A jovem (e bela) escritora argentina, Samanta Schweblin, tem
um conto – que não vou estragar agora – “Pássaros na boca” (Ed. Benvirá),
falando daquilo que pode se tornar defensável, ou, pelo menos, aceitável, por nossos
habitualmente estreitos padrões de convivência, dependendo das circunstâncias.
Isoladas, obviamente, as regiões abissais da alma humana. Ninguém pode aceitar que
um menino de 13 anos seja capaz de matar a própria família, mas o dilema pode
assegurar uma semana de audiência para o José Luiz Datena.
À luz do dia, algumas doses de leniência são admitidas, como
o papa Francisco acolher os diferentes no mesmo manto que abriga o celibato; a
ministra Carmen Lúcia distrair-se ao assinar um convênio que transfere, à
Serasa, o cadastro de 140 milhões de eleitores; o ministro do STF, Luis Roberto
Barroso, lembrar que o mensalão não foi o único crime de corrupção na política
brasileira, ou a 14ª. Câmara do TJ-SP permitir que a nutricionista, Gabriela
Guerrero Pereira, volte a dirigir, dois anos depois de atropelar e matar o estudante
Vitor Gurman, de 24 anos, ao conduzir a sua Land Rover pelas ruas da Vila Madalena,
bairro aqui da Capital, aparentemente, embriagada.
Como podemos constatar, diariamente, ou na leitura do post
anterior deste blog, a violência no trânsito ficou tão banal quanto as
manifestações públicas pós-ressaca de junho. Ônibus despencando de viadutos e
matando pessoas tornaram-se quase frequentes, assim como os acidentes com
motociclistas que trafegam da cidade de São Paulo (438 morreram, em 2012). Das
326 vítimas socorridas pelo Instituto de Traumatologia do HC-USP, de fevereiro
a maio deste ano, conforme pesquisa divulgada ontem (14/8), pelo órgão, 67%
nunca tinham passado por motoescola.
A tolerância que as manifestações de junho indicavam ter se
esgotado, por falta de um padrão FIFA de Educação e de Saúde e doses cavalares
de corrupção na política, pode ter se renovado por medidas como o projeto de
reforma eleitoral – que não vai discutir a proporcionalidade do voto, por
exemplo; o programa Mais Médicos – que não prevê melhorias na infra-estrutura
de Saúde (atendimento e serviços) e a aprovação do projeto de 75% dos royalties
do Pré-Sal para a Educação – notícia obrigada a conviver com outra, sobre a
prisão de uma quadrilha que desviou R$ 6,6 milhões do Instituto Federal de Ensino
à Distância, no Paraná (8/8).
De todo modo, a moralidade pública, que comporta a
possibilidade de uma grande empresa internacional ter o benefício da delação,
num caso de desvio de milhões de reais numa concorrência para a compra de trens
para o Metrô de SP ou para a CPTM (a
corrupção está entranhada na administração pública, desde o Brasil Colônia,
dirão alguns) não esgota a ética, esse conceito difuso, na opinião do
senador Edison Lobão Filho, segundo o qual, o que é ético para um
norte-americano (espionar em nome da segurança, por exemplo) pode não sê-lo
para um brasileiro: usar aviões da FAB para comparecer ao casamento da filha do
amigo. Isso, na opinião do parlamentar, justifica a retirada dessa palavra
imprecisa do Regimento Interno do Senado Federal.
Ética, senador, um conceito “abstrato”, na sua opinião é,
segundo a Wikipedia (enciclopédia da sua geração): “a parte da filosofia
dedicada aos estudos dos valores morais e princípios ideais do comportamento
humano. Derivada do grego ἠθικό, significa aquilo que pertence ao caráter.
Diferencia-se da moral, que se fundamenta na obediência a costumes e hábitos recebidos,
ao fundamentar as ações morais exclusivamente pela razão”. Não se trata,
portanto, de respeitar aquilo que se aprendeu em casa, mas sim, o que se exige
nas ruas.
Em relação ao trânsito (vamos encerrar este assunto?), os
percalços pelos quais tenho passado me deram uma idéia, que, claro, passa por
uma de nossas principais regras de leniência: - Pagando bem, que mal tem?
(perdão, Darcy Ribeiro; desculpe, Mário de Andrade). Inspirado num trecho
percorrido, há duas semanas, entre Tiradentes (o município, não o alferes da
fiel maçonaria) e o aeroporto de Confins-MG, no cock pit de um carrinho de mil
cilindradas, pensei em converter alguns desafios enfrentados nesse trajeto em
videogame, que se vai se chamar BR-040 (atenção, Instituto Nacional
da Propriedade Industrial - INPI!). O jogo deve oferecer, por meio de seus
obstáculos ao desafiante, um retrato das complexidades de se viver no Brasil
(ok, hoje e sempre).
As pistas da BR-040 são duplas, em todos os sentidos: tanto
as duas de ida, como as duas de volta apresentam, entre elas, um desnível de
pelo menos 20 centímetros. Talvez por isso, as ultrapassagens são feitas empregando-se
a pista do sentido oposto, com luz alta na cara do parceiro do
outro lado, mesmo durante o dia. Claro, não há mureta entre mão e contra-mão (também
conhecida como guard rail): adrenalina garantida. Não se preocupe com as placas de sinalização: elas
estão muito bem escondidas, ou o pessoal da engenharia pensou bem, e resolveu apagá-las, para não aumentar
a confusão no local.
Sobre a polícia, só vislumbrei alguns representantes da
classe no velório de uma senhora que morreu atropelada, perto do Aeroporto. O acesso
a este importante complexo, aliás, está sendo reformado, mas vai continuar
exigindo um percurso de aproximadamente 30 km, entre o terminal de passageiros
e as garagens dos veículos de aluguel. E o estacionamento, no caso de quem
chega. Ponte, ali, nem pensar: é preciso economizar recursos públicos.
A velocidade média, na maior parte do trecho citado, é de
120 km, inclusive, ou principalmente, por parte dos caminhões caçamba
carregados de minério que, às vezes, atravessam a pista, de um lado para o
outro, sem nenhuma cerimônia. Cuidado: os que trafegam descarregados são mais perigosos.
Não se assuste com o cavalo que segue na carroçaria do caminhão que vai
aparecer bem à sua frente. Ninguém pode ficar mais assustado do que o próprio
cavalo, que vai sambando nas tábuas, mas está amarrado pela rédea, na cabine do
veículo que o conduz. Talvez uma joqueta elegante caia de uma árvore, na
próxima curva, e o conjunto pule a grade da carroceria e saia vencendo outros
obstáculos, campo afora. Se começar a garoar um pouco, na serra do Rola Moça, a
distração vai ficar ainda melhor. Mas não se anime: para mim, não rolou nada (se bem que,
nesta idade...).
O GPS que você estará usando, como se diz, será um
brasileiro nobre, nascido no bairro de Santa Ifigênia, um dos preferidos pelo Adoniran. Ele vai
começar a dizer coisas desconexas, numa voz feminina, em português lusitano, no
momento em que você mais precisar dele, isso, depois de um dos inúmeros desvios da BR.
Você vai perceber que está no lugar errado, mas fique calmo, senão, os traficantes
podem pensar que você é da polícia, até porque, eles não sabem muito bem como ela
é (no videogame, claro).Se você estiver atrasado para pegar um vôo em Confins, não se desespere: o vôo também vai atrasar. Acostume-se a dirigir contra o sol, na pequena confusão do tráfego de BH: siga aquela bandeirinha do Atlético mineiro, no alto de um edifício em construção, no caso do Atlético ter vencido a Copa Libertadores, mesmo jogando daquele jeito, com aquele time, dirigido por aquele técnico. É o que se pode fazer, em termos de orientação: a boa gente do lugar, embora mineira, não recomenda a tal avenida do Contorno (a marginal deles, lá).
Vi três passageiros sendo transportados por uma única moto, mas não peguei nenhum cachorro atravessando a pista, nenhum andarilho na contramão, zero de bêbados e equilibristas nos semáforos; nada de ônibus, prédios e viadutos despencando. Mas vou botar tudo isso no meu videogame. Regra de leniência: o brazuca que vai comprar o jogo, lá no Canadá, depois de um ano longe do país, não vai saber distinguir entre a ficção e a realidade (acontece com a gente, que vive aqui...).
O jogo terá mensagens políticas naqueles sinalizadores bacanas de estrada privatizada, aludindo à campanha presidencial, em troca de passe livre nos pedágios, tanto para a nova quanto para a antiga classe média. O pessoal do PT, do PSB e do PSDB e até a turma do Eymael e do Enéas, vai poder pedir voto aos jogadores em troca daquele dinheirinho falso, que dá alguma energia. Os jogadores também vão poder inventar slogans baseados nas manifestações de junho último, com bônus extras para as mais criativas. Tente uma variação daquela frase do Deputado Federal: “Titica, por Titica, ande mais duas casas”.
Só tem um problema: quando você morrer, não vai dar para ganhar uma vida passando pelo Sírio Libanês: aquilo está sempre lotado de gente de Brasília. O jeito vai ser voltar ao Distrito Federal, entrar e sair do Hospital de Base, e depois, ganhar uma força, caso consiga passar pela ponte do Itamaraty; ou até três vidas, se chegar ao teto do Congresso Nacional. Quando o jogo for lançado, colabore: vida de jornalista não está fácil.