quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

 A cerveja e o queijo


Eu não conheço cerveja. Quando morei na Bélgica, experimentei algumas de dar saudade, como a Trapiste de cereja que, anos depois, deixou de ser fabricada. Mas não provei nenhuma Belgian Tripel* como a que o João Sposito produz, na Vila Penteado, um bairro paulistano que o Waze não reconhece como tal e chama de Brasilândia, vizinha famosa e antiga frequentadora do noticiário policial (hoje, não mais).

João, assim como eu – e entre outros ‘sobreviventes’ – vem da extinta indústria cultural, cujo assassinato pela tecnologia da informação e suas moiras – Internet, redes sociais e inteligência artificial – nem o Theodor Adorno previu. Ex-produtor de teatro e de vídeo para grandes empresas, ele decidiu, há três anos, mudar de ramo e fabricar boas cervejas.

O hedonismo amoral dos dias de hoje nos pegou de jeito: eu tentei permanecer na área, escrevendo sobre gastronomia, mas a poesia nunca deu dinheiro, como João Cabral percebeu, logo de cara, antes de virar diplomata; outro de nós virou mercador de vinhos; João Sposito trocou a câmera pelos tubos, panelas, fermentos, maltes e cereais. A cerveja dele tem qualidade: em pouco tempo, conquistou amigos e influenciou pessoas.

Mas veio uma rasteira da pandemia e, logo em seguida, uma segunda, com o fim de um relacionamento afetivo: subitamente, a cervejaria foi desalojada de suas instalações, com o respectivo cervejeiro. E foi assim que o artesão se despediu do bairro de classe média alta, Xispeteó, onde nasceu, cresceu e se multiplicou. O mesmo lugar em que começou a fortalecer o seu negócio. Foi tudo para o vinagre, como se diz.

O nosso personagem foi deslocado para a Vila Penteado, um bairro com nome de bolero, para tudo recomeçar. Além da nova logística, teve que reaprender muita coisa, da geografia à vizinhança local. “Você não teve medo de ser taxado de comunista?”, perguntei, depois da mudança, baseado nos novos tempos. Mas foi o próprio João que me explicou a raiz da palavra: “Comunista é tudo ou todo mundo que não pensa como eu, aqui da extrema direita”. Mas, não. Na Vila Penteado, ele notou que as pessoas preferem a democracia.

Além dessa boa surpresa, João encontrou novidades que a periferia reserva para quem se aventura para além do centro expandido da grande cidade, como os bandeirantes. – Ôpa! – foi mal. A primeira foi um show pirotécnico inusitado durante um réveillon solitário, passado na cervejaria, para economizar os recursos da reengenharia da firma.

Segundo Sposito, da varanda da nova sede (e moradia), se avista, tanto a Vila Penteado como toda a Brasilândia, até o Morro Grande, que a separa de Pirituba. Nesse caminho, não existem prédios para confundir o panorama. Na passagem do ano, pequenos núcleos de fogos de artifício se alternaram em sessões de cinco a dez minutos, como se a sequência tivesse sido programada. O cervejeiro agradeceu em silêncio.

Novos lugares e ruas frequentadas por ‘clubes da esquina’ de crianças e adolescentes chamaram a atenção do cervejeiro: Rua Parapuã, Jardim Tiro ao Pombo, Esporte Clube Vida Loka e bairro Poesia Épica. Nomes comuns, como Rua do Farol e Vitória Régia dividem espaço com a Rua Ruiva, a Hamburgueria Casa dos Bruxos e a Perfumaria Goya.

A Vila Penteado está limitada por bairros de nomes masculinos, como Elísio, Gabriel, Carlos Fernandes e Nicolas Adam, que me lembraram a Rua Negão do Jipe, que fica no Engenheiro Marsilac, no outro extremo de São Paulo e que ganhou esse nome porque o primeiro morador, um senhor preto, que tinha um jipe, costumava resgatar visitantes desavisados que terminavam atolados na lama das vizinhanças. Além de chuvoso, o bairro é o mais frio da cidade.

Outra coisa que o João estranhou foi a ausência de campainhas em Vila Penteado. Os entregadores, de secos ou molhados, se anunciam aos berros, como os antigos pregoeiros do passado e uns poucos amoladores de facas que resistiram à passagem do tempo: “Entregadoooor”, se apresentam. Até conhecerem os novos moradores e começar a gritar o nome de cada um. Vizinhos batem palmas para interagir uns com os outros – em vez de usar o Whatsapp. E, vejam vocês: muitos conversam presencialmente e se ajudam entre si.

De tudo isso fiquei sabendo durante uma entrega de cerveja em minha casa, pelo próprio dono da cervejaria que, a exemplo do consertador de cadeiras de palhinha instalado na frente da Igreja de Santo Ivo (padroeiro dos advogados), perto do Ibirapuera, responde pelas áreas de produção, marketing, logística, finanças, pesquisa e sustentabilidade – além do SAC, Serviço de Atendimento ao Cliente.

Brindamos o encontro com uma antiga Apa que já me pertencia e uma amostra grátis da Belgian Tripel que ilustra esta croniqueta. Para ninguém passar dos limites, alimentei a conversa com uma torta de batata (cortada em chips) assada no forno em camadas entremeadas por parmesão do Jair, do Jaime (Alagoa-MG) – muito fácil de fazer. A torta. O queijo do Jair demorou seis meses para chegar à forma atual (foto).

(*) Só de olhar, a Belgian Tripel já atrai, por sua coloração dourada transparente e colarinho denso de espuma cremosa. A aparência chama tanta atenção que a cerveja tem seus copos especiais para valorizar o sabor e o aroma: uma tulipa ou um goblet. Mas os protagonistas são o malte, a levedura e as notas frutadas. É possível identificar aroma de especiarias como canela, pimenta, noz-moscada e cravo, ou frutas como laranja, limão, pera e banana. Essa característica é proveniente das leveduras. Vale ressaltar, ainda, o toque de mel ou cereais que vem do malte pilsen.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Não volto pra você nunca mais

Entre os tesouros encontrados na fazenda de Sandra Moreira e JB de Souza Freitas, antigo amigo e mestre, na semana passada, estava “Você vai voltar pra mim”, de Bernardo Kucinski. Uma coletânea de contos reunidos pela Cosac Naify (2014), que me trouxe, entre outras memórias, as narrativas de Gorki – aquela mistura de ironia e singeleza – em histórias deliciosamente amargas como “Um homem muito alto”, “O garoto de Liverpool” e “A mãe rezadeira”.  

Havia outras preciosidades, além da hospitalidade dos anfitriões, pássaros e flores: cartuns do genial Nicolielo, parceiro de Souza Freitas desde os anos 60, no Diário de Bauru – que se tornou eterno há três meses; 20 mil LPs, com raridades que incluem o encontro de Mercedes Sosa com Milton Nascimento, em 1983; Fernando Pessoa na voz de João Villaret e uma coleção das primeiras gravações da Motown, com Diana Ross (The Supremes), Marvin Gaye e Smokey Robson. Sobre um balcão de farmácia do século passado, o sonoplasta opera seus dois toca-discos Dual CS505 e Phillips.

Tocamos Lili Marlene, com la Dietrich, J’ai deux amours, com Josephine Baker, Viola Quebrada, com Pena Branca e Xavantinho, a Fantasia Triunfal do Hino Nacional Brasileiro, de Gottschalk, com Eudóxia de Barros, e a Internacional Socialista – no original. Também ouvimos Gracinha Leporace – que o Sérgio Mendes nos arrebatou muito cedo – e solos de Jobim, Stan Getz e Miles Davis.

Quando a memória se esgarça, reencontros trazem a sensação do encaixe da peça-chave de um quebra-cabeça, mesmo que você não esteja numa sessão de terapia. O futuro Memorial JB de Souza Freitas, no município de Cambará-PR – sede da fazenda – ou em Lindóia-SP, onde ele nasceu e conserva outras preciosidades, guarda, além de canivetes, isolantes de cabos de alta tensão feitos de porcelana e obras de Hélio Oiticica, Elifas Andreato, Carlos Scliar – entre outros artistas – uma inusitada coleção de ‘cartazes da fome na Era Bolsonaro’.

Souza Freitas tem a estranha mania de ajudar vadios, como o daquele poema de Pessoa, “Cruzou por mim, veio a ter comigo numa rua da Baixa”, interpretado por Jô Soares no disco “A Música em Pessoa” (1985): comprou cartazes de papelão pedindo ajuda para matar a fome, e já resgatou do carrinho de recicladores, fotos de São Paulo dos anos 40 feitas por Jean Manzon (1915-1990).

Mas o que me incomodou, nessa visita, foi a obra de Kucinski. Dei de cara com o espelho estampado no meio do caminho dos contos de “Você vai voltar pra mim”: as atrocidades cometidas pelos esbirros da ditadura militar contra nós – jovens idealistas – nos chamados anos de chumbo. Principalmente agora, que a brutalidade e a ignorância voltam a ameaçar a nossa liberdade e os nossos desejos de paz, beleza e justiça.

Assombrados pelo fantasma da repetição da história, lutamos para acreditar em dias melhores, apesar da barbárie que cresce à nossa volta. Dias de sombras, perseguições, assassinatos, ideologias de ódio. Não podemos permitir, em nenhuma hipótese, a volta de uma ditadura como a de 1964. Seguimos em busca do equilíbrio, em cima da corda bamba. Não vai ser fácil, mas se o Bernardo Kucinski, – Alô, Bernardo! – conseguiu, em sua deliciosa narrativa, podemos alcançar esse mesmo objetivo. Como diria a personagem título do livro, se, hoje, estivesse entre nós: “Não volto pra você nunca mais”.

segunda-feira, 25 de julho de 2022


 

O queijo do Outro

Estando na Fazenda Velha, Pedra do Picu (símbolo de Itamonte, MG), a 15 km do centro da cidade (latitude 22º16 Sul, longitude 44º87 Oeste), você só precisa percorrer 50 km de estrada – a maior parte de ‘chão’ – para chegar à loja-sede do famoso Queijo D’Alagoa.

Em Itamonte, entre na avenida mais importante da cidade, a Campos Elíseos, que não se parece com a homônima parisiense, mas abriga a prefeitura, o fórum e o cartório. E a farmácia Leone, a eletrotécnica Ita e o mercado da Pedra do Picu, seguidos pelo Walton Chaveiro, lanchonete Hora do Lanche, loja do Meu Avô (ervas medicinais), Agro Cem e Casa de Carnes Marciano. Depois da Essencial Moda Íntima e da Império das Embalagens, no fim da rua, vire à esquerda: uma plaquinha empoeirada apontará o próximo destino: Alagoa-MG.

A estrada começa bem, de mão dupla e asfalto razoável. Menos de cinco quilômetros depois, começa a buraqueira, trechos em obras, nenhuma sinalização e muita poeira, porém com paisagens de tirar o fôlego. Placas dissidentes mostram que você está chegando, ou se afastando: 12 km percorridos, ou 14 km até chegar? – Menos de 100 metros separam uma da outra. Mais alguns sacolejos e surge um grande out-door, diante de um abismo: Bem Vindo a Alagoa! O visitante tem que parar para entender. É apenas um mirante sobre a Mantiqueira: o meio é a mensagem.

Depois você vê algumas casas, galinhas, cachorros e umas poucas vacas num pasto maltratado pela seca. A cidade está perto. Se o Waze se perder do satélite, basta você perguntar ao primeiro vivente que encontrar pelo caminho:

- Onde fica aquele queijo premiado na França? – O interrogado deve responder com outra pergunta:

- Aquele da televisão? – Esse mez – você pode responder, referindo-se a uma reportagem mais ou menos recente do Globo Repórter sobre queijos de Minas.

A orientação será suficiente para se chegar à Rua José Luiz Siqueira, 352, no centro da cidade de Alagoa, mas se você for curioso, ou desconfiado, como um mineiro, vai notar que muita gente, no entorno da cidade, tenta tirar uma casquinha no irmão que ganhou notoriedade em terras de Maria Antonieta e Napoleão: Medalha de Prata no ‘Mondial du Fromage’ de Tours, no Vale do Loire, ‘a capital mundial do queijo’ (segundo eles), a 240 km de Paris.

Mais aclimatado, vai perceber – mesmo não tendo estudado Sociologia na USP, nos anos 1970, ou na PUC, nos anos 1990 – que o buraco é mais em baixo: todo mundo faz queijo em Alagoa-MG. As placas se multiplicam: Nozinho, Minas Padrão, Queijo, Mel e Artesanato. Se assuntar um pouquinho, vai ouvir que fulano, no fim da rua da Nhá Chica, faz um queijo tão bão quanto o premiado, só que mais em conta.

Mas o buraco também pode estar mais acima dos 1.520 m de altitude da Fazenda 2 M, de Márcio Martins de Barros, o produtor premiado do Queijo D’Alagoa, “artesanal de leite cru e fermentação natural, sabor picante, porém suave, intenso e persistente, com aromas de ervas frescas e lácteos”, como explica o portal da empresa na Internet: “O sabor mineiro da Mantiqueira”.

É que Márcio tem um irmão, Jair, que mora a uns 8 km da cidade, no Sítio da Serra do Condado*, a 1.650 m do nível do mar, em cujo pequeno laticínio, numa propriedade de 40 hectares (32 de mata nativa e 6 de pasto) fabrica 3 queijos por dia, para clientes e amigos de diferentes regiões do país, que se aventuraram a conhecer o produto que só pode ser encontrado ali, naquele único ponto de venda.

A fama do queijo “melhor que o premiado” se esgueira pelas esquinas da cidade mineira como um cochicho. Chegar até a propriedade de Jair são outros quinhentos. Começamos, eu e Dona Cecília, com uma simples direção: “Vire à direita na rua da Matriz e atravesse a ponte até chegar ao outro lado do rio”.

O ‘Outro Lado do Rio’ (Aiuruoca) é nome de um bairro. Consta de poucas casas, nas quais, na hora do almoço, não se vê ninguém. Numa delas, encontrei um casal de idosos, que devem ter almoçado mais cedo, sentados à sombra de um roseiral. Perguntei do Jair, do Condado.  

- Tem três Jair no Condado – disse o senhorzinho.

- Aquele que faz queijo – insisti.

- Todos os três fazem queijo – ele arrematou. Hesitei por uns segundos, mas arrisquei:

- O irmão daquele do queijo premiado.

- Deve ser o Jair do Jaime – disse a senhorinha, dirigindo-se ao marido.

- O senhor volta para a estrada e segue ela até o fim – indicou o senhorzinho. Até o fim? – pensei. Mas não quis estragar a boa notícia. Seguimos em frente. Mais alguns quilômetros de buraqueira e muito pó, pedi nova indicação a um homem de chapéu que conduzia duas vacas malhadas.

- Fica muito longe – ele informou. – É a última casa da estrada – acrescentou, como quem diz: melhor não arriscar. Para um mineiro, um povo que costuma encurtar as distâncias com um “é logo ali”, a resposta não poderia ser mais desencorajadora. Tive mais duas indicações semelhantes, ao longo do caminho. Pensei em desistir. Duas horas da tarde, e não tínhamos parado para almoçar. No carro, três queijos D’Alagoa – dois eram para presentes – e um litro d’água.

Dona Cecília, que me conhece melhor do que eu, me esperançou:

- Para quem veio até aqui... – Vamos em frente – concluí. Cada casa que aparecia depois de cada curva, tinha que ser a última. Não era. A viagem demorou, pelo menos, mais uma hora. Mas chegamos. Três cachorros amistosos vieram nos receber.

- Ô, de casa! – gritei duas ou três vezes.

Dona Fátima, esposa de Sô Jair, veio até nós. Dentro da casa, na mesa da cozinha, uma festança em torno de um queijão de 5kg com cara de antigo. Um casal de paulistanos, felizes proprietários da iguaria – que dividiram conosco algumas lascas da peça, encomendada e paga há um ano – o autor do produto, curado ao longo de 9 meses, seu filho, Fábio, devidamente inserido nas artes da queijaria, Dona Fátima, e as filhas dos compradores. Todo mundo feliz com o aroma e sabor picante e adocicado daquele parente do Grana Padano (primo do Parmesão), até nos pequenos detalhes, como cristais que preenchem a massa e explodem na boca. Maravilha da natureza, moldada pelo menino Jair, de 75 anos, um metro e noventa de altura, gentileza e saúde, irmão de Márcio e igualmente herdeiro da fórmula ensinada à família pelo pioneiro italiano, Paschoal Poppa, há mais de 100 anos.

(*) A Serra do Condado fica, ‘do outro lado do rio’ Aiuruoca (‘casa do papagaio de peito roxo’), que atravessa Alagoa (cavidade remanescente da mineração de ouro e pedras preciosas iniciada pelos bandeirantes, em 1722), a oeste do Parque Nacional da Serra do Papagaio. O município tem, hoje, 3 mil habitantes, o que equivale a uma densidade habitacional de 16 pessoas por km2.

domingo, 6 de outubro de 2019

Dr Murphy, alegria dos homens

        Leg: Sempre quis ter um boneco desses e um globo terrestre

Tenho dois motivos de inveja dos americanos do norte: o talento para as vendas – o sujeito te convence numa frase, ao entregar o cartão de visitas – e a competência dos roteiristas de cinema e de TV. Depois dos megassucessos da Netflix e HBO, a Globo traz, ao grande público, “The Good Doctor”, dos estúdios Sony/ABC. A série corre nos velhos trilhos dos doutores Ben Casey, Kildare, ER, House, e Grey’s Anathomy, mas tem um par de ingredientes orgânicos: a genialidade cândida do protagonista, Dr. Murphy (Freddie Highmore), e os adesivos contemporâneos de homoafetividade, saudabilidade, sustentabilidade e feminismo.

O ator quase não foi contratado: tinha cara de jovem demais, mas convenceu o diretor, David Shore, o mesmo de House. Ambos acertaram. Na produção, o protagonista parece uma reencarnação contemporânea de Jesus Cristo - exceto pelos pecadilhos que o tornam mais humano. Os adereços autistas do personagem marcam um território livre entre a moralidade das relações convencionais – deixa disso, por favor, obrigado – e a ciência, nua e crua, que  chega na hora certa, em socorro de  decisões, muito ou nada controversas.

Duvidosos, quando vistos de frente, os pequenos milagres do Dr. Murphy funcionam como aqueles consagrados na Bíblia: água em vinho, ressurreição, pães multiplicados. Sem lambuzeira ideológica ou religiosa: o melanoma impossível de ser alcançado através da aorta acaba sendo sugado por um atalho; o braço da violoncelista precisa ser amputado, mas é da carreira que ela tira a essência de sua vida; o filho é salvo pelo órgão transplantado do pai que o abandonou na infância.  

Os efeitos da realidade aumentada que dirigem o jovem cirurgião pelos labirintos do corpo humano, em seus transes, mantém a distância  espectador-espetáculo, indispensável ao corredor entre realidade e ficção.

“The Good Doctor” foi inspirada numa produção coreana criada em 2013, “The”, com apenas 20 episódios – algo que, possivelmente, nunca saberíamos, não fosse o sucesso da adaptação para os estúdios da Sony e da ABC, que estreou em outubro de 2017. Que ganhou uma segunda temporada, um ano depois. Venceu o Globo de Ouro e outros prêmios, inclusive o coreano  Seoul International Dama Awards.

A cantata número 147, “Jesus bleibet meine freunde” (Jesus, meu amigo, numa tradução livre), conhecida como “Jesus, Alegria dos Homens” é atribuída a Johann Sebastian Bach e reconhecida mundialmente, mas não foi escrita, originalmente, por ele, e sim por Johann Schop, no coral “Werde munter, mein Gemüthe” (Fique alerta, minha alma), 6º e 10º movimentos. Bach desenhou a harmonia e o acompanhamento instrumental.

Pouco importa: a ligação entre a cantata de Bach e a amúsica de Schop, entre as comédias de Shakeaspeare e seus inspiradores, entre as séries coreana e norte-americana não está no método, nem no talento, mas na faísca que elas conseguem entregar.

A série vai além do efeito catártico que, certamente, pautou a escolha da Globo por exibi-la em seu canal aberto. Não é nenhum assombro mas alguns episódios trazem a ironia saudável de antigos sucessos da TV americana, como Seinfeld e Friends. Num dado momento, alguém sugere ao cirurgião-mentor do protagonista que leia Hemingway, ao que ele responde que prefere Faulkner. “Ningúem gosta de Faulkner”, reage o interlocutor.

A produção também consegue ser divertida, apesar da temática sanguinolenta. Para nós, acostumados com péssimos serviços de saúde, uma simples panorâmica do St. Bonaventure Hospital de San José (filmado em Vancouver) é como um passeio na Disney. A nossa rotina de meninas e meninos baleados na periferia, jovens estupradas, transgêneros espancados e mulheres agredidas desaparece por milagre, diante dos dilemas enfrentados pelo Dr. Murphy e seus colegas, tratando de pacientes de cânceres diversos, cardíacos e mutilados. 

Além do entretenimento e da catarse, “The Good Doctor” poderia ter uma terceira função: inspirar os nossos roteiristas de telenovelas que, por melhor que seja o tema – como o da recente “Órfãos da Terra”, sobre o drama dos refugiados – parecem ter preguiça de tecer suas tramas, como se duvidassem da inteligência do público. Desde “Avenida Brasil”, todas as novelas globais escorrem, rapidamente, para o ralo de uma única, poderosa, maquiavélica, insensível e cruel Grande Vilã. Isso é levado aos píncaros do absurdo, que se transforma em ridículo e termina grotesco. Pobres anunciantes de frango e detergentes.

Os enredos são ótimos, inclusivos, atuais. Mas as tramas, moles e açucaradas como o doce português. Espero que o Dr. Shaun Murphy venha nos salvar. Além do êxtase geralmente servido no topo de cada episódio, alguns terminam numa epifania emocional, lembrando-nos de que, apesar das crianças baleadas, envenenadas, atiradas pela janela ou estranguladas debaixo de nossos narizes, ainda somos humanos.  

sexta-feira, 17 de maio de 2019

quinta-feira, 14 de setembro de 2017



Gastronomia Brasileira – Na Linha do Tempo traz uma visão do movimento que começou, nos anos 80, como “Cozinha Bossa Nova” até os dias atuais, em três cenários: Presente (os chefs em seus restaurantes), História (mostrando como os chefs franceses usaram sua técnica para revalorizar ingredientes locais, acompanhados por chefs brasileiros como Alex Atala, Edinho Engel e Mara Salles – e seus seguidores) e Futuro: a luta de garimpeiros e produtores de ingredientes que hoje abastecem a pesquisa gastronômica e a nossa mesa.


O livro tem, como núcleo, um relato do primeiro evento promovido pelo Caderno Paladar, em 2006, reunindo Alex Atala, Edinho Engel e Mara Salles. O encontro gerou um documento conhecido como “Declaração de Independência da Cozinha Brasileira”. O relato é do jornalista Roberto Pinto, viciado em comida e fã do movimento, que inclui batalhadores como as marisqueiras, peixeiros, queijeiros e apicultores (“Quem vem lá”). “Também queria destacar a participação de Edinho Engel nessa história”, ele diz, “um chef talentoso, empreendedor e grande praça”.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Uruguay





Fotos: Calles 21 de Abril com José Ellaui (Punta Carretas), loja de antiguidades na José Ellaui e uma boa parrilla: La Pulperia (boa carne, ótimo custo/benefício)

Montevideo deixou de ser aquela cidade meiga e melancólica que alguns brasileiros, como eu, costumavam invadir pelas sombras das árvores, ignorando os sinais da derrota cisplatínica, que sempre estiveram bem à nossa vista. No entanto, os monumentos do General Artigas de agora trocaram a imponência pela impotência, inclusive diante da insalubridade dos nóias que lá, como cá, tomaram conta de amplos espaços públicos.

Mesmo esmagado pelo sono depois de uma daquelas sessões de aeroporto que começou com ruas inundadas em São Paulo, Capital, e um passaporte esquecido na gaveta, corri ao mercado, assim que cheguei. Em vez das duas grelhas onde turistas da república vizinha costumam saciar-se com a segunda melhor carne do mundo, encontrei um Mercado Municipal de São Paulo em miniatura. Inclusive nos preços, derivados da inflação causada por nós mesmos, nos últimos anos: restaurantes anódinos, garçons cansados demais, comensais igualmente pachorrentos. Do lado de fora, em vez de hippies e revolucionários, artesãos e farejadores de quinquilharias sem nenhuma poesia.

O país de Mujica conheceu a decadência: há lixo nas ruas e o lago do Parque Rondó virou um lodaçal. Na Praça da Independência, havia roupa secando no último andar do Palácio Salvo (abandonado). No térreo do velho edifício art decô, em lugar do ancestral Café Sorocabana, funciona agora uma loja de telefonia celular.

A Peatonal Sarandi tornou-se uma estranha combinação de shopping center com a Rua 15 de março. A 18 de julho, do meu aniversário e da Constituição deles, de 1830, um arremedo da Avenida Corrientes, sem a mesma milonga. Tudo entupido de turistas burgueses, como os Champs Elysees, o Covent Garden e a Quinta Avenida. Os antigos sobrados de granito cinza, com recuo de alguns metros, que lembravam Sussex Gardens, em Londres, estão desmoronando. Há gente dormingo sob as marquises e folhas de compensado, por toda a parte.

As lojas exibem letreiros confusos e desconexos, mesmo em Punta Carretas, o bairro rico. Pelo menos, escaparam do marketing que atropelou a sua antiga cultura. Não conheço a fé do uruguaio comum, mas, no fim da Avenida Brasil, existe um edifício austero encimado por um cartaz da Igreja de Jesus Cristo Científico.  A premissa é curiosa, mas nada comparável ao monstrengo erguido pelo Edir Macedo na Avenida Suburbana, no Rio, hoje conhecida como Dom Helder Câmara. Que Deus os tenha. . 

Para comer um assado com vista para o mar, existe  La Casa Violeta: carne perfeita, mas preço e pretensões de amante argentina. A melhor parrilla que encontrei nessa Montevideo ferida pelo tempo estava numa casa de polvos, La Pulperia (em Punta Carretas). Não tem frutos do mar no cardápio, mas o dono opera a grelha como se tivesse oito braços: talvez venha daí o nome do restaurante. 

A linguagem e seus juguetes: mientras parece generoso, porém manejar é mais abrangente do que dirigir; broma tem uma cara austera, mas não passa de uma piada rasteira. Cola, em vez de fila, não pega, colgar parece desligar, mas pode ser enforcar. No entanto, nada como um café da manhã exquisito.

A parte boa da cidade é que as senhoras continuam entrando nos transportes coletivos com a tranquilidade de sempre. Algumas tradições do país, afinal, sobrevivem: você vai encontrar milenials agarrados em suas garrafas térmicas e cuias de chimarrão por toda a cidade. Podem chamar de nostalgia, mas isso me faz um bem danado. Ah, e as meninas estão usando shorts cavadinhos, como as brasileiras. Nisso, continuamos parecidos.  

terça-feira, 2 de junho de 2015

New poor: roteiro


Há algum tempo, se o dono de uma daquelas redes concessionárias de veículos chineses dissesse que foi obrigado a vender um de seus aviões por causa da crise, a gente o definiria como um noveau riche. Um Jay Gatsby do 3o Milênio. O mesmo adjetivo serviria para enquadrar a Xuxa, pela casa em Trancoso-BA, ou a Fernanda Torres, pelo condomínio em Itacaré-BA. Mas, principalmente, o Ricardo Teixeira, cuja mansão, em Sunset Island-FL,é de fazer inveja à nova atração do SBT, o cirurgião plástico, Doctor Ray.

Depois das administrações petistas, o  bom gosto virou coisa de elite, você sabe. Como parte dessa revolução cultural, passamos a identificar o mau gosto de quem tem dinheiro sobrando como coisa de novo rico, não mais de noveau riche: a festa de casamento com desperdício de caviar e lagosta dos Sarney; o palácio do cantor sertanejo, Zé Rico e o castelo do deputado mineiro, Edmar Moreira

Sultões seguidos pelos respectivos haréns e sacolas de grife pelos corredores da Harrod’s, em Londres, peruas desfilando na  Vittorio Emanuelle II, em Milão, e uma vasta lista de objetos que vai da pulseira de ouro do Raul Gil até a Mesquita Sheik Zayed, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, que custou para lá de US$ 1,5 bi - é tudo coisa de novo rico.

Entre os que subiram na vida, como a galera aí acima, notamos um ligeiro incremento de maus hábitos, como jogar lixo no chão; dirigir falando ao celular (se possível, com os pés sobre o painel do veículo); música em alto volume; falar alto (inclusive no cinema) usando palavrões; furar fila; usar adesivo  alardeando a própria fé (mesmo quando o possante veículo estaciona em vaga para deficientes físicos). O "novo normal". Ah, e criticar esse tipo de atitude, agora, é preconceito.

Na era do funk-ostentação, os tênis, carrões e farras dos jogadores de futebol em Ibiza-Espanha vêm se juntar aos raybans estilo janelão, bolsas Luis Vuitton compradas à vista, como a da MC Pocahontas (“Mulher de Poder”). Isso, e aqueles fins de semana em Nova York para renovar o guarda-roupa (a pretexto de atualização cultural); óculos de armação colorida, camarote de balada e longnecks de loja de conveniência. O brega, enfim, caiu em desuso.

No meu caso, depois das administrações petistas, a minha categoria social se inverteu: de classe média ascendente, virei novo pobre. Novos hábitos, aqui vou eu:

Adeus, Booking.com: visitas a amigos e parentes que moram de outras cidades têm que incluir hospedagem. Posso lavar a louça, passear com o cachorro e varrer o quintal;
Benvindo, Home Office!: o aluguel de um espaço para a pequena ou média empresa tornou-se inacessível. 
Pão de Açúcar, nunca mais: compras, agora, só nas redes de varejo controladas por empresários russos ou chineses; em sacolões, ou no varejão do Ceagesp.
Olá, OLX:  móveis e utensílios, a partir de agora, somente em sites de trocas e objetos usados. Para roupas, melhor  'garimpar' nos brechós. 
Tudo é Marrakesh: um real economizado na compra do brócolis, outro nas bananas e cinquenta centavos na cebola, podem render duas abobrinhas.
Leitura do Momento“Caminhando”, de Henry Thoreau.
Whisky e Bourbon, adeus! - a cachaça cumpre muito bem esse papel. Saúde em primeirio lugar. Aliás...
Remédio bom é remédio barato. Viva a Farmácia Popular.

Minha nova condição social trouxe alguns confortos: não sou mais um shopper, nem um  foodie. Virei hipster (foto): a minha moda, sou eu quem faço. Fiquei longe de bares e livrarias, esses antros de vício e depravação; igrejas, também não frequento: o dízimo está pela hora da morte e o céu, continua em local incerto e não-sabido. Mas não deixei de sair de casa, como medo que o síndico achasse que morri, como aquele personagem do Will Eysner, Pincus Pleatnik, que, depois de ter o nome publicado, por engano, no obituário do jornal, nunca mais conseguiu provar que continuava vivo. 

Prometo colher outras dicas, ao longo de meus próximos aprendizados: reparos domésticos, permutas, escambos. O importante é não se deixar abater. Nossa colonização jesuítica nos afastou daquela ética que justifica a acumulação de capital como um agrado ao Senhor, mas, em compensação, nos legou um Deus genuinamente brasileiro, que deve nos ajudar a virar esse jogo. Se até o José Maria Marin, um dia, caiu nas garras da Justiça, por que a nossa sorte não pode mudar?

terça-feira, 28 de abril de 2015

Brinquedo educativo


No meu velho Houaiss, brinquedo se define como objeto com que as crianças brincam, mas, também, como jogo ou passatempo, coisa que não deve ser levada a sério. Será que a mamãe do MC Brinquedo, de 13 anos, encara dessa forma as letras do filho, funkeiro, que virou um fenômeno na Internet? Numa rápida entrevista à TV, ela disse que, dentro de casa, ele não passa do Vinícius, que lhe deve obediência e respeito. Qualquer semelhança com o autor de Boquinha de Aparelho deve ser coincidência.

E como será que os pais da funkeira MC Melody estão encarando a ameaça de interdição da menina, de oito anos, pelo Ministério Público de SP, por causa do forte conteúdo erótico e de apelo sexual de suas músicas e coreografias? Será que eles cresceram dançando a Na boquinha da Garrafa, da Carla Perez, essa heroína da cultura nacional, parceira do divertido Cumpadre Wahington?

Segundo o G1 de 24/4, MC Melody está sendo investigada pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude de SP-Capital. Uma das representações do inquérito informa que suas músicas são obscenas, com alto teor sexual, acompanhadas por poses extremamente sensuais. “A menina trabalha como vocalista, dirigida por seu genitor”, diz o documento. Além dela, videoclipes de outros funkeiros mirins, como as MC Princesa e Plebéia e os MC 2K, Bin Laden, Brinquedo e Pikachu, estão sendo investigados pelo MP.

A sociedade discute a redução da maioridade penal enquanto crianças não-delinquentes se divertem, dançando funk, indo ao shopping – programa predileto de pais e mães – e brincando com seus tablets. De vez em quando, comem um salgadinho carregado de sódio, um biscoito recheado de gordura trans e um “suco” de caixinha, temperado com os melhores conservantes e aromatizantes que a química pode produzir. Andam de elevador. Alguns vivem dentro de carros blindados, outros, saracoteando no esgoto e no lixo. Uns poucos, cada vez menos, tiram a sorte grande de serem educados pela avó. Os demais, cheiram cola na Praça da Sé.

Há os que estudam nas escolas bilíngues, onde tem quadra, livros, educadores e brinquedoteca.  Mas entretenimento de verdade, como andar na chuva, subir nas árvores,  caçar macaco e tomar banho de rio, só no Xingu. Isso, por enquanto. Pela Internet, essa criançada pode saber como se divertiam seus pais: Genius, Cubo Mágico, Pega-peixe, Senhor Batata, Varetas, Cai-não-cai. O Atari, avô do Playstation IV, também está lá. Mas o Sacy e o Curupira, só nos clipes do Sítio, aquele concorrente do Castelo Rá-tim-bum!, que passava na Globo.

O carrinho de rolimã não resistiu ao skate, mas as bikes atravessaram gerações.  As bonecas-bebês viraram Barbies e Kens. Tem até um Ken humano, Justin Jedlica, que fez 90 procedimentos estéticos para ficar parecido com o boneco famoso. O Playcenter foi expulso da cidade por mau comportamento, mas a Six Flags Magic Mountain está logo alí: afinal, agora, todo mundo pode viajar. Brinquedos, portanto, não faltam. Se o Vinicius prefere brincar de outra coisa, problema dele. 

Não sou retrógrado: entendo que não dá mais para jogar bola no campinho da esquina, sem que um olheiro como Betinho Santos, que descobriu o Robinho e o Neymar, fique rondando por perto. Verdade que, para cada jogador que ganha 20 salários-mínimos, 450 outros vivem com apenas um. Aprendi no Bom Dia, Brasil. O de hoje, aliás (28/4) mostrou a Arena Pantanal, aquela da Copa, cercada de lixo (R$ 600 milhões).

Também entendo que não dá mais para brincar de salva na rua, fazer trilha na Floresta da Tijuca e pular o muro para roubar jabuticaba. Balão, virou coisa de bandido. Bola de gude, enfeite em vaso de arquiteto. A gente fazia estilingue, pipa e cerol. E pintava camiseta. Sobrava tempo. Ia espiar as meninas na zona. Nadar clandestino, na Hípica. Fabricar cartuchos para caçar nhambu: pólvora, chumbo e jornal. Azucrinar a vida dos outros, com todo tipo de armadilha.

Claro que o tempo se acelerou: o cara tem seu automóvel e já não vivemos como os nossos pais, embora o Ivan Lins não consiga ver isso. Menos tempo não é mais, nem trouxe novas alternativas: rolezinho, videogame e baile funk. Mas, concurso de chef júnior na TV, fitness infantil e concurso de miss-Ensino Básico são um pouco demais, não sei se você concorda.

A adultização da infância virou tema de blogueiro e deu até tese de mestrado, da professora Cristhiane Ferreguett, da Universidade da Bahia. Segundo ela, a linguagem publicitária, camuflada, passou a inserir-se em diversos gêneros de discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis, com claros efeitos na adultização das meninas. “A inserção precoce da criança no mundo do adulto encurta a infância”, ela diz, “até no plano fisiológico. As meninas estão entrando mais cedo no período da puberdade. Na contramão da queda da fertilidade entre as mulheres adultas, aumenta o índice de gravidez na adolescência”, adverte. O comércio, adora:  roupa de grife, sandália de salto e baton, dos oito aos oitenta.

Além de cantar no Raul Gil, garotos e garotas estão virando chefs mirins, jogadores sub-qualquer coisa, modelos esqueléticas, atores de filmes publicitários, funkeiros e chefes de quadrilha (estes, desde o meu tempo). A maioria tem celular, frequenta baladas e usa cartão de débito. Começam a beber mais cedo e sabem muito bem quanto vale um AirMax novinho, como o exibido pelo MC Brinquedo em entrevista à repórter Isabela Talamini, do portal Noisey:

“Fui entrevistar Vinícius na KL Produtora, na Zona Sul de São Paulo. A KL, assim como outras produtoras, é uma espécie de coletivo ou selo que descobre novos MCs nas ruas, e leva eles para o estúdio. Ela também é responsável por fazer os vídeos, aqueles ostentando joias, carros zero, acessórios da Oakley e mulheres gostosas. Disso tudo Vinícius entende, mas, aos 13 anos de idade, seu tema preferido é mesmo sexo”. Vinícius de Moraes, o poeta, também era louco por mulher e ninguém reclamava.

Ao mesmo tempo, tenho um sobrinho, também de 13 anos (fala, Pedrão!), estudando Confissões, de Rousseau e comparando os pontos de vista do cara com os de seu contemporâneo, Voltaire, com quem tinha uma treta. Caso o Pedro venha a se informar, por alto, sobre Marx, de um lado, e Adam Smith, de outro, e der uma olhada em Thoreau, do meu amigo Enéas Macedo Filho, vai saber mais de cultura ocidental do que eu.

Talvez isso não mude nada, em relação ao tema desta crônica. Mas eu prefiro acreditar que o Pedro, assim como Leung Pak Yue, que acabo de ver e ouvir tocando Rapsody in Blue, de Gershwin, numa gaita, e o Luca, de sete anos, que sabe onde fica Katmandu desde antes do terremoto, vão fazer mais diferença, no mundo, do que os nossos MC, Brinquedo e Melody. Desejo boa sorte a todos.

terça-feira, 3 de março de 2015

Tigres não são precavidos


Apesar do narcisismo do gesto que, neste caso, peço emprestado ao poeta Manuel de Barros, o ato de se colocar na pele de um juiz ou de um simples avaliador de um objeto, trabalho ou concurso tem um alto grau de sedução. Este ano, passei ao largo das especulações, expectativas e programação do Oscar, que eles chamam de maior prêmio da indústria do cinema, mas não consigo deixar de dar pitacos sobre algumas fitas premiadas. Desta vez, o evento me pareceu um tanto esvaziado, mas a qualidade de algumas produções garantiu mais uma safra de boa diversão.

Antes do tapete vermelho, vi e gostei de The Grand Budapest Hotel, de Wes Anderson (Melhor Figurino, Melhor Roteiro Original) – inspirado nos textos do suíço/brasileiro Stephan Zweig – e de Leviatã, de Andrey Zvyagintsev, que era minha aposta para a estatueta de melhor forasteiro, como comentei neste blog, há três meses; talvez por fazer piada de meus heróis antigos, leia-se Lênin, e de tiranos atuais, como o Putin e a corrupção na administração pública de vários países, digamos assim. Filme profético, em vista do genocídio dos ucranianos e o assassinato de Boris Nemtosov, no último sábado (28/2). Mas a estatueta de Filme Estrangeiro foi para o belo, cruel e delicado Ida, do polonês Pavel Pavlikowski, um oposto de Birdman, de Alejandro Iñarritu (Melhor Filme e Melhor Diretor), que estudou direção teatral com outro polonês, Ludwig Margules.

O mestre de Alejandro Iñarritu odiava as firulas hollywoodianas e se concentrava na verdade que o ator pode ser capaz de achar e transmitir. Os críticos disseram que o realizador seguiu um caminho oposto, mas, na minha opinião, a essência do filme está mantida no trabalho de ator, que vem do estômago, tanto de Michael Keaton, como de seu parceiro de set, Edward Norton. Teatro, sem deixar de ser cinema.

Keaton foi preterido como o Melhor Ator – os americanos adoram filmes de superação e Ed Redmayn, de Theory of Everything era o Jared Leto da vez (de Dallas Buyers Club) – mas o velho ator conseguiu extrair o máximo de seu personagem, uma quase paródia de si próprio, pensando no primeiro Batman da vida real, dirigido por Tim Burton, se me permitem o jogo de luz e sombras.

Iñarritu é o segundo mexican boy contemplado com o Oscar de Melhor Diretor. Sucede o compatriota Afonso Cuarón, de Gravity (Gravidade), vencedor do ano passado. Iñarritu conseguiu a proeza de rir de um arquétipo cuidadosamente renovado pelos sobrinhos do Tio Sam, desde a Guerra Fria: o super-herói de Birdman não passa de um alterego invertido do velho ator que não consegue se desvincular de seu antigo papel, o que não chega a ser uma novidade no cinema americano (Goodbye, Dr. Spock). Mas as situações ridículas de Birdman lembram mais a pantomima da luta livre mexicana do que os malabarismos dos X-men ou dos Guardiões da Galaxia.

Ironicamente, as estéticas de Ida e Birdman opõem, de um lado, uma câmera nervosa de planos profundos – inaugurada na telona por Fernando Meirelles em Cidade de Deus – e, de outro, um velho álbum da Rolleiflex de Pavlikowski, no branco e preto quadrado das telas antigas. Os dois filmes disputaram o Oscar de Melhor Fotografia. Deu Emmanuel Lubezki (de Gravity) outra vez. Mas os ângulos geniais de Luckas Zals e Riszard Lenckzewski, de Ida, ficaram na minha retina.
  
No fim, tanto o frenesi de Iñarritu – capaz de provocar náuseas nos desavisados – quanto a narrativa (modorrenta, para muitos) de Pavlikowski, levam o espectador ao mesmo velho e bom nihilismo que vai completando quase um século de vida tranquila e saudável.

Em outro filme de homens-pássaros, Whiplash (Chicote, na tradução literal, que também dá nome a um tema do Jazz), o ator principal, Miles Teller (bom), serve de escada ao seu “supporting actor”, J.K. Simmons – irretocável, no papel (Melhor Ator Coadjuvante). Numa conversa entre os dois, o personagem de Simmons, que é maestro e professor  do baterista Teller, tenta justificar seu rigor (violência) por empurrar as pessoas para além de seus próprios limites, em busca de outros pássaros, ou “Birds”, apelido de um monstro sagrado do gênero, o saxofonista Charlie Parker.

Charlie, que morreu aos 34 anos, de overdose (1955), só alcançou a sua melhor performance depois de praticar muito, para que ninguém risse dele, como aconteceu, numa seção do Kansas City Reno Club, em 1937, quando o baterista Jo Jones, da banda de Count Basie, atirou um prato de bateria a seus pés, por ele ter errado um acorde (Parker tinha 16 anos).

Assisti o trailler de Theory of Everything (A Teoria de Tudo), que levou o Oscar de Melhor Ator (principal), e fiquei satisfeito: por enquanto, a tocante história do herói da ciência vai para o final da minha fila, ao lado de Boyhood, que verei apenas como uma boa idéia. Lembrou-me o único concurso de fantasias de que participei, há quase meio século, no Bauru Tenis Clube, aos 15 anos, metido num robô de papelão revestido de papel prateado construído com a ajuda de uma tia, Maria de Lourdes, hábil costureira e responsável por minhas articulações de entretela sanfonada. Não riam: Star Trek (a série) estreou dois anos mais tarde e o primeiro Star Wars, em 1977. 

As luzes da cabeça eram alimentadas por uma bateria escondida na altura da nuca, e tive medo de levar um choque, ao mergulhar na piscina. A coragem veio com algumas doses de Cuba Libre. Levei o prêmio principal, mas queria mesmo era ser visto pelas meninas que estariam no baile da noite.

Também não vi American Sniper (Sniper Americano), dirigido pelo terceiro velho de direita mais invejado pelos intelectuais de esquerda, Clint Eastwood (o primeiro é Nelson Rodrigues e o segundo, Paulo Francis). Mas este, certamente, será um filme mais fácil de se ver, com um dilema moral mais tranquilo de se digerir. Virou blockbuster nos Estados Unidos, mas a Academia não daria mais um Oscar a um filme sobre a Guerra do Iraque como The Hart Locker (Guerra ao Terror), de Kathryn Bigelow – primeira mulher a vencer o prêmio de Melhor Direção e de Melhor Filme, em 2010. Naquele ano, o outro candidato era Avatar, de James Cameron. Até hoje me vejo na cozinha de Kathy e James enquanto eles discutem quem vai fazer o jantar.

Quando os fatos (execuções) que deram origem ao livro de Chris Kyle, American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Military History, ocorreram – de 1999 a 2006, no mesmo Iraque que, hoje, está parcialmente ocupado pelo ISIS – Jihad John era um pacato estudante da Escola Primária de Santa Maria Madalena, em Londres, a caminho da Universidade de Westminster, onde começaria a frequentar um curso de Tecnologia da Informação, em 2006. Chris Kyle lançou a sua autobiografia em 2012 e mesmo depois de seus 260 homicídios, dificilmente poderia imaginar o grau de atrocidades que uma de suas possíveis futuras vítimas  seria capaz de cometer, dez anos depois.

Essas duas faces pertencem à mesma moeda do mundo que estamos entregando aos nossos filhos e netos, e que alguns intelectuais e empresários-pensadores insistem em tentar encobrir, comparando as estatísticas atuais da violência às mortes da Primeira e da Segunda Guerra, ambas ocorridas no século passado.

“As pessoas”, eles dizem, “vivem mais”. Têm razão. Elas vão mais longe, quando não têm suas vidas interrompidas por tiros de fuzil e metralhadora, nas pacatas ruas de nossas grandes cidades, ou pelo Câncer, de cuja cura, a Ciência nem desconfia, ou pelo Alzheimer, que transforma as suas existências em pálidas sombras daquilo que elas foram um dia, desafiando as emoções de seus entes queridos. Enquanto isso, à nossa volta, vicejam o ódio, a intolerância, a miséria e a ignorância.

Talvez por isso, os nossos jovens venham prescindindo, cada vez mais, do seu próprio futuro, em troca de uns poucos momentos de glória ou de prazer. Mariposas, cantadas por Adoniran Barbosa. Rainhas de bateria afundando no lodo. Manuel de Barros queria que as borboletas governassem o mundo. Poderiam ser cavalos. Gatos são preguiçosos, elefantes, lentos e tigres, imprevidentes. Macacos pensam demais. 

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Fim de carnaval


De volta ao trabalho, hoje, quarta-feira, 18/2, depois de uma pausa revigorante em Aiuruoca-Minas, ao pé Serra da Mantiqueira – onde revisitei cachoeiras da era  pré-Isis Valverde e assisti a uma animada discussão sobre as contribuições de Ramsés II e Amenotep III à espiritualidade humana – ouço, pela Rádio Estadão, uma acalorada polêmica entre os jornalistas, Cesar Sacheto e Luís Antonio Prósperi, sobre o momento no qual o técnico Felipe Scolari, também conhecido como Felipão começou a se perder: se antes ou depois da queda do Palmeiras à segunda divisão, em 2012.

“Ele já tinha sido demitido do Chelsea”, disse um. “Mas tinha recuperado o prestígio da seleção brasileira ao ganhar a Copa das Confederações, em 2013”, rebateu o outro . A conversa teve muitas nuances e passou, claro, pelo retumbante fracasso dos 7 x 1 para a seleção alemã. Finalmente, ambos concordaram: sem jogadores, nenhum técnico consegue fazer milagres. “Nem o Anderson Silva, sem os anabolizantes”, teria arrematado o comentarista do programa, Roberto Godoy, em cuja opinião, o Anderson, além de tudo, foi burro: “Todo mundo sabe que a androsterona é um agente cancerígeno”.

A conversa do Vale do Matutu sobre os faraós foi mais produtiva: descobri que, ao enfrentar um leão, você não pode quebrar a sua harmonia. Senão, babau. Não por acaso, imagino, reza a cultura egípcia que Amenotep III foi um injustiçado: passou para a história como um déspota epicurista que vivia caçando leões só para quebrar o tédio, mas, em vez disso, foi um orientador do povo que seguia à risca a sua missão divina e matava leões apenas para ensinar  que a ordem deve prevalecer sobre o caos.

No Brasil de agora, o PT, que completa 35 anos, denuncia uma conspiração das elites para enlamear a sua reputação , responsável, segundo a imprensa burguesa, pelo mais alto índice de corrupção jamais visto neste país. O objetivo da intentona, além de comprometer a moral da agremiação, seria interromper as conquistas do povo e da democracia. Como o acesso à educação que, pelo visto, só não alcançou a população da capital paulista, cujo governo (petista) está sendo obrigado a substituir as lixeiras de plástico das ruas por outras, mais econômicas, feitas de saquinhos presos em aros de arame. Tudo por causa de uma parcela de vândalos que não aprendeu a conviver em sociedade.

Quem sabe essa providência sensibilize as pessoas que têm por hábito jogar lixo nas ruas, como no meu quarteirão – personagem frequente das coberturas das inundações – por onde a equipe de limpeza do Fernando Haddad só passa uma vez, a cada dois meses.

Enquanto a presidente Dilma reflete sobre a queda de sua popularidade numa base naval de Aratu, Bahia, especialistas em energia preveem um aumento no preço do insumo superior a 60% este ano – isso para as indústrias. O ex-presidente da Confederação que representa o setor e atual ministro do Desenvolvimento, Armando Monteiro Neto, por sua vez, luta para desfazer os embaraços criados pela diplomacia dos dois governos petistas que o antecederam nas relações comerciais do país, tentando não desprezar o maior mercado do mundo, que, ao contrário do que assessores informaram à chefa da Nação, não é o nosso.
  
Havia outras notícias, hoje, ao redor, além das inundações e da falta d’água, dos estupros vitimando adolescentes cada vez mais jovens e dos brutais acidentes nas estradas: a expectativa quanto ao resultado da campeã do carnaval carioca que, mais uma vez, refletiu fatos marcantes da nossa sociedade, como: a frequência da classe média aos motéis, os esportes radicais (paragliders, surf, cama elástica), a crise da Petrobras, o antagonismo entre a liberdade e racismo, e aqueles temas praticamente inéditos nos desfiles de escolas de samba, como a importância do negro na nossa história e a força da mulher brasileira.

Em sua crônica do dia, na FSP, o grande Rui Castro especula por que as atuais marchinhas dos blocos não “estouram” como na época de Lamartine Babo, Haroldo Lobo, Braguinha e João Roberto Kelly: “Garota Saint-Tropez”, “Eu agora sou feliz”, “Mulata Iê-iê-iê”. Afinal, milhões de jovens saíram às ruas para comemorar o carnaval. Seria – ele indaga – falta de percepção desse potencial, por parte da “indústria do carnaval”? – Estamos velhos, Rui, deve ser isso: nada gruda na geração dos tablets e do prazer instantâneo, exceto o band-aid. Provavelmente, a vencedora do carnaval carioca será a escola que fez o desfile mais técnico.

Mas o papo esotérico, este sim, faz sucesso entre os jovens. No meu tempo, eram os deuses astronautas. Sirianos, de acordo com a leitura atual da Confederação das Galaxias sobre o trabalho do Conselho Principal de Lira na Constelação Vega, em curso, desde os anos 1980, para integrar a terra aos 36 outros planetas do sistema solar, administrados pela organização. O objetivo é livrar o nosso planeta da barreira de frequência que obstrui a nossa comunicação com os demais planetas, por causa da carga negativa que nos foi imposta, há quatro milhões de anos, pelos alfa draconianos e pelos reptilianos  (esconjuro), em guerra com os seres da luz.

A seguir, no meu tempo, vieram: A Erva do Diabo, de Carlos Castaneda (1968), cujo título original era Teachings of Don Juan – A yaki way of knowlewge e O Despertar dos Mágicos, ou Le Matin des Magiciens, de Louis Pawels e Jacques Bergier (1969). Empolgados, mergulhamos no Mistério das Catedrais, de Fulcanelli, pseudônimo adotado pelo politécnico francês Paul Dacoeur (1839-1923), segundo o seu discípulo, Eugene Canseliet, em entrevista ao Le Figaro, em junho de 1965. E assim, viramos todos alquimistas, incluindo o Jorge Benjor e aquele amigo do Raul (Seixas).

Para os esotéricos do momento, aliás, as emanações de energia do mundo superior – das quais os faraós, Jesus, Buda, Maomé e outros profetas – foram apenas transmissores ou guias, esse caminho tem mais atrativos do que a Disney, a ciência de Stephen Hawkins e do Thomas Piketty, que a tecnologia de Jobs ou a arte de Tomie Otake, que acaba de ultrapassar a nossa fronteira.

Você pode se divertir lendo a entrevista de Ramsés II sobre a batalha de Qadesh (“Eu acreditava numa vitória fácil sobre os hititas”) e o segredo para viver 90 anos, numa época em que a maioria morria aos 35 anos, mas não tem porque dar risada dos passos que, segundo os mestres esotérios, nos faltam para ascender a uma escala mínima da evolução: acabar com as guerras e com a exploração indiscriminada dos recursos naturais e das pessoas; eliminar as drogas pesadas, a intoxicação e a fome; amarmos uns aos outros; aceitar, individualmente, a responsabilidade coletiva pelo planeta; acabar com a corrupção desenfreada, com a opressão religiosa e com empobrecimento das massas em benefício de alguns controladores da riqueza.


Nada mal, para começar, certo?

domingo, 30 de novembro de 2014

Questão de hábito - Acumule pontos e aproveite a viagem*


Na semana mais agitada de minha história recente, duas frustrações vieram juntar-se ao meu currículo, ambas relacionadas a mudanças: uma, de proporções homéricas – o resultado das eleições (eu torcia pelo outro lado); outra, doméstica – a patroa foi embora, cuidar da transferência da minha sogra para um apartamento, no interior. A gente briga o tempo todo, eu e a patroa (a sogra é uma santa) mas, sem ela, eu, que já fui um vira-lata, desses que correm atrás de qualquer coisa em movimento, viro um cérbero, aquele cachorrão do Hades, que acabou casado com uma Quimera.

A minha agenda lotada incluía uma análise de menções a uma grande empresa nas redes sociais. Era um trabalho pesado, mas que me trouxe alguma adrenalina. Depois dos sessenta, você não sente isso com frequência, assim como algumas outras sensações. As planilhas tinham links para os posts capturados pelo monitoramento das marcas na Internet. Vi coisas sensacionais, como a frase de um trabalhador numa das indústrias do cliente, “Bora fazer panetone” e outra, de um sujeito prestes a ser entrevistado para uma vaga de emprego: “Amanhã entrevista na empresa xis; c deus kse vai da tudo serto”. Claro que se eu fosse do RH da firma e lesse essa mensagem antes da entrevista, bye bye vaguinha.    

A Internet tem essas coisas. Quando eu saía para uma reportagem, nos anos setenta, passava pelo departamento de pesquisa da empresa e recolhia duas, às vezes cinco, ou até dez laudas de material de apoio (laudas era como se chamavam as folhas datilografadas e/ou xerocadas, na época). Ia estudando o assunto, no carro do jornal, da redação até o local da entrevista. 

Hoje, com dois clics, você está dentro do tema, da história do jazz – essa manifestação artístico-musical que nasceu em New Orleans, ou Chicago, ou New York, no início do século XX (segundo o site de busca) – até a culinária.

No último domingo, aliás, fui para a cozinha (restaurante, a toda hora, não dá) tentar a sorte numa carne de sol com queijo de coalho e mousseline de aipim. Que aipim e mandioca são a mesma coisa, eu já sabia, mas aprendi na Internet que a carne de sol tem que ser feita na sombra; que o charque era uma carne salgada transportada por tropeiros em baixo da sela de mulas, no século XVIII. E que mousse, em francês, não passa de espuma. Não importa, na minha opinião, desde que seja de chocolate. 

De quebra, fiquei sabendo que a carne de fumeiro, uma variação defumada da carne de sol, tem melhor sabor quando feita pelo método artesanal, mantida a uma distância mínima de 40 cm do braseiro (para não ser contaminada de alcatrão) e a uma temperatura máxima de 100 graus, para não se encher de hidrocarbonetos policíclicos (fumaça tóxica).

Tem o processo industrial, que usa hidrogênio e corante, mas isso não me interessa. Aprendi com o Michael Pollan, um americano maluco por cozinha que fez sucesso na última Flip (Feira Literária de Paarati), que nada se compara ao prazer de cozinhar a própria comida, cujos ingredientes você tem que saber de onde vêm. 

Quem também fez sucesso na Flip, há dois ou três anos, foi aquela moça, a Ana Paula Maia, que escreveu “De gados e homens”. A Folha caiu matando na coitada: o crítico usou Camões para dizer que ela falhou, no engenho e na arte. Essas coisas não se deve espalhar por toda a parte. O cara foi muito além da Tapobrana, que eu sempre me esqueço onde fica.

Não achei o livro assim tão ruim. Tem umas colagens de violência que o Quentin Tarantino trouxe até as pessoas da geração da autora. Mas quem gosta de carne, se impressiona: a história se passa num abatedouro, você sabe como é. Só que eu sempre achei o máximo aquela frase do Torquato Neto, espécie de tio do Caetano Veloso e padrasto do Raul Seixas (para você, que está chegando agora): “Leve um homem e um boi a um matadouro. Aquele que berrar é o homem, mesmo que seja o boi”. Com fome, aliás, eu como até o tutano do bicho.

Por falar nisso, você conhece aquela frase, dizendo que quem não foi comunista, antes dos trinta, não tem coração? – Concordo que depois dos trinta, a central de utilidades endurece um pouco, mas o cérebro continua alí: - Afinal, você deixou de ser comunista. Mas, para mim, quem continua jornalista depois dos sessenta, como eu, precisa de terapia.

Gasto o meu tempo livre lambendo as próprias feridas: um beethovenzinho aqui, um Randy Newman acolá, um sonzinho do Tommy Dorsey para curtir um livrinho, uma goiabinha em calda como a que acabo de preparar, a palestra sobre A Inveja no Café Filosófico da TV Cultura, uma espiada na mostra de Salvador Dali. Se dói? Nada. Gasto dinheiro? Tampouco. Depois dos sessenta, você pode não funcionar tão bem, mas entra de graça num monte de lugares.

Claro que poderia preferir um Zezé di Camargo e Luciano, com suas rimas fáceis e melodia suave, “primeira voz, segunda voz, tremidinha no final”, mas prefiro ver os dois no artigo do Gustavo Amendola que saiu no suplemento cultural do Estadão de sábado, falando da separação do Zezé e da Zilu: “Deu a louca no sertão”. Mais divertido. A frase de Zezé para justificar a separação: “Cavalo velho gosta de capim novo”. Reação da namorada jornalista (mulherão) à frase que definiu a ex como velha e feia e comparou a nova a um tipo de pasto: “Fiquei até emocionada”. 

Se você sugerir esses produtos daquilo que o filósofo Theodor Adorno definiu – pejorativamente – como indústria cultural, em oposição ao que o seu colega da Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, chamava de cultura de massa, vão achar que você pirou. Como? – Coisa de elite branca. Se o Lula ficar sabendo, você vai para a fogueira. Queimar livros, aliás, é a brincadeira que ditador adora: o Hitler, o Mao. Stalin fazia pior: queimava as pessoas e depois, mandava apagar das fotografias. Dois ou três caras, numa foto imensa, cercados por um monte de sombras. Tenebroso.

Mas, mesmo numa semana atribulada, cheia de problemas e frustrações, descobri que a Mostra de Cinema de SP estava quase no fim. Entrei na Internet – olha ela aí, de novo – e, pronto: troquei três horas de dois fins de tarde, um início de noite e um sábado por algum trabalho fora de hora e pude ver quatro filmezinhos supimpas, como se dizia no tempo do meu avô. Só vou falar sobre um deles, Leviatã, de Andrei Zviaguintsev, que ganhou a palma de Cannes de Melhor Roteiro e o prêmio da Crítica da Mostra paulista.

Se você puder, não deixe de ver: além do “melhor roteiro” (amizade, paixão, sedução, adultério) e da fotografia brilhante, o filme é um grito de socorro do povo russo mostrando como a corrupção pode corroer os costumes sociais a ponto de aniquilar seus indivíduos (seres humanos). Tudo isso, envolvido numa deliciosa calda de clichês: vodka, mulher bonita e um piquenique com tiro ao alvo, usando a arma-símbolo do país, o velho AK-47, que os nossos traficantes adoram. Foi uma catarse. Melhor que isso, só se na sala do prefeito corrupto, em vez do retrato do Putin, tivesse uma foto do nosso ex-presidente paz e amor.

Entender “a mensagem” desse filme foi como devorar um inimigo. Assim como dá trabalho ver a mostra do Salvador Dali, quando você também respeita o Picasso e o Goya, mas cultua Velazquez. Eu sempre gostei de Don Quixote, de Cervantes, mas o meu personagem espanhol preferido é o Marques de Carabás, do francês Charles Perrault, um macunaíma espanhol, se isso fosse possível. O melhor da história de Perrault é o momento em que o parceiro de Carabás, o famoso Gato de Botas, desafia o bandido, um leviatã em forma de leão, a transformar-se em ratinho, e logo depois o devora. Ambos são bichos, mas o final não podia ser mais antropofágico.

Não me diga que não dá para consumir cultura. Eu sei bem o que é acordar cedo, pegar condução lotada e trabalhar como um boi para pagar a faculdade. Mas se você conseguiu ver todos os filmes da série Crepúsculo, o novo Drácula e o Homem Aranha, também se pode achar um tempinho para ir ao museu; vez por outra, ao teatro, e arranjar um trocado para comprar um bom livro ou ler um jornal, de cabo a rabo. A internet pode muito bem, em vez de emburrecer, ajudar. É como aquela frase de anúncio de banco: “Tecnologia a serviço do homem”.

Aqui mesmo, neste artigo, se você usar todas as palavras grifadas em seu site de busca, como um videogame, ou um Jogo de Amarelinha (Cortazar), e entender o significado de cada uma, terá muito a ganhar. Recolha ponto por ponto e vá saltando as estações, de baixo para cima, passando do inferno ao purgatório e terminando lá em cima, no título, ou na conclusão que ele sugere e descubra que cultura, acima de tudo, é uma questão de hábito.

(*) Artigo feito para a revista Circuito Cultural, que serviu como Tese de Conclusão de Curso (TCC) de formandos da Faculdade de Comunicação Social da UNIP (2014).