domingo, 30 de novembro de 2014

Questão de hábito - Acumule pontos e aproveite a viagem*


Na semana mais agitada de minha história recente, duas frustrações vieram juntar-se ao meu currículo, ambas relacionadas a mudanças: uma, de proporções homéricas – o resultado das eleições (eu torcia pelo outro lado); outra, doméstica – a patroa foi embora, cuidar da transferência da minha sogra para um apartamento, no interior. A gente briga o tempo todo, eu e a patroa (a sogra é uma santa) mas, sem ela, eu, que já fui um vira-lata, desses que correm atrás de qualquer coisa em movimento, viro um cérbero, aquele cachorrão do Hades, que acabou casado com uma Quimera.

A minha agenda lotada incluía uma análise de menções a uma grande empresa nas redes sociais. Era um trabalho pesado, mas que me trouxe alguma adrenalina. Depois dos sessenta, você não sente isso com frequência, assim como algumas outras sensações. As planilhas tinham links para os posts capturados pelo monitoramento das marcas na Internet. Vi coisas sensacionais, como a frase de um trabalhador numa das indústrias do cliente, “Bora fazer panetone” e outra, de um sujeito prestes a ser entrevistado para uma vaga de emprego: “Amanhã entrevista na empresa xis; c deus kse vai da tudo serto”. Claro que se eu fosse do RH da firma e lesse essa mensagem antes da entrevista, bye bye vaguinha.    

A Internet tem essas coisas. Quando eu saía para uma reportagem, nos anos setenta, passava pelo departamento de pesquisa da empresa e recolhia duas, às vezes cinco, ou até dez laudas de material de apoio (laudas era como se chamavam as folhas datilografadas e/ou xerocadas, na época). Ia estudando o assunto, no carro do jornal, da redação até o local da entrevista. 

Hoje, com dois clics, você está dentro do tema, da história do jazz – essa manifestação artístico-musical que nasceu em New Orleans, ou Chicago, ou New York, no início do século XX (segundo o site de busca) – até a culinária.

No último domingo, aliás, fui para a cozinha (restaurante, a toda hora, não dá) tentar a sorte numa carne de sol com queijo de coalho e mousseline de aipim. Que aipim e mandioca são a mesma coisa, eu já sabia, mas aprendi na Internet que a carne de sol tem que ser feita na sombra; que o charque era uma carne salgada transportada por tropeiros em baixo da sela de mulas, no século XVIII. E que mousse, em francês, não passa de espuma. Não importa, na minha opinião, desde que seja de chocolate. 

De quebra, fiquei sabendo que a carne de fumeiro, uma variação defumada da carne de sol, tem melhor sabor quando feita pelo método artesanal, mantida a uma distância mínima de 40 cm do braseiro (para não ser contaminada de alcatrão) e a uma temperatura máxima de 100 graus, para não se encher de hidrocarbonetos policíclicos (fumaça tóxica).

Tem o processo industrial, que usa hidrogênio e corante, mas isso não me interessa. Aprendi com o Michael Pollan, um americano maluco por cozinha que fez sucesso na última Flip (Feira Literária de Paarati), que nada se compara ao prazer de cozinhar a própria comida, cujos ingredientes você tem que saber de onde vêm. 

Quem também fez sucesso na Flip, há dois ou três anos, foi aquela moça, a Ana Paula Maia, que escreveu “De gados e homens”. A Folha caiu matando na coitada: o crítico usou Camões para dizer que ela falhou, no engenho e na arte. Essas coisas não se deve espalhar por toda a parte. O cara foi muito além da Tapobrana, que eu sempre me esqueço onde fica.

Não achei o livro assim tão ruim. Tem umas colagens de violência que o Quentin Tarantino trouxe até as pessoas da geração da autora. Mas quem gosta de carne, se impressiona: a história se passa num abatedouro, você sabe como é. Só que eu sempre achei o máximo aquela frase do Torquato Neto, espécie de tio do Caetano Veloso e padrasto do Raul Seixas (para você, que está chegando agora): “Leve um homem e um boi a um matadouro. Aquele que berrar é o homem, mesmo que seja o boi”. Com fome, aliás, eu como até o tutano do bicho.

Por falar nisso, você conhece aquela frase, dizendo que quem não foi comunista, antes dos trinta, não tem coração? – Concordo que depois dos trinta, a central de utilidades endurece um pouco, mas o cérebro continua alí: - Afinal, você deixou de ser comunista. Mas, para mim, quem continua jornalista depois dos sessenta, como eu, precisa de terapia.

Gasto o meu tempo livre lambendo as próprias feridas: um beethovenzinho aqui, um Randy Newman acolá, um sonzinho do Tommy Dorsey para curtir um livrinho, uma goiabinha em calda como a que acabo de preparar, a palestra sobre A Inveja no Café Filosófico da TV Cultura, uma espiada na mostra de Salvador Dali. Se dói? Nada. Gasto dinheiro? Tampouco. Depois dos sessenta, você pode não funcionar tão bem, mas entra de graça num monte de lugares.

Claro que poderia preferir um Zezé di Camargo e Luciano, com suas rimas fáceis e melodia suave, “primeira voz, segunda voz, tremidinha no final”, mas prefiro ver os dois no artigo do Gustavo Amendola que saiu no suplemento cultural do Estadão de sábado, falando da separação do Zezé e da Zilu: “Deu a louca no sertão”. Mais divertido. A frase de Zezé para justificar a separação: “Cavalo velho gosta de capim novo”. Reação da namorada jornalista (mulherão) à frase que definiu a ex como velha e feia e comparou a nova a um tipo de pasto: “Fiquei até emocionada”. 

Se você sugerir esses produtos daquilo que o filósofo Theodor Adorno definiu – pejorativamente – como indústria cultural, em oposição ao que o seu colega da Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, chamava de cultura de massa, vão achar que você pirou. Como? – Coisa de elite branca. Se o Lula ficar sabendo, você vai para a fogueira. Queimar livros, aliás, é a brincadeira que ditador adora: o Hitler, o Mao. Stalin fazia pior: queimava as pessoas e depois, mandava apagar das fotografias. Dois ou três caras, numa foto imensa, cercados por um monte de sombras. Tenebroso.

Mas, mesmo numa semana atribulada, cheia de problemas e frustrações, descobri que a Mostra de Cinema de SP estava quase no fim. Entrei na Internet – olha ela aí, de novo – e, pronto: troquei três horas de dois fins de tarde, um início de noite e um sábado por algum trabalho fora de hora e pude ver quatro filmezinhos supimpas, como se dizia no tempo do meu avô. Só vou falar sobre um deles, Leviatã, de Andrei Zviaguintsev, que ganhou a palma de Cannes de Melhor Roteiro e o prêmio da Crítica da Mostra paulista.

Se você puder, não deixe de ver: além do “melhor roteiro” (amizade, paixão, sedução, adultério) e da fotografia brilhante, o filme é um grito de socorro do povo russo mostrando como a corrupção pode corroer os costumes sociais a ponto de aniquilar seus indivíduos (seres humanos). Tudo isso, envolvido numa deliciosa calda de clichês: vodka, mulher bonita e um piquenique com tiro ao alvo, usando a arma-símbolo do país, o velho AK-47, que os nossos traficantes adoram. Foi uma catarse. Melhor que isso, só se na sala do prefeito corrupto, em vez do retrato do Putin, tivesse uma foto do nosso ex-presidente paz e amor.

Entender “a mensagem” desse filme foi como devorar um inimigo. Assim como dá trabalho ver a mostra do Salvador Dali, quando você também respeita o Picasso e o Goya, mas cultua Velazquez. Eu sempre gostei de Don Quixote, de Cervantes, mas o meu personagem espanhol preferido é o Marques de Carabás, do francês Charles Perrault, um macunaíma espanhol, se isso fosse possível. O melhor da história de Perrault é o momento em que o parceiro de Carabás, o famoso Gato de Botas, desafia o bandido, um leviatã em forma de leão, a transformar-se em ratinho, e logo depois o devora. Ambos são bichos, mas o final não podia ser mais antropofágico.

Não me diga que não dá para consumir cultura. Eu sei bem o que é acordar cedo, pegar condução lotada e trabalhar como um boi para pagar a faculdade. Mas se você conseguiu ver todos os filmes da série Crepúsculo, o novo Drácula e o Homem Aranha, também se pode achar um tempinho para ir ao museu; vez por outra, ao teatro, e arranjar um trocado para comprar um bom livro ou ler um jornal, de cabo a rabo. A internet pode muito bem, em vez de emburrecer, ajudar. É como aquela frase de anúncio de banco: “Tecnologia a serviço do homem”.

Aqui mesmo, neste artigo, se você usar todas as palavras grifadas em seu site de busca, como um videogame, ou um Jogo de Amarelinha (Cortazar), e entender o significado de cada uma, terá muito a ganhar. Recolha ponto por ponto e vá saltando as estações, de baixo para cima, passando do inferno ao purgatório e terminando lá em cima, no título, ou na conclusão que ele sugere e descubra que cultura, acima de tudo, é uma questão de hábito.

(*) Artigo feito para a revista Circuito Cultural, que serviu como Tese de Conclusão de Curso (TCC) de formandos da Faculdade de Comunicação Social da UNIP (2014).

2 comentários:

  1. Na Folha de S. Paulo em fins dos 70 e começo dos 80, tinha um pauteiro da editoria Local, de apelido Candinho que produzia - para os repórteres - pautas primorosas. Eram peças com pouco mais de 20 linhas que esgotavam o assunto, um show de conhecimento. Ele misturava dados do Arquivo do jornal com seus próprios saberes, com habilidade e talento, fazia 15 a 20 pautas por dia. Era assim que as coisas funcionavam pré-internet, não é mesmo, Bob. Outro detalhe: Jornalista não sei, mas que vou morrer Repórter, isso lá eu vou. Happy New Year !
    Enéas

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  2. Valeu, Grande Néinha (parece contraditório, mas não é). Não tive a honra, mas me lembro dele. Dessas figuras do Jornalismo que não se apagam da nossa memória. Fica a idéia: um Jornalistas & Cia dessas figuras. O Moura, que ainda vive, faria um perfil do Soneca, do Lampião; você e o Théo, do Cláudio Abramo, do Candinho; a Nair Keiko, do Ornelas, do Setti, do Zé Paulo. Me ajude no urdume que eu te ajudo na trama.

    Abraço grande, força e resistência. E que 2015 passe logo.

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