos nossos líderes - antigos e atuais - a bordo do avião que os levou à África do Sul, livrando-os de opinar sobre o grande debate nacional da véspera (10/12), que não era, nem o pibinho do  Mantega, nem a corrupção na prefeitura ou no governo estadual de São Paulo, nem a “tempestade perfeita” do William Waack e do Luiz Gonzaga Belluzzo, e nem a lista dos “micos do ano” do Fim de Expediente, programa da rádio CBN, mas, sim, o MMA (Mixed Marcial Arts) dos “torcedores” do Atlético Paranaense contra os do Vasco.

E já que este post virou propaganda de personalidades públicas e coleguinhas, vou aproveitar para votar num dos tais “micos do ano” relacionados pelo Dan Stubach, Luis Medina e José Godoy, com as minhas devidas explicações, entre parêntesis: Eike Batista (ex-marido da Luma), José Dirceu (ex-futuro gerente de hotel), Nicolas Maduro (como Papai Noel), Obama (com Helle –AlgonãovaibemnoreinodaDinamarca – Thorne Schmidt), Roberto Carlos (o biografado), Feliciano (o bispo da cura gay), Pato (batendo pênalti), Dilma (vaiada na Copa das Confederações), Mantega (pibinho) e o Rei do Camarote (continuo sem saber quem é). E o meu voto vai... para... Nicolas Maduro! – que conseguiu piorar o que já era tão ruim.

O trio da CBN também relaciona personagens do ano, mas nesta escolha, não tive dificuldade. Mandela é hors concours, como se diz: já tinha passado para a História antes mesmo de embarcar em sua última viagem. O homem do ano é, fácil, o papa Francisco. Não entendo nada de Teologia e até hoje tenho dúvidas se o sacrifício de Cristo – sem dúvida, um grande cara – cujo nascimento se comemora no mesmo dia em que os persas, depois os gregos e, em seguida, os romanos, celebravam a Mitra (25 de dezembro), está ou não relacionado a este último culto, como Picasso insinuou, na pintura acima.

Não sei se a base do cristianismo vem de nossa tradição ancestral de sacrifícios aos deuses antigos. Também ignoro se toda essa história de vida após a morte e oposição do bem ao mal do cristianismo veio no mesmo pacote. Mas que esse papa mudou a relação da Igreja com a sua própria doutrina, disso, não tenho dúvida.
Então, vamos encerrar por aqui: tranquilidade e paz para quem precisa, agitação para quem prefere, mobilidade para quem ainda mora aqui e mais juízo para todos nós; atenção a quem nos frequenta ou habita, e respeito às tradições de quem crê, da Mitra ao Cristo, da Cabala ao Buda.  Em tempo: minha opção foi feita muito antes da divulgação da escolha do personagem do ano pela Time.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Consciência negra

Eu devia ter uns 10 anos de idade quando isso aconteceu, mas a minha principal referência dessa época já era gastronômica: a Casa Brito, um armazém à antiga, tão grande que ficava numa esquina da avenida principal da cidade. Havia grandes barrís de azeitonas e de vinhos, azeites (molhados), latas de pêssego em calda, caixas de goiabada e latas de biscoitos de 12 litros, do tamanho dessas de tinta de parede, atualmente (secos). Guloseimas para muitas bocas e narizes, do bacalhau do Porto, terra do proprietário, àquelas gelatinas de várias cores, que se vendiam no interior.

Cinco quadras abaixo, virando-se à esquerda, ficava a sede do meu martírio dominical: meu pai (foto) me obrigava a ir à missa, embora eu já tivesse arrebentado a testa, anos antes, enquanto pulava de um banco para o outro, tentando me distrair durante a homilia: seis pontos, dos quais conservo a cicatriz. Não era o mistério da transubstanciação, o que me incomodava: sempre apreciei, tanto o vinho, como a carne, mas aquele ritual pesado, sempre igual, me exasperava. Deve ser por isso que os evangélicos fazem sucesso: no outro dia, vi um desses pastores, do canal 7, se não me engano, saltitando e cantarolando como um periquito – pelo menos, é divertido.
Anos depois, por volta dos quatorze, aprendi a gostar da missa das 11, onde mirávamos – eu e os outros garotos da cidade – os nossos alvos da sessão das seis, no Cine São Paulo. Fumávamos à vontade, durante a celebração, e a entrada era divertida, quando elas passavam com seus pais sisudos, olhando para nós com o rabo do olho. A saída era melhor ainda: às vezes, uma distração da família rendia uma abordagem antecipada. E uma tarde inteira de excitação.

Para mitigar o meu sofrimento, meu pai – que era avançado, para a época – empurrou-me uma cartela da rifa do padre Luís Batistella, para que eu pusesse praticar meus sentimentos cristãos. Comecei timidamente a oferecer aquelas pequenas possibilidades de recompensa em nomes de mulher. Não me lembro mais de qual era o prêmio, exatamente: um prato decorado ou um ventilador. Escalei, como doadores,  primeiro, os meus colegas de quarto ano primário; depois, as empregadas no atelier de costura de minha tia. Em seguida, encorajado pelo sucesso das vendas, os comerciantes das vizinhanças.
Resistí bem à minha primeira grande tentação: o sujeito da ótica não tinha tempo para nada e entregou-me uma nota de dois cruzeiros, laranja, com a cara severa do Duque de Caxias impressa em azul. Não quis assinar o próprio nome na cartela:

- Escolhe aí qualquer um, moleque.
À medida em que eu ia me acostumando à tarefa, as coisas iam ficando mais estimulantes: a nota de cinco, com o Barão do Rio Branco, seduzia mais que a de dois. Os filantropos sem tempo para escolher um quadradinho aumentavam. De um momento para o outro, vários cruzeiros tinham passado para o meu lado da conta. Pedi uma caixa de biscoitos ao dono do armazém e paguei à vista. Meus sinais aparentes de riqueza me comprometeram: levei a maior surra da minha vida e, talvez por isso, não aceite até, hoje, nada parecido, independentemente de ideologia, credo ou cor: de uma tapioca a um Mensalão, de um viadutozinho do Maluf a um trem do metrô. Mas a mancha ficou.

Lá pelos 15 anos de vida – um de ditadura militar – desenhei um “Che” Guevara de três metros de altura na parede dos fundos da sala de aula, em carvão. Perto dos vulcões de São João que soltei in house, nas aulas de Desenho do professor Eloy, aquela era só mais uma pequena aventura, mas que, aos olhos da Diretoria do Instituto de Educação, o golpe militar amplificava. Rendeu-me um tète a tète com a sobrinha do professor Aníbal Campi (a fera do Latim): uma estrangeira de Londrina-PR que nós acolheramos com prazer, depois de um fim de noivado tortuoso. O encontro foi breve, mas me lembro até hoje da sombra do buganville, na beira da piscina da Sociedade Hípica. Tarde charmosa, gazeta coletiva, encontro  pessoal.
O Guevara ficou porreta, embora não se comparasse às obras de gênios contemporâneos como Alex Hornest (o Ornesto), Alex Vallauri e os Gêmeos Otávio e Gustavo Pandolfo, que inverteram o trajeto e desenharam nas paredes de Cuba. O diretor do Instituto, que chamávamos de Geraldinho, era um caboclo insensível, tanto aos apelos da Arte quanto aos da libertação das massas. Tive que pintar toda aquela parede de branco, no fim de semana mas, como, naquela sala de aula, só eu tinha lido “As Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain, recebi a ajuda consciente e solidária de todos os colegas. Carrego esse outro peso na alma.

Alguns dos que aqui me lêem haverão de se lembrar de minha modesta vingança: irascível, quase violento, o Geraldinho, sem óculos (de fundo de garrafa) era praticamente indefeso. Alguns acham que tive coragem em me deixar fotografar ao lado de um bando de tigres bem alimentados e sonolentos, num parque da Tailândia, no ano passado. Coragem foi aproveitar um momento em que, chamado à Diretoria para uma nova punição, o Geraldinho tirou os óculos, à minha frente, enquanto esfregava os olhos, sem saber o que mais fazer comigo, e não percebeu que eu aproveitava para transferir as suas lentes para o lado oposto da mesa. A punição ficou para outro dia. Na minha reputação, mais um pontinho negro.  
Também me dói – entre tantos outros descalabros (gostei da palavra, Fernando Haddad) – ter enrolado, placidamente, um joint, na sala dos meus pais, aos 23 anos, durante uma visita ao antigo lar: como se eu ainda morasse na Holanda, como se ainda precisasse chocar os meus velhos, depois da infância e da adolescência que lhes proporcionei: roubar o carro do professor para fazer piquenique na casa da Eny, em Bauru,-SP era rotina. Muito reto, o coitado ainda tinha que suportar ironias sussurradas pelos colegas porque o seu carro tinha sido visto no bordel. Isso ainda me dói.

Caro Contardo Calegaris, este post não tem pretensões psicanalíticas. Meus pais também devem ter aprontado das suas – comigo, inclusive – mas não pude resistir à digressão, neste dia em que a quadrilha do Mensalão vai pra cadeia (dizem), em que o Gilberto Kassab ameaça comprometer a sua aliança com o PT, em plena campanha da reeleição, e em que o irmão do Genoíno diz que ele, Genoíno, foi usado (maldade semântica). Afinal, uma outra mancha, na minha consciência, não vem das ilusões do combate à ditadura – que a idade me permitia - mas do fato de ter ajudado a construir a reputação de um partido que mudaria tanto, depois de aboletar-se no poder.
Só por isso, eu não mereço perdão. Pior que o tal partido não parece disposto a apear de seus mandos e desmandos. Nem sequer, a deixar o cavalo  beber uma aguazinha, em seu transcurso, como aquela que irriga as plantações de maconha de Pernambuco. Ôxe.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Funk no Japão


Embora a briga dos pastores – Edir Macedo e Valdemiro Santiago – tenha o seu interesse, um dos prêmios Petrobras de Jornalismo (entregues na noite de 22/10) foi para a fotojornalista Míriam Fichtner, por seu trabalho sobre o candomblé gaúcho. Outro fato religioso me chamou a atenção, ontem (23/10): a suspensão do bispo alemão Franz-Peter Tebartz-van Elst, de Lindenburg, que cometeu o pecado da gula (?), avaliada em cerca de E$ 31 milhões. Mas foi uma quarta notícia, nada religiosa, que virou manchete do Uol, ontem, 23/10, durante várias horas: “Falta de interesse de jovens por sexo preocupa o Japão”.

Nada de se debruçar sobre o tripé do câmbio flutuante, das metas de inflação e do superávit primário (que, aliás, já foi para o vinagre, por conta do ano eleitoral), nem de análises sofisticadas como a de Luis Sérgio Guimarães, no Brasil Econômico (22/10), acerca da “especulação do bem” (aproveitar a variação da Selic, enquanto o BC se esforça para conter a inflação), nem de críticas ao falso dilema da presidente Dilma, entre “partilha” e “privatização” (ato falho, cara Presidente), ou suítes da guerra entre biógrafos e biografados, contemplados, anteontem(21/10), com um projeto de Lei, novinho em folha, do deputado do DEM, Ronaldo Caiado.
A história do Uol tratou do desinteresse dos japoneses por sexo. Eu, preocupado com a derrocada do Corinthians no Brasileirão e com meus herdeiros – esses meninos anarquistas pós-modernos que, em vez de cara e coração, exibem apenas instinto – e o governo japonês, coitado, amargando uma das menores taxas de natalidade do mundo, com uma população de 126 milhões de pessoas que deve encolher para apenas 88 milhões, nas próximas décadas, segundo projeções feitas no país. Claro: 61% dos homens e 49% das mulheres entre 18 e 35 anos de lá nem sequer mantêm qualquer tipo de relação romântica com outra pessoa. Imaginem essa notícia chegando ao comitê da Rede Sustentabilidade, onde, para todos os efeitos, o matrimônio é uma sociedade entre homem e mulher, “construída ao longo de milhares de anos”: pânico geral. 

"Recebo mais homens, mas a presença das mulheres está aumentando", disse a consultora, Ai Aoyama, 52, colega da ministra Marta Suplicy na Sexologia. Ex-dominatrix, Ayoama afirma usar terapias como ioga e hipnose para relaxar as pessoas e ajudá-las a entender o modo como o corpo do ser humano funciona. “As vezes, por uma taxa extra”,admite, “posso ficar nua para clientes do sexo masculino, a fim de guiá-los fisicamente em torno da forma feminina”. A consultora cita um cliente de 30 anos, virgem, que só fica excitado com robôs femininos, algo semelhante àqueles da série Power Rangers. “As pessoas não sabem para onde ir", diz. "Elas vêm até mim porque pensam que, por querer algo diferente, há algo de errado com elas".

Do lado de cá, apenas 40% de nós podemos contar com uma infra-estrutura de saneamento básico, e a nossa taxa de analfabetismo voltou a subir, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, (de 8,6% da população com mais de 15 anos, em 2011, para 8,7%, em 2012). Mas temos o funk, o samba e o axé, as musas Cláudia Leite e Ivete Sangalo, só para começar. Podemos sugerir, tranquilamente, à Associação do Planejamento Familiar do Japão, que promova um roadshow com a Tati Quebra-Barraco, a Anitta e a Valeska Popozuda, embora elas sejam consideradas feministas marrentas. O próprio Uol poderia montar um time de Belas da Torcida para promover um workshop virtual.
Ninguém se atreveria a propor um programa no estilo "Mais Médicos" para o Japão, por causa da nossa fama complicada, nesse ramo de exportação de pessoas. Mas poderíamos sugerir a reprodução de imagens das nossas mulheres-frutas em papéis de bandeja de shushis fast food, sem falar nos posters, álbuns de figurinhas e cartazes para o metrô. 
Pode parecer gozação, mas tenho muito respeito por alguns valores culturais trazidos pelos imigrantes japoneses para o Brasil, e gostaria de retribuir, de alguma forma: a excelente culinária japonesa, as boas maneiras, as técnicas agrícolas, a ponkã, o Nacional Kid e, mais adiante, as motos que me levaram a lugares incríveis, assim como os mestres do cinema, Kurozawa, Hirokazu Kore-Eda, Yoji Yamada. Aliás, não consegui rever os filmes desses dois últimos na 37ª.Mostra Internacional de São Paulo, embora tenha me esforçado para isso. Desta vez, a engrenagem me engoliu. Deve ser a maldição do último post neste blog, no qual antecipei a minha agenda para a exposição.

Mas aproveitei bem a minha presença na entrega do Prêmio Petrobras de Jornalismo (este ano, falhei no Prêmio Vladimir Herzog), onde conheci produtos de uma atividade hoje tão desgastada pela internet e pelo desinteresse da moçada na casa dos 30: além da matéria citada, sobre as religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul (O Globo), o jornal gaúcho Zero Hora bancou uma reportagem para cuja produção, a jornalista Letícia Duarte acompanhou três anos da vida de uma criança em situação de rua (Filho da Rua). A matéria foi publicada em 16 páginas impressas, em plena era do Twitter.
Jorge Pontual, da Globonews, premiado com matéria sobre a alternativa energética do gás de xisto, me disse que lá, nos Estados Unidos, onde o preço da BTU proveniente dessa fonte de energia caiu para US$ 6,  tornou-se impossível controlar os efeitos ambientais da exploração do gás de xisto pelo processo de fratura rochosa conhecido como “fracking”. Também fiquei sabendo que a matéria do Estadão – vencedora numa categoria regional –a “Família Imperial – Uma nova história” levou três dias para migrar do portal para as páginas impressas do veículo.

Mas o jornalismo regional mostrou força. A reportagem “MBP” (Música Brasileira Popular), do Estado de Minas (Ana Clara Brandt) venceu na categoria Cultural, enquanto a matéria “Rede de corrupção no seguro da pesca”, do mesmo jornal (Mateus Parreira e Luiz Ribeiro) ganhou na categoria Responsabilidade Socioambiental. “Por sua vez” destacou, hoje, o Estado de Minas, "a 35ª edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos - Categoria Especial - foi para a série de reportagens “Jornalistas assassinados no Vale do Aço”, de autoria de Mateus Parreiras, Landercy Hemerson, Pedro Ferreira, Guilherme Paranaiba e Junia Oliveira.

Reportagens sobre folclore paraense, na Rádio Amazonas, sobre o abandono de atletas da baixada fluminense que haviam recebido incentivo para disputar Jogos Panamericanos do Rio (jornal Extra), sobre a “Literatura da Periferia – vozes das quebradas”, da TVT (canal alternativo do ABCD paulista, filho da imprensa sindical), e “Auxílio criado para financiar atletas banca empresário, vereador e até padre”, de Carlos Petrocilo e Ozair Júnior, do Diário da Região, de Ribeirão Preto, reforçaram a impressão de que a imprensa regional passa bem.

Meu mestre, Zarcillo Barbosa (ex-Última Hora), no Diário de Bauru (anos 60) – com quem tive o prazer de beber um trago, no último fim de semana - já me havia prevenido: jornalões sérios, como El País – sua leitura diária – e informativos locais, que colocam as pessoas a par de onde vai tocar o trio formado pelo irmão da mulher do seu vizinho, ainda vão sobreviver por um bom tempo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A mesma praça


- Por que não temos filmes pop, este ano? – perguntou uma coleguinha, durante a entrevista coletiva da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (18 a 31/10), no último sábado (4/10), no Cinesesc Augusta. Quase não chego, porque o moço pintou faixas exclusivas de ônibus pela cidade, e, naquele fim de semana, todo mundo resolveu ficar na aldeia, curtindo o friozinho fora de época. A curadora da Mostra, Renata Cakof, foi simpática com a jornalista, que é boa gente, segundo me contaram mais tarde.

- Você quer dizer, filmes populares – esclareceu. – Nós temos os filmes do Kubrick, que estão na retrospectiva – informou. Tentei me lembrar de Laranja Mecânica (1971, minha época), Glória Feita de Sangue (de 1957), Spartacus (1960), Dr. Fantástico (1963), O Iluminado (1980). Mas não consegui deixar de pensar numa pergunta sobre o bóson de Higgs (partícula de Deus, pastor Feliciano, prêmio Nobel de Física deste ano) na coletiva de encerramento de A Fazenda, ou um questionamento acerca da influência de Wittgenstein na carreira dos irmãos Coen, numa entrevista de Adriane Galisteu ao Jornal da Record, emissora que acaba de contratá-la. Galvão Bueno inquirindo Felipe Massa sobre a abrangência emocional das Variações Goldberg também seria bacana.  

Mas a paciente e generosa Renata deixou de lembrar à  minha colega que a graça de se exibir filmes de diferentes culturas, paixões e orçamentos, em poucos dias, está, justamente, em dar acesso às pessoas a obras que teriam poucas chances de ser apreciadas, por assim dizer, por terem uma essência menos filosófica que o Super Homem e o Homem de Ferro, concebidos, respectivamente, por Nietzche e Demócrito de Abdera. Alguém perguntou, a propósito, se a Mostra temia as manifestações públicas. A curadora respondeu que o evento não deixa de ser manifestação pública (dois a zero).
A segunda melhor pergunta da coletiva, contudo – e não vou comentar se, nesse momento, o cinema estava meio cheio ou meio vazio – foi quanto ao porquê de tantos filmes asiáticos. Desta vez, a resposta foi que há muitos filmes asiáticos interessantes. Lembrei-me da entrevista do Ronnie Von a Marina Person, na véspera, sobre a reedição de três LP da fase psicodélica do cantor, que, na época, chegou a brigar com Gilberto Gil – este havia participado de uma passeata contra as guitarras elétricas – mas soube perdoá-lo e convencê-lo a tocar Procissão com os Mutantes. Ronnie, no entanto, decidiu não seguir essa turma e acabou cantando “A mesma praça”, de Carlos Imperial, como  o “Príncipe” da Jovem Guarda.

A questão dos coreanos permitiu à curadora falar um pouco sobre o Foco Coréia, que terá 10 filmes de jovens realizadores daquele país, e celebrará a assinatura de um termo de cooperação entre o Kofic (agência promotora do cinema coreano) e a brasileira Ancine.
Falou-se, também, na coletiva, sobre a vinda de Amos Gitai ao Brasil (Ana Arábia), sobre a homenagem a Eduardo Coutinho (Edifício Master, Cabra Marcado para Morrer, Peões) e sobre o convite emocionado de Renata Cakof a Etore Scola, que, provavelmente, não virá assistir à exibição de seu Scola Conta Fellini, no encerramento da mostra (31/10). Aos 80 anos, o velho cineasta  decidiu não empreender mais viagens de longa duração.

Espero que a coletiva da mostra tenha refletido o preparo da equipe de divulgação e dos entrevistados, incluindo os que dividiram a mesa de abertura do evento. Era sábado, fazia frio e a cultura sempre intimida, exceto àquela meia dúzia que cobre o evento para a chamada grande imprensa, cada vez mais rala, mas que ainda serve de guia à chamada agenda nacional.
Naquele sábado, aliás, o país vivia o saboroso impacto da adesão da candidata à presidência de James Cameron ao PSB do neto de Miguel Arraes. Como pano de fundo, a greve dos professores do Rio, profissionais, que precisam, sim, ganhar mais e estudar mais. Ter, enfim, uma carreira equivalente à de seus colegas do ensino particular. Sem ter que, necessariamente, passar pelo Lindberg Farias ou pelo Marcelo Freixo para alcançar esses objetivos. Por muito menos, Witggenstein aplicou dois belos cascudos num de seus alunos e teve que largar a profissão.

As reivindicações dos professores são mais importantes do que o eventual estreitamento da mídia, que deveria alargar a visão daquelas pessoas que também se alimentam de luz. Mas, data venia, ainda pretendo assistir, nessa mostra, ao brasileiro Serra Pelada, por exemplo: preciso dizer a mim mesmo que o Brasil do Ratinho tem Heitor Dhalia, Sebastião Salgado e Juca Martins (fotógrafos com os quais o diretor conversou, antes de começar a filmagem); o genial Martin Grimache (designer argentino), além, é claro, dos brilhantes Wagner Moura, Juliano Cazarré, Sophie Charlotte e Júlio Andrade, devidamente preparados por Chico Accioly para esse Encouraçado Potemkin do cinema nacional (que assim seja).
Enquanto Serra não vem (o filme), vou me esgueirando pelas bordas da Mostra, começando por Inside Llyan Davis (Llyan Davis por dentro, numa tradução livre), um Bob Dylan que não deu certo, filmado com a mesma competência dos Coen de “Onde os fracos não têm vez”, embora muito distante da estética de violência de Corman Mc Arthy.

Eu e a meia dúzia de jornalistas que não conseguiram ver a estréia de Serra, no Rio, hoje (9/10), saímos acachapados, ontem (8/10) de Tempos de Lobo, de Aran Hugues, com quase duas horas de sombra e céu de chumbo. Mas o que representam os rostos precocemente envelhecidos daqueles pastores de cabras gregos, minha cara Tuna Dwek , diante de 60% de conterrâneos que vivem no esgoto, crianças enterradas no crack e professores que não podem nem sequer se manifestar livremente?  

Mais tarde, no noticiário da noite, o FMI anunciava que o Brasil terá o menor crescimento do ano, entre os emergentes (será?); o primeiro ministro canadense expressava “preocupação” com a espionagem de seu país sobre o nosso Ministério das Minas e Energia (chefiado pelo ministro Lobão); a polícia carioca prendia um casal de vândalos com base na Lei de Segurança Nacional, e a gauchada bloqueava os caminhões argentinos por causa das barreiras que já causaram prejuízos de R$ 60 milhões à indústria de calçadista.
General (Néinha), larga São Luís do Paraitinga por alguns dias, e venha ver alguns filmes da Mostra, o único evento coberto, anualmente, por este blog. Você pode se hospedar na casa do Teodoro (ele é nervoso, mas não morde), seu antigo parceiro de Folha. Ou lá em casa, claro, se não se importar em comer mal, durante alguns dias. Quem sabe, a gente convence o Moura Reis (cinéfilo-mor), o Sarrafo (desculpe a irreverência, antigo chefe), o Gaúcho e quem mais aparecer, daquela turminha da São Luís aqui de Piratininga.

Filmes “confirmados”, para seu governo: Cães Errantes (Tsai Ming Liang), GP de Veneza; Pais e Filhos (Hirokazu kore Eda) Cannes, 2013; Ilo Ilo (Antony Chen), Câmera D’Or de Cannes; La Jaula de Oro (Diego Quemada), prêmio especial de elenco em Cannes; Childs’s Pose (Calin Peter Netzer), Urso de Ouro em Berlim; Um toque de pecado (Jia Zhang-Ke) Roteiro em Cannes; Pardé/Closed Curtain (Jafar Panahi), Urso de Prata em Berlim, Lições de Harmonia (Emir Baigazin), outro Urso de Prata em Berlim (Contribuição Artística); Club Sandwich (Fernando Eimbcke), San Sebastian, O Lobo atrás da porta (Fernando Coimbra), San Sebastian e Desigualdade para Todos (Jacob Kornbluth), Sundance Festival – entre outros. Espero você.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Depois do festival

Chico Sexta-feira GraçasaDeus  Pinheiro teve, hoje (24/9), no Bom Dia, o seu momento de santa ira, ao narrar a história dos governadores e prefeitos que não querem aumentar o salário dos professores, no ano que vem, alegando falta de verba. “Eles têm dinheiro para trocar de carro”, vociferou. “Conseguem pagar assessor e aumentar o salário de vereadores, mas não podem pagar um ordenado decente aos professores”, insistiu, mas foi chamado à razão pela colega, Ana Luiza Guimarães: “Chico, vamos aos fatos”.

Carl Berstein, da dupla de Watergate - como alguém lembrou, ontem, durante a homenagem da Câmara de Vereadores de S. Paulo ao jornalista Eduardo Ribeiro, pelos 18 anos de “Jornalistas e Cia” – costumava dizer que o bom repórter “ilumina a cena”, enquanto que o mau repórter “constrói a notícia”. Pode ser. Num país onde as coisas funcionam razoavelmente bem, com uma Constituição sólida, simples e sem entulho autoritário, que protege os seus cidadãos, exceto em casos extremos, envolvendo assassinos malucos, faz sentido.
Para ficar dentro do tubo maldito (definição de Marcelo Tas), que completa 63 anos sem ter atingido a maturidade, como eu, o programa do William Waak do último domingo (22/9), com o diretor do IBMEC, Fernando Schuler (que não é o marido da Sheila Mello), o historiador, Marco Antonio Villa, e o cientista político, Marco Antonio Teixeira, da FGV, acabou num beco sem saída: a hegemonia gramsciniana da esquerda que está no poder – e que muitos nem sequer reconhecem como esquerda – não consegue fazer o país avançar por causa de sua aliança (histórica, no Brasil) com as oligarquias conservadoras.

Schuller acrescentou, ao caldo, a oligarquia sindical, que, segundo ele, também contribui fortemente para manter o país estagnado. O tema nuclear do programa era a aceitação dos embargos infringentes, seu reflexo nas eleições de 2014 e nas perspectivas do país, a médio prazo. Em pauta, a tipificação do crime praticado pelos engenheiros do Mensalão e que, corroborando a frase de Delúbio Soares, tornou-se “uma piada”: - Usurpação de poder, associada a uma causa nobre (erradicar a miséria) e encorajada por uma oposição “elegante demais” para derrubar o governo, em 2005, em nome da legalidade, ou banditismo (peculato, corrupção, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro), devidamente precificado por uma sociedade habituada à impunidade que vicejou à sombra do adhemarismo do “rouba, mas faz”?
A futurologia que viria a seguir, no debate, “em busca do crescimento sustentável que trará o tão sonhado desenvolvimento social”, esbarrou, justamente, no suposto desinteresse das oligarquias quanto às reformas institucionais que destravariam o país (principalmente a política e a trabalhista). “Há que ter paciência”, resumiu o moderador, “para que os implementos progressivos da nossa democracia (como esse julgamento?) surtam efeito”.

A premissa se baseia na suposição de que quem sobe de vida, enxerga melhor e logo exige mais. Será? Nossos colegas do Bric garantem isso? – A China consumista, a Rússia neofacista noveau riche e a Índia espiritualizada e tecnológica já conseguiram aperfeiçoar as suas respectivas democracias? – Com exceção da condenação de Bo Xilai à prisão perpétua, na China, seis meses depois do novo presidente, Xi Jingping, prometer um “combate inabalável à corrupção”, pouca coisa mudou, nesses países.
Em nossa vizinhança, os mais “civilizados”, cujos PIB crescem a taxas mais significativas, como a Colômbia (4% em 2012), o Peru (5,6% este ano) e o Chile (4,3%, no primeiro semestre) são, justamente, aqueles cujos governos amargam os maiores sinais de desaprovação, enquanto que os populistas, que menos crescem, desfrutam dos melhores índices de popularidade.

Tanto o círculo de ferro das oligarquias, quanto no a estagnação causada pelos que descobriram a poção mágica do populismo – distribuir pouco, para muitos – a única vara de condão capaz de quebrar os entraves ao crescimento estaria numa Educação capaz de inverter a frase de Moraes Moreira, “Lá vem o Brasil”. Em linguagem de Rock in Rio, não importa se os curadores do Palco Sunset estão mandando melhor que os do Palco Mundo: se eles se falassem, boa parte dos nossos problemas estaria resolvida .
No entanto,  informa O Globo, hoje (24/9), governadores e prefeitos se articulam para barrar o reajuste de 19% dos professores no próximo ano, razão pela qual o âncora do Bom Dia Brasil indignou-se, conforme relatei acima. Embora o piso nacional de R$ 1.567,00 por 40 aulas semanais seja, atualmente, respeitado por apenas 12 estados da federação,  segundo o porta-voz dos chefes de executivos municipais e estaduais, professor Jacy Braga, secretário de Educação Adjunto do Distrito Federal, o reajuste do ano passado (9,7%)  “já criou dificuldades para alguns estados”.

O MEC se dispôs a coordenar a negociação entre os representantes de governadores e prefeitos com a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação, mas já avisou que a decisão final será do Congresso. O governo pode aumentar o mínimo, mas o salário dos professores é responsabilidade do Congresso.
Por enquanto, o assunto está fora da agenda nacional, hoje tomada pelo discurso da presidente Dilma na ONU, pelo pior saldo na nossa balança comercial, pelo murro do deputado no senador, durante visita da Comissão da Verdade ao Doi-Cod, pelo casamento do pagodeiro – que o filho chama de “vagabundo” – com a mulher-fruta e pelo depoimento do filho do diretor do Friboi contra a mãe, acusada de mandar matar o marido. Amanhã, quem sabe, o tema da Educação volte à baila.
Meu projeto de migrar para o Canadá vai tomando corpo (não avisem o Consulado): os críticos da idéia não conseguem me convencer que outros temas da agenda nacional não guardam nenhuma relação entre si: as mancadas nos leilões das estradas e dos aeroportos, a deterioração fiscal, os equívocos na política energética, a queda da confiança da indústria – liderada por Paulo Skaf (a Fiesp) – os cartazes em inglês dos novos estádios mandando o sujeito ir para o sul em vez de apontar o norte, a sentença de morte ao José Júnior, do Afroreggae, as investigações do caso Siemens e o segundo lugar de Bruna Marquezine na Dança dos Famosos, enquanto o pobre Neymar vai sendo ofuscado por aquele argentino, lá no Barcelona.

Companheiro vereador José Américo, não pude ouvir o seu discurso, ontem, sobre "O papel do jornalismo e a transformação social"; em compensação, no trajeto de volta, ouvi, na rádio Estadão, parte da reportagem de Júlio Maria, sobre o Rock in Rio, cuja leitura, recomendo, no Estadão de hoje, 24/9: "Glórias e contradições de um festival".

Legenda: - Pues, donde estamos, exactamente?

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Abaixe a arma!


Como todo comentarista de botequim, costumo misturar ingredientes do que se passa à minha volta para tecer uma teia capaz de reter mosquitos de atenção de amigos que eu não consigo rever todos os dias. Hoje, por exemplo, tento relacionar a elevação da funkeira Anitta ao primeiro plano da música nacional (estrela do Prêmio Multishow) e o suicídio do baixista Champignon, do Charlie Brown Jr, – fatos lamentáveis, embora não equivalentes – cuja analogia explico a seguir. Também vejo relação entre a boa matéria do Alberto Bombig, na revista Época desta semana (Haddad no moedor de carne) e as elocubrações de analistas sobre o futuro político de Barak Obama, tendo a Síria como pano de fundo.

Os rapazes do Manhatan Connection (Globonews, 8/9) discordaram sobre as diferentes modalidades de genocídio, com ou sem leite, açúcar ou crianças espumando. Já o povo da Globonews/notícias discutiu, simplesmente, o transbordo do conflito para toda a região, sem preocupar muito com os 1.500 mortos pelas armas químicas de Assad: talvez isso não coubesse no formato programa. Prefiro as discussões do Legião Estrangeira, da TV Cultura, que reúne correspondentes no Brasil para falar de política internacional, apesar do péssimo título que, além de tudo, rima com o sobrenome da apresentadora, Mônica Teixeira. Lúcia Guimarães, do Estadão (9/9), comparou a situação de Obama à do capitão espanhol do século XV, obrigado pelos piratas a saltar da ponte de seu próprio navio.
A intellighentsia norte-americana, assim como a maior parte daquela população, repudiou/repudia o ataque à Síria, mas os estrategistas de plantão esperavam/esperam que a intervenção fosse/seja para valer. O papa Francisco perguntou qual o verdadeiro sentido da guerra, se resolver problemas ou ensejar bons negócios. Já presidente russo, Vladimir Putin, que apóia o ditador sírio, blefou descaradamente quanto à possibilidade de uma fiscalização da ONU no arsenal do aliado, enquanto Assad, em trajes ocidentais, garantia à CBS não ter assassinado civis com gases venenosos, banidos pela humanidade desde a primeira guerra mundial. Israel, por sua vez, montou o seu guarda-chuva no quintal (iron dome) e assistiu a tudo em silêncio: correr para onde?

Caberia a Obama tomar a decisão de desencorajar o agravamento do genocídio comandado por Assad, com ou sem armas químicas, tendo ou não jihadistas no grupo de rebeldes que se opõem ao ditador. Mas o presidente norte-americano, assim como o prefeito paulistano, mostrou hesitação, ao transferir ao Congresso a responsabilidade por uma decisão que lhe caberia tomar sozinho.  Como a Obama faltou coragem, o sofrimento da população síria tornou-se alvo fácil da propaganda, que dois especialistas norte-americanos em relações internacionais, Albert e Roberta Wohlstetter, definem como “barulho” (espontâneo ou calculado), que se distingue dos “sinais” que antecedem um conflito real.
Na sequência, a velha cena de comic books tomou conta o noticiário:

- Put the gun down – disse o sargento pacifista John Kerry, assessorado pelo selvagem da motocicleta, Vladimir Putin. Se o chefe dos Irmãos Dalton vai obedecer, ou sacar a arma, de surpresa, só vamos saber na próxima cena.
Enquanto isso, o nosso prefeito, Fernando Haddad, enfrenta uma situação financeira paralisante – que ele optou por não denunciar, no início do mandato, por disciplina política: se, no ato da posse, saísse atirando, poderia comprometer a aliança de seu antecessor, Gilberto Kassab, com a sucessão de sua chefe, a presidente Dilma Rousseff. Isso, no entanto, lhe teria dado um certo respiro:  – Perdeu, playboy – diria o punguista que assaltou o Paulinho da Força (e levou 300 reais).

O segundo grande desafio de Haddad também é de natureza política, como revela Bombig, em sua reportagem: em vez de nomear parceiros de partido para as 31 subprefeituras da capital, consideradas um “filé mignon” eleitoral, o menino-prodígio escolheu técnicos e engenheiros. Finalmente, no episódio das passagens do transporte público que acenderam o estopim das manifestações de junho, Haddad “foi engolido” pelos tucanos, na visão de seu padrinho político, o ex-presidente Lula.

A falta de habilidade ou a recusa do prefeito em sucumbir ao compadrio pode abreviar a sua carreira política, mas pode ter sido este, justamente, o fator que lhe permitiu conquistar 56% dos votos válidos da Capital paulista na disputa do segundo turno contra um adversário alquebrado, mas poderoso, como o tucano José Serra. No outro hemisfério, o bom-mocismo do democrata que alimentou a esperança dos amantes da liberdade contra a força do tea party pode decretar o desfecho melancólico de sua carreira. Afinal, a coragem não é um privilégio dos bravos e fortes, lá, como a cara de pau é aqui?
Na relação entre o acesso de Anitta ao trono da música brasileira e o mal-estar causado pela morte de Champignon, do Charlie Brown Jr, a questão é mais delicada. Assim como a morte do Chorão, o suicídio do baixista me comoveu, muitos anos depois de uma sensação parecida, relacionada às mortes de Hendrix, Morrison e Joplin. Tenho um amigo que gosta de comparar o genocídio da II Guerra (50 milhões de mortos) à barbárie atual, a fim de provar que a humanidade evoluiu. O objeto final do raciocínio é concluir que o Brasil, apesar de tudo, melhorou. Não concordo. Não dá para aceitar candidamente o vazio e a depressão em cabeças tão jovens, com tanto a oferecer, num país de saúde tão precária que precisa importar médicos e com uma Educação tão miserável que professorinhas são espancadas nas escolas.

Sempre me lembro de como aprendi Latim (isso mesmo) na escola pública: meu professor, Aníbal Campi, passava um texto onde a ética não era discutida em torno do suborno de um porteiro de garagem, como nas colagens aguadas de Walcyr Carrasco, e sim no meio de um temporal, em plena Odisséia. Alí também se passavam cenas de vingança, raiva, paixão, bravura, hesitação, encanto, contentamento. Era uma briga de gato e rato: eu separava um único parágrafo – mais do que isso, seria pedir muito – e o traduzia com a precisão de que era capaz. Sabia que mais cedo, mais tarde, seria convocado pelo mestre. Simples: era o marginal da galera. A questão era escolher o momento certo de provoca-lo – início, meio e fim da aula anterior corresponderiam a início, meio e fim  da aula seguinte da minha chamada oral.
Durante anos, dormi feliz, por ter ludibriado o professor mais encardido da minha escola. Demorei, mas aprendi – mais satisfeito ainda - que o logro tinha sido meu. Demorei um pouco mais para entender que essa pedagogia seria fundamental, nos dias de hoje, o ensino customizado. Parece uma exigência banal, mas está tão longe dos bancos escolares quanto a professora de uma das melhores escolas de São Paulo que pediu,  recentemente, a um garoto de seis anos, que separasse as dezenas dos avulsos contidos no número sessenta e sete, sem explicar, ao garoto, o significado de “avulsos”.

Não importa que Anitta seja a estrela do Multishow ou que a Ivete Sangallo tenha sido comparada às divas do jazz, numa reportagem de domingo do NYT, embora a sua música não diga nada. Há espaço para tudo na prateleira cultural, mas a entrevista do pianista Marcelo Bratke a Antonio Abujamra, num outro programinha da TV Cultura, Provocações, no último domingo, merecia o horário nobre de uma emissora de massa, para não dizer um telão em praça pública. O pianista ignorou o fato de ser cego, até os 40 anos, porque tentava esconder de si e do mundo essa condição. Bem sucedido, hoje, lidera o projeto Camerata Brasil, na ponta de um processo de formação musical de jovens talentos da periferia. Ah, ele também se apresenta em penitenciárias.
A história de Bratke vai ser contada pela biógrafa inglesa, Kate Snell, que se interessou pelo músico enquanto ele era um desconhecido, em seu próprio país.

Vão me taxar de elitista mas, para mim, a importância da rainha do funk, num país como o nosso, é relativa. Também acho que isso pesa mais na estética dos excluídos do que nas ruas da vila Madalena, em São Paulo, ou na zona sul carioca, que nos legaram Arnaldo, Nando, Erasmo, Roberto, Tim, Tom, Vinícius, Torquato Neto e o que veio depois. A propósito de Torquato, outro suicida que hoje me faz falta, nunca é demais repetir uma de suas belas frases:
Leve um homem e um boi ao matadouro: o que berrar é o homem, mesmo que seja o boi.

Para: Camila, Alexandre, Renata.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

BR-040, o videogame

 
A jovem (e bela) escritora argentina, Samanta Schweblin, tem um conto – que não vou estragar agora – “Pássaros na boca” (Ed. Benvirá), falando daquilo que pode se tornar defensável, ou, pelo menos, aceitável, por nossos habitualmente estreitos padrões de convivência, dependendo das circunstâncias. Isoladas, obviamente, as regiões abissais da alma humana. Ninguém pode aceitar que um menino de 13 anos seja capaz de matar a própria família, mas o dilema pode assegurar uma semana de audiência para o José Luiz Datena.  
À luz do dia, algumas doses de leniência são admitidas, como o papa Francisco acolher os diferentes no mesmo manto que abriga o celibato; a ministra Carmen Lúcia distrair-se ao assinar um convênio que transfere, à Serasa, o cadastro de 140 milhões de eleitores; o ministro do STF, Luis Roberto Barroso, lembrar que o mensalão não foi o único crime de corrupção na política brasileira, ou a 14ª. Câmara do TJ-SP permitir que a nutricionista, Gabriela Guerrero Pereira, volte a dirigir, dois anos depois de atropelar e matar o estudante Vitor Gurman, de 24 anos, ao conduzir a sua Land Rover pelas ruas da Vila Madalena, bairro aqui da Capital, aparentemente, embriagada.

Como podemos constatar, diariamente, ou na leitura do post anterior deste blog, a violência no trânsito ficou tão banal quanto as manifestações públicas pós-ressaca de junho. Ônibus despencando de viadutos e matando pessoas tornaram-se quase frequentes, assim como os acidentes com motociclistas que trafegam da cidade de São Paulo (438 morreram, em 2012). Das 326 vítimas socorridas pelo Instituto de Traumatologia do HC-USP, de fevereiro a maio deste ano, conforme pesquisa divulgada ontem (14/8), pelo órgão, 67% nunca tinham passado por motoescola.
A tolerância que as manifestações de junho indicavam ter se esgotado, por falta de um padrão FIFA de Educação e de Saúde e doses cavalares de corrupção na política, pode ter se renovado por medidas como o projeto de reforma eleitoral – que não vai discutir a proporcionalidade do voto, por exemplo; o programa Mais Médicos – que não prevê melhorias na infra-estrutura de Saúde (atendimento e serviços) e a aprovação do projeto de 75% dos royalties do Pré-Sal para a Educação – notícia obrigada a conviver com outra, sobre a prisão de uma quadrilha que desviou R$ 6,6 milhões do Instituto Federal de Ensino à Distância, no Paraná (8/8).

De todo modo, a moralidade pública, que comporta a possibilidade de uma grande empresa internacional ter o benefício da delação, num caso de desvio de milhões de reais numa concorrência para a compra de trens para o Metrô de SP ou para a CPTM (a corrupção está entranhada na administração pública, desde o Brasil Colônia, dirão alguns) não esgota a ética, esse conceito difuso, na opinião do senador Edison Lobão Filho, segundo o qual, o que é ético para um norte-americano (espionar em nome da segurança, por exemplo) pode não sê-lo para um brasileiro: usar aviões da FAB para comparecer ao casamento da filha do amigo. Isso, na opinião do parlamentar, justifica a retirada dessa palavra imprecisa do Regimento Interno do Senado Federal.
Ética, senador, um conceito “abstrato”, na sua opinião é, segundo a Wikipedia (enciclopédia da sua geração): “a parte da filosofia dedicada aos estudos dos valores morais e princípios ideais do comportamento humano. Derivada do grego ἠθικό, significa aquilo que pertence ao caráter. Diferencia-se da moral, que se fundamenta na obediência a costumes e hábitos recebidos, ao fundamentar as ações morais exclusivamente pela razão”. Não se trata, portanto, de respeitar aquilo que se aprendeu em casa, mas sim, o que se exige nas ruas.

Em relação ao trânsito (vamos encerrar este assunto?), os percalços pelos quais tenho passado me deram uma idéia, que, claro, passa por uma de nossas principais regras de leniência: - Pagando bem, que mal tem? (perdão, Darcy Ribeiro; desculpe, Mário de Andrade). Inspirado num trecho percorrido, há duas semanas, entre Tiradentes (o município, não o alferes da fiel maçonaria) e o aeroporto de Confins-MG, no cock pit de um carrinho de mil cilindradas, pensei em converter alguns desafios enfrentados nesse trajeto em videogame, que se vai se chamar BR-040 (atenção, Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI!). O jogo deve oferecer, por meio de seus obstáculos ao desafiante, um retrato das complexidades de se viver no Brasil (ok, hoje e sempre).
As pistas da BR-040 são duplas, em todos os sentidos: tanto as duas de ida, como as duas de volta apresentam, entre elas, um desnível de pelo menos 20 centímetros. Talvez por isso, as ultrapassagens são feitas empregando-se a pista do sentido oposto, com luz alta na cara do parceiro  do outro lado, mesmo durante o dia. Claro, não há mureta entre mão e contra-mão (também conhecida como guard rail): adrenalina garantida. Não se preocupe com as placas de sinalização: elas estão muito bem escondidas, ou o pessoal da engenharia pensou  bem, e resolveu apagá-las, para não aumentar a confusão no local.
Sobre a polícia, só vislumbrei alguns representantes da classe no velório de uma senhora que morreu atropelada, perto do Aeroporto. O acesso a este importante complexo, aliás, está sendo reformado, mas vai continuar exigindo um percurso de aproximadamente 30 km, entre o terminal de passageiros e as garagens dos veículos de aluguel. E o estacionamento, no caso de quem chega. Ponte, ali, nem pensar: é preciso economizar recursos públicos.

A velocidade média, na maior parte do trecho citado, é de 120 km, inclusive, ou principalmente, por parte dos caminhões caçamba carregados de minério que, às vezes, atravessam a pista, de um lado para o outro, sem nenhuma cerimônia. Cuidado: os que trafegam descarregados são mais perigosos. Não se assuste com o cavalo que segue na carroçaria do caminhão que vai aparecer bem à sua frente. Ninguém pode ficar mais assustado do que o próprio cavalo, que vai sambando nas tábuas, mas está amarrado pela rédea, na cabine do veículo que o conduz. Talvez uma joqueta elegante caia de uma árvore, na próxima curva, e o conjunto pule a grade da carroceria e saia vencendo outros obstáculos, campo afora. Se começar a garoar um pouco, na serra do Rola Moça, a distração vai ficar ainda melhor. Mas não se anime: para mim, não rolou nada (se bem que, nesta idade...).
O GPS que você estará usando, como se diz, será um brasileiro nobre, nascido no bairro de Santa Ifigênia, um dos preferidos pelo Adoniran. Ele vai começar a dizer coisas desconexas, numa voz feminina, em português lusitano, no momento em que você mais precisar dele, isso, depois de um dos inúmeros desvios da BR. Você vai perceber que está no lugar errado, mas fique calmo, senão, os traficantes podem pensar que você é da polícia, até porque, eles não sabem muito bem como ela é (no videogame, claro).
 
Se você estiver atrasado para pegar um vôo em Confins, não se desespere: o vôo também vai atrasar. Acostume-se a dirigir contra o sol, na pequena confusão do tráfego de BH: siga aquela bandeirinha do Atlético mineiro, no alto de um edifício em construção, no caso do Atlético ter vencido a Copa Libertadores, mesmo jogando daquele jeito, com aquele time, dirigido por aquele técnico. É o que se pode fazer, em termos de orientação: a boa gente do lugar, embora mineira, não recomenda a tal avenida do Contorno (a marginal deles, lá).  

Vi três passageiros sendo transportados por uma única moto, mas não peguei nenhum cachorro atravessando a pista, nenhum andarilho na contramão, zero de bêbados e equilibristas nos semáforos; nada de ônibus, prédios e viadutos despencando. Mas vou botar tudo isso no meu videogame. Regra de leniência: o brazuca que vai comprar o jogo, lá no Canadá, depois de um ano longe do país, não vai saber distinguir entre a ficção e a realidade (acontece com a gente, que vive aqui...).

O jogo terá mensagens políticas naqueles sinalizadores bacanas de estrada privatizada, aludindo à campanha presidencial, em troca de passe livre nos pedágios, tanto para a nova quanto para a antiga classe média. O pessoal do PT, do PSB e do PSDB e até a turma do Eymael e do Enéas, vai poder pedir voto aos jogadores em troca daquele dinheirinho falso, que dá alguma energia. Os jogadores também vão poder inventar slogans baseados nas manifestações de junho último, com bônus extras para as mais criativas. Tente uma variação daquela frase do Deputado Federal: “Titica, por Titica, ande mais duas casas”.

Só tem um problema: quando você morrer, não vai dar para ganhar uma vida passando pelo Sírio Libanês: aquilo está sempre lotado de gente de Brasília. O jeito vai ser voltar ao Distrito Federal, entrar e sair do Hospital de Base, e depois, ganhar uma força, caso consiga passar pela ponte do Itamaraty; ou até três vidas, se chegar ao teto do Congresso Nacional. Quando o jogo for lançado, colabore: vida de jornalista não está fácil.

terça-feira, 23 de julho de 2013

A violência do erro


Há dois dias, quando nem o papa, nem os brasileirinhos registrados com o nome de Francisco, ontem (22/7), haviam chegado a este mundo, assim como o filho da Kate Middleton e a neve de meio centímetro, a São Joaquim (SC), as notícias diziam que o jovem ciclista, David Santos Souza, de 21 anos, que teve o braço arrancado e jogado no rio por seu parceiro de geração, Alex Siwek, de 22, tinha sido atropelado pela segunda vez.
 
Não entendo nada de trânsito e muito menos de gente, mas tenho me assustado com as consequências de alguns acidentes, como o que aconteceu na manhã de 9/5, quando pensei no assunto pela primeira vez: uma carreta havia pegado fogo, na rodovia Raposo Tavares, perto de São Paulo, “matando uma pessoa e atrapalhando completamente o trânsito”, como narrou o Francisco Mineiro, amigo do Francisco Buarque, no Bom Dia, Brasil daquela quinta-feira. Duas horas depois, vasculhando a Zero Hora (RS), por dever de ofício, fiquei impressionado com os restos da colisão frontal de um caminhão desgovernado contra seis outros veículos, na rua Amélia Teles, na região central de Porto Alegre.
Um mês antes, um ônibus despencara de um viaduto, na avenida Brasil, Rio de Janeiro (RJ), matando sete pessoas, enquanto o motorista altercava com um passageiro. Nessas horas, o vício da profissão me traz, instantaneamente, um arquivo de ocorrências semelhantes, como a morte de um jovem casal, em Curitiba, pelo então deputado, Fernando Ribas Carli Filho, que dirigia completamente embriagado (2009). Há poucas semanas, um empresário de Ribeirão Preto, Alexsandro Ishisato de Souza, atropelou sete pessoas e matou um jovem manifestante, Marcos Delefrate, com sua possante Land Rover, que ganhou fama com o secretário nacional do PT, Silvio Pereira, e vai ser fabricada no Brasil.
Lembro-me de ter conhecido o sistema ABS de freios (Anti-lock breaking system) há mais de 20 anos, quando escrevia para a Mercedes Benz (Sua Boa Estrela), assim como o airbag e outros avanços da tecnologia automotiva, sempre estimulados pela Fórmula 1. Os carros evoluíram, mas quem está no volante continua lá atrás (não é piada, Rubinho).

Sou do tempo em que os desastres bárbaros viravam histórias tenebrosas; ferragens distorcidas eram depositadas na beira da estrada pelo vigilante Carlos e seu amigo Lobo (foto), para servir de alerta a outros viajantes. Capotagens urbanas eram tão raras que a gente parava em volta delas, como formigas em torno de uma barata morta. As curvas da estrada de Santos curavam a solidão, e descer a rua Augusta a 120 por hora era inimaginável, mesmo que se botasse a turma toda do passeio para fora.
Dei meus cavalos-de-pau em estradas de pouco movimento, para impressionar as garotas (nos anos 70), mas a Porsche 550 que matou James Byron Dean, em setembro de 1955, andava a menos de 160 km/h. Hoje, 400 motociclistas morrem nas ruas de São Paulo, por ano, sem nunca ter visto The Wild One (O Selvagem), com Marlon Brando. Quatro ciclistas são atropelados, todos os meses, na grande cidade (um por semana). Os ineptos e os irresponsáveis se multiplicam mais depressa que os pardais espetados nas ruas.

Um velho Ford F600 (tio da Porsche 550 de James Dean) que um dia foi azul, me saúda no estacionamento do Ceagesp, num sábado ensolarado. “Estamos saindo”, me anuncia a senhorinha sansei que vai à boléia, acompanhada pelo ancião que conduz a relíquia, provavelmente seu pai, ou avô. Nenhum problema: ambos são (foram) perfeitamente educados. Essa é a diferença.
O mesmo clima, de educação e respeito, aliás, mantém esticada a rede que sustenta a grande feira do entreposto paulista, armada a menos de 500 metros da lona do Cirque du Soleil, na Vila Leopoldina. Para mim, o varejão é a principal atração de São Paulo. Acabo de me abastecer de quatro cenouras, cinco tomates verdes, uma berinjela, três chuchus, duas abobrinhas e um punhado de ervilha torta, só para manter viva a geladeira, da qual deveria me despedir, naquele dia, para férias de duas semanas. Separação difícil. Agarro um maxixe e pergunto se é jiló, para conferir o conhecimento do atendente. Uma betoneira enche de concreto novo o galpão ao lado, numa zoeira de obras, pregões e cores, das quais sempre tenho saudade.

Finjo confusão depois de pedir um pé de alface americana ao patriarca da banca, que nem me olha, enquanto observa a neta de prováveis cinco anos, a brincar com a filha de uma cliente. A moça da família, uma flor de lótus, me sorri, quando peço mais alguma coisa e finjo reclamar da falta de atenção. Barganho um pouco, e me despeço, enquanto penso na novidade trazida por meu filho, na noite em que ele vem nos comunicar a decisão de aceitar o convite da empresa para trabalhar em outro país: “O varejão do Ceagesp vai acabar”.  
Um erro administrativo, penso, motivado pelo fator trânsito, este imperador que preside todas as nossas demais decisões. O engenheiro de tráfego tornou-se o profissional mais respeitado pelas comunidades, mais que o antigo oráculo grego, que o engenheiro de produção do século passado, que o pastor evangélico da atualidade. Por causa do trânsito, a tecnologia de pagamento à distância evoluiu: entregadores de pizza já não precisam mais ter medo de morrer por causa de cem reais. 

A viagem do Renan Calheiros e do Henrique (Eduardo) Alves foi um erro político, assim como a estrutura que os elegeu, e que vai permanecer a mesma. Como repórter, fiz pelo menos duas reportagens sobre erros médicos, nos anos 80; como editor, tive que entender a definição de erro judiciário: "má subsunção do comportamento à norma em vigor à época do fato". Mas alguns tipos de erro são capazes de engolir o futuro de várias gerações.
Thorndike descobriu que os animais podiam ser ensinados (ou adestrados) pela técnica do ensaio e erro (leis do efeito e do exercício), mas nós, brasileiros, dificilmente associamos ideias como esforço e recompensa, e estamos custando a aprender que, para tirar 10 na prova de Matemática, temos que abrir mão de duas horas de futebol ou de videogame. Ou de um show da Anita, dependendo da nossa idade. Num tempo em que mamãe e o papai ralam o dia inteiro para pagar o tênis e as lanchonetes de marca, e que muitas famílias da suposta classe média continuam tendo mais de três filhos, a Educação nunca se encontra.

Outro dia, numa casa de praia, perguntei aos moços da empresa de energia que foram socorrer uma pane elétrica (e tiveram que voltar, porque o disjuntor bipolar de 50 ampères que eu comprara, a 5 km de distância, tinha defeito) quanto, mais ou menos, eles recebiam, para trabalhar a 70 km distância de suas residências, numa profissão arriscada, que exige adestramento, esforço físico e conhecimento técnico: “Mil e oitenta reais”, informou um deles, notando ter frequentado 17 cursos de especialização.  Já os técnicos da operadora de TV por assinatura que haviam estado na mesma casa, 24 horas antes, fazem jornadas de 12 horas, sem a chamada verba de refeição. E os cientistas sociais demoraram a entender por que o povo foi para as ruas, em junho último.
Esses meninos são colegas de geração da moça que trabalha com os pais, na feira de sábado, e que frequenta o mesmo Butantã do Paulo Vanzolini, ou a Medicina da USP, do Dráuzio Varella: conheci segundos fisioterapeutas, biólogos, dentistas, administradores de fundos bancários. Todos cordiais, brasileiros que acordam às três da manhã para ajudar suas famílias a se manter com dignidade, enquanto terminam seus estudos. Revendem flores, queijo holandês, maçãs argentinas e frangos esquartejados na cidade de Bastos, vizinha da Capital. Alguns se tornaram decasséguis – esses, acabei perdendo de vista.

O Bom Dia de hoje (23/7) informa que um manifestante atirou um coquetel molotov num PM e que a moça que foi atacada por um tubarão, em Boa Viagem, morreu. Tudo muito rápido, tem que sobrar mais tempo para o papa e para a neve de cinco milímetros. Havia uma placa na praia, como as que existem na Austrália. Lá, quando um bicho desses fura a rede, soa um alarme igual àqueles que instalaram em Teresópolis, depois daqueles deslizamentos que sucederam os deslizamentos do ano anterior, e todo mundo sai da água.
O telejornal avisa que os cortes no orçamento serão mais modestos, de apenas R$ 10 bilhões, sem mexer nos gastos sociais – R$ 4,4 bilhões virão das “despesas obrigatórias” (passagens, viagens como aquela do Renan Calheiros e do Henrique Eduardo Alves) – e que nenhum dos 39 ministérios será extinto, nem mesmo aquele das Cidades, cujo titular, Aguinaldo Ribeiro, do PP, está sendo investigado pela PF sob suspeita de superfaturamento na prefeitura de João Pessoa, PB.

 
Eles vão continuar se matando no trânsito depois de pequenos erros, como mudar de faixa sem olhar o retrovisor ou dirigir embriagado um veículo de 300 hp, equipado com câmera de estacionamento, central multimídia, limpador de para-brisa com sensor de chuva e rímel que também funciona como hidratante e bloqueador solar. O erro continuará sendo tão estúpido quanto uma redação do Enem, incompatível com a mente que inventou a lâmpada, o antibiótico e a vacina contra a febre amarela; que mapeou genoma humano e que, depois, criou o celular,  a guerra biológica, os alimentos transgênicos e os drones. Tem remédio para isso?

terça-feira, 18 de junho de 2013

Pula a fogueira, Iaiá!


Não tenho nada de profeta (além desta barba branca), mas viajei num trem da CPTM, no trecho da Linha 9-Esmeralda que vai da estação Morumbi à de Jurubatuba, na Zona Sul de S. Paulo, por volta de seis da tarde, na véspera da primeira manifestação convocada pelo Movimento Catraca Livre (5/6). Ficamos por 10 minutos, na estação Santo Amaro, esperando socorro para uma passageira desfalecida. A pressão era forte. Eu pensava naquela logística absurda, quando uma mulher corpulenta, aparentando uns 30 anos, sugeriu que todo mundo aderisse ao protesto do dia seguinte, lembrando que as nossas reclamações, naquele espaço e naquelas circunstâncias, só serviriam para aumentar o próprio desconforto e indignação.

Embora use o transporte público muito raramente, percebi, naquele momento, que alguma coisa havia mudado, em relação à atitude daquelas pessoas que costumo encontrar nas filas, ônibus, metrôs e corredores da cidade. Ninguém rechaçou o convite da passageira rebelde, ao contrário: ouvi, isto sim, murmúrios de aprovação (pena que você não ande mais de trem, Clóvis Carvalho).

O que aconteceu a seguir foi o que a imprensa cobriu (mal): uma sequência de protestos aparentemente descoordenados, quase sem controle, que pegaram de surpresa as autoridades e redações amortecidas pelos sucessivos golpes do dragão da cauda longa, e expuseram a falência da política tradicional (nenhuma liderança ofereceu-se para tentar negociar com os manifestantes), as deficiências de um aparato de segurança voltado quase que exclusivamente para o crime, e as entranhas de nossa maior vulnerabilidade: um povo sofrido, acuado, cansado de sua própria miserabilidade e que, como exibiram cartazes das manifestações, decidiu acordar, em seu “berço explêndido”, para assumir a condição de “um filho seu não foge à luta”.

Tardia e simultaneamente, hoje (18/6), doze dias depois da explosão de insatisfação pública, que acarretou desde mudanças nos horários de expediente das empresas até esquemas de vigilância autônomos nas lojas do comércio, artistas pintando a cara, insegurança nas ruas e adesão da(s) classe(s) média(s) aos protestos – com direito a expurgo público de bandeiras partidárias – governos municipal e federal deram a entender que começam a ouvir o eco das massas e se mostraram dispostos a negociar com os manifestantes.

“Queremos  viver”, disse um manifestante. “O Brasil é um país maravilhoso, mas aqui, estamos sempre acuados, com medo”, resumiu um outro. Ouvi pessoas comuns, ambulantes, trabalhadores de fábricas, vendedoras de lojas – como as que estavam no meu comboio, dias atrás – dizerem que o povo não aguenta mais: não reclamavam da falta de emprego ou do salário baixo, mas de viver num país onde nada funciona.

Não falavam da infraestrutura deficiente que afasta o investimento na produção, nem dos altos impostos, nem do dólar a R$ 2,20 e da volta da inflação, mas sim, da desfaçatez dos políticos profissionais e da corrupção (inclusive dos costumes). Sabiamente, todas essas mazelas estão sendo associadas, pelo povão (que, segundo o Lula, só quer saber de sua TV de tela plana das Casas Bahia) à mesma origem, e não necessariamente a este, ou àquele partido político.

“Estou cansada desse estado de coisas, moço”, me confidenciou uma  senhora, numa fila da Caixa. “Eles fazem muita propaganda”, ela disse. Não resisti e contei-lhe todo o trabalho que tive, nas últimas semanas, para portar o meu crédito imobiliário para essa mesma Caixa que, segundo minha gerente, “não pôde fechar o negócio porque a Lei 12.703/2012, não foi regulamentada”. Para fazer a portabilidade, hoje, a CEF exige uma aberração jurídica intitulada “Termo de Interveniente Quitante”, que os bancos privados não aceitam porque, se estão se vendo livres do antigo cliente, não têm mais nada a ver com o novo financiamento (o que está correto).

Foi, aliás, esse mesmo estado de coisas que impediu a grande empresa de comunicação do país de entender rapidamente o que se passava, no início das manifestações, como se exige de um telejornalismo que nunca desliga (exceto o som, durante alguma vaia endereçada à presidente da República). A emissora quer dar a impressão de estar logo alí,  atrás das grandes redes internacionais, mas acaba sendo vaiada nas ruas por uma vocação ancestral de adesismo e pela imobilidade característica dos grandes transatlânticos.

A Globo cobriu muito mal as primeiras manifestações, não por parti-pris, mas por falta de flexibilidade, o que, considerando a natureza de sua atividade, pode se resumir simplesmente no emprego de uma linguagem excessivamente conservadora, antiquada, enferrujada, pouco flexível. Enquanto a âncora da Globonews, Leilane Neubarth, atribuia a “meia dúzia de punks” a tentativa de ocupação do Congresso, ontem (17/6), em Brasília, cerca de 100 pessoas (pelo menos) invadia o teto do edifício e uma segunda multidão acessava a ponte sobre o espelho d’água que cerca o Legislativo.

No Bom Dia Brasil de hoje, a emissora vangloriou-se de ter conseguido infiltrar uma repórter na Assembléia do Rio, durante a última madrugada, como se isso fosse importante. Em seguida, um certo capitão Rodrigo – visivelmente deslocado – emitia opiniões sobre o comportamento policial mais ou menos adequado em passeatas. Matéria de serviço para quem, cara-pálida? 

Quem se deu bem e quem se deu mal, na cobertura das manifestações, aliás, foi a principal diversão dos jornalistas, nos últimos dias, e muitos se surpreenderam com a perspicácia do tradicional brucutu, José Luís Datena, que ficou ao lado do povo, desde o primeiro dia da mobilização: “Gandhi”, citou, em seu Brasil Urgente, “construiu uma revolução a partir de protestos pacíficos”. Enquanto isso, cardeais, como o Arnaldo Jabor, eram obrigados a se contradizer. Aquele sujeito da Veja, o Reinaldo Azevedo, naufragou na história toda, com o estardalhaço habitual.

Alguns temeram pela falta de rumos do movimento (esquecendo que a ocupação de Wall Street teve, sim, consequências), mas o Uol, onde, diariamente somos obrigados a atravessar um mar de baboseiras antes de chegar à via dos fatos, fez, na minha opinião, a melhor cobertura dos últimos dias, tendo conseguido resumir, inclusive, os principais objetivos da mobilização, fora o preço das passagens: “Somos contra a corrupção, contra a PEC 37 (Proposta de Emenda Constitucional) que tira poderes de investigação do Ministério Público e contra os gastos na Copa do Mundo", reproduziu. 

A verdade é que a tevê por assinatura, o celular, a fila e o financiamento da Caixa, o trem, o metrô, a polícia, o eletrodoméstico importado e as Casas Bahia, – tudo isso é muito bom – quando funciona. O pós-venda é que são elas, dona Maria Luísa, e tem mais gente aprendendo mais sobre tudo isso.

Possivelmente, os protestos não vão abalar as chances de reeleição da presidente Dilma, segundo a qual, a sua geração (nossa) “sabe o quanto custou mudar o país”. Talvez por isso, ela tenha declarado, hoje (18/6): “O meu governo está ouvindo essas vozes por mudanças”. No entanto, de acordo com o secretário Geral da Presidência - um dos 39 ministros da presidente Dilma, também hoje (18/6)  “o governo não entendeu o que está ocorrendo ainda. São novas formas de organização e mobilização que ainda não compreendemos”.

Coincidência ou não, há alguns dias, o empresário de jogo do bicho, Carlinhos Cachoeira, que se sentiu ofendido pela assessoria do governador Marconi Perillo, de Goiás, prometeu que a caixa de Pandora seria "brincadeira de criança" diante do que ele poderia perpetrar para defender a sua dignidade e a de sua família. Será que essa movimentação toda surgiu daí? Pelo sim, pelo não, Josef Blatter, da Fifa, já profetizou: “Quando a bola começar a rolar, isso tudo vai acabar, porque o futebol é maior que a insatisfação das pessoas”. A conferir.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Investigação filosófica


24 horas depois do atentado de Boston, a polícia norte-americana já havia identificado os irmãos chechenos, Tamerlan e Dzohkhar Tsarnaev. Aqui, a brutalidade do crime que vitimou a dentista Cinthya Magaly, no Jardim Anchieta, em São Bernardo, motivou a polícia paulista a prender três dos quatro principais suspeitos, 48 horas após o assassinato. Tecnologia e vontade. Mas a ciência continua longe de explicar a natureza desse padrão de violência, cada vez mais selvagem: frustração, crueldade, ódio racial, fanatismo religioso, ciúmes, distúrbios psíquicos, ignorância, desejo de vingança. Mesmo tudo isso junto não basta para se entender alguns crimes recentes.

Não se pode isolar, nem contextualizar, racionalizando, os vetores coletivos do fenômeno: a impunidade (que não se limita à maioridade penal), a morosidade e a ineficácia da Justiça (com seu Código Penal, eternamente caquético), o ôco da família e a falência da fé, uma Educação de péssima qualidade; o recheio sanguinolento da cultura pop – essa coisa que o Caetano Veloso tenta explicar, atônito, ao apresentador dos Festivais da Record, Randal Juliano (o William Bonner da época), no filme Uma noite em 67 (de Renato Terra e Ricardo Calil); o videogame, com suas vidas instantâneas, a intolerância – pobrezinha, diante de tantos gólgotas e nosferatus.

No revestimento de tudo, em poliéster aluminizado, de cores berrantes, o vale tudo que passou a dominar as nossas relações sociais; o salve-se quem puder, o tudo a qualquer preço, os juízos morais destroçados pelas guerras e pela luta de classes: - Nada me impede, nada me assombra, nada me detém. Eu vi, eu quero, eu posso. Fomos da Lei de Murici à Lei do Cão, sem escalas: quem não almoça é jantado. Um certificado de incumbência e autoridade para tudo, raso e de amplo alcance, como convém à pós-modernidade, esse império do espaço, sem tempo nenhum, para ninguém e para nada.

Shakespeare não conheceu a manicure Suzana Oliveira Figueiredo, de Barra do Piraí (RJ), que matou o filho do amante por vingança. Dostoievsky nunca pensou num Raskolnikov capaz de atear fogo em sua vítima indefesa, muito menos em alguém que tivesse por missão aliviar a dor. Robert Wiene seria incapaz de montar um gabinete do Dr Calegari com a atmosfera da Clínica Roger Abdelmassih ou da UTI do Hospital Evangélico de Curitiba. Fomos muito depressa, do Oliver Stone do Expresso da Meia Noite (corinthianos injustiçados permanecem sequestrados na Bolívia) ao realizador de Savages, passando pelo Joel Coen de Onde os Fracos Não Têm Vez.

Mas garotos “de menor” que apavoram suas vítimas a soldo dos criminosos profissionais, como o personagem do conto Irmão, de Ataíde Tartari (Contos Cruéis, organizados por Rinaldo Fernandes, Geração Editorial), não frequentam essas salas de cinema: vão direto ao Jason Voorhees (Sexta-feira 13), ao Micheel Mayers (Halloween), ao Freddy Krueger (A Hora do Pesadelo), ao Leatherface (Serra Elétrica) e ao Mick Talor (Wolfcreek). Acabam acreditando naquilo - não têm idéia do que se passa por trás das vitrines e telas de cinema.

“Adquiri o hábito de pensar constantemente (e de dizer!), minha mãe é repulsiva, minhas irmãs também, e estúpidas, meu pai é fraco, meu irmão é um pobre idiota, todos eles são uns imbecis”, afirma o austríaco, Thomas Bernhard, em seu ótimo “Extinção”. Talvez os criminosos daqui pensem assim. Mas se os assassinos de Dudu de Jesus (filho do dançarino Carlinhos de Jesus) tivessem ouvido Schubert durante toda a vida, em vez de É o tchan, eles teriam sido mais complacentes?

Por certo, o nihilismo dos assaltantes do Jardim Anchieta e da Maratona de Boston não é profundo, e sim lateral. Eles nunca leram Nietzche, não sabem quem foi o casal Thénadier ou o avarento Scrooge. É possível que nunca tenham lido sobre Sauron e Voldemort, os vilões de J.R.R.Tolkien (Senhor dos Anéis) e de J.K. Rowling (Harry Potter), esses cândidos deuses do mal que povoam a imaginação da geração X.

Parlamentares e juízes que, hoje, armam tertúlias em torno do poder civil (PEC 33 versus impedimento aos novos partidos) são leitores de Mann e Proust, perdidos no tempo, assim como os infelizes repórteres que cobriram os eventos de Boston, enquanto milhões de pessoas, à sua volta, trocavam mensagens e tweets com seus smartphones. “A internet é desordenada, ruidosa, pontilhista e erra com frequência”, observa Maureen Dowd, colunista do NY Times que ficou famosa ao cobrir o escândalo de Monica Lewinsky, “mas se você tem necessidade da notícia instantânea, a TV não consegue competir com ela”.

O fato é que nem a Comunicação, nem a Sociologia, nem a Ciência Jurídica – e muito menos os parlamentos de nossas toscas democracias – conseguem entender e parametrizar a fenomenologia humana da pós-modernidade, a fim de iniciar um processo de revisão e substituição de seus estatutos de convivência, fundados na cultura clássica e apenas renovados pelo Iluminismo.

No caso dos assassinos, tanto os de Boston, como os do Jardim Anchieta, a combinação dos recursos da tecnologia com os da investigação policial – apoiados pela população – deram resultado. Mas a combinação desses três fatores, sem o elemento crucial da inteligência, pode causar grandes estragos, de linchamentos precipitados a erros judiciários, cada vez mais difíceis de serem corrigidos. É o que acontece, neste instante, com os 12 corinthianos presos injustamente em Oruro, na Bolívia, pela morte do garoto Kevin Espada, torcedor do San José. É preciso entender as relações de poder que estão por trás desses fenômenos, e nos aprofundar no conhecimento da alma humana, do ponto de vista dessa nova matriz contemporânea, a lógica do espaço, e não mais do tempo.

Mas eu não estou totalmente pessimista. Há três dias, vi, numa placa de trânsito da Capital paulista, controlada pela CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), o seguinte conselho: “Procure rotas alternativas”. Finalmente, um sinal de que a força do criticismo e da inovação estão conseguindo aflorar, em nossas velhas estruturas do pensar. Mal posso esperar por uma palestra do diretor daquele órgão na Casa do Saber, ou no programa da TV Cultura, o Café Filosófico. A minha curiosidade a esse respeito sempre foi grande.