Corro o risco desta mensagem se parecer com aqueles bilhetes
de amantes do século XVIII, mas, sendo você, meu amigo/amiga esse/essa
famoso/famosa âncora da TV, prefiro parecer ridículo a expor a sua identidade e o seu modo de pensar, neste espaço público. Isso poderia
prejudica-lo/a nesta aldeia em que trabalhamos e vivemos (assim mesmo, nesta
ordem), e que, nestas eleições, votou amplamente contra o governo - reeleito, embora chamuscado e, quem sabe, renovado - embora nisto, me
custe acreditar.
Li, ontem (26/10), no intervalo entre dois dos poucos filmes desta
38ª Mostra de Cinema que consegui ver – Sangue
Azul, de Lírio Ferreira, e Um pombo
no galho refletindo sobre a existência, de Roy Andersson – o artigo do
sociólogo Jessé de Souza, da UFF, no caderno Aliás do Estadão, também de ontem, que você me recomendou: “O caminho da inclusão”. Seguem algumas observações.
A tese do sociólogo tem piada, como dizem os portugueses, o
que deve ter chamado a sua atenção: de fato, nos últimos 12 anos, fomos
governados pelas forças derrotadas em 1964, que representavam os nossos anseios
por uma sociedade mais inclusiva, mas
que não detinha o efetivo controle das práticas econômica e sociais vigentes no
país.
“A fragilidade”, diz o articulista, “das conquistas
obtidas por esse modelo de governo é explicada pela manutenção da força social
e econômica do modelo anterior". Para o sociólogo, o mote do Estado ineficiente e corrupto, contraposto à suposta virtude e
eficiência do mercado representa “a única bandeira de legitimação do modelo
excludente de uma sociedade ainda detém o poder real”. Para ele, esse é “o único
pretexto por meio dos quais os interesses privados do 1% mais rico podem ser
travestidos do suposto interesse geral”.
Lembro aqui uma das frases típicas do comandante geral das
referidas forças que nos governam, há 12 anos, ao discursar,
enquanto presidente, na inauguração de um estabelecimento de conhecida rede varejista: "Quanto mais tempo a gente der de prestação
e quanto mais barata a prestação, mais as pessoas vão poder comprar, porque no
meio da parte mais pobre da população, eles não têm a preocupação se vai custar
cinco ou seis vezes mais" (sic).
Ora, se o modelo que representa os anseios por uma sociedade
mais inclusiva chegou ao poder pela
via democrática, preconizando o reformismo, em vez da substituição do Estado burguês
pela ditadura do proletariado, rumo à socialização dos meios de produção que
nos conduziria à sonhada anarquia, por que razão o sociólogo quer atribuir os desvios do
atual governo – que ele chama de fragilidades – aos vícios de uma classe
dominante que permanece no poder?
Os “progressistas”, que eu, a propósito, não reconheço como tal, costumam desdenhar das críticas aos notórios casos de
desvios de patrimônio público cometidos pelo tal modelo inclusivo, nos últimos 12 anos. Para esses “progressistas”, como
você sabe, as críticas não passam de “moralismo burguês”.
Possivelmente, no inconsciente deles,todas as mazelas dos governos “populares” são justa vingança contra a opressão da classe dominante ou, no caso dos bem nascidos, como nosso ídolo, Ernesto Lynch, representam uma expropriação legítima da riqueza para redistribuição aos menos dotados: coisa de Saint Simon, ou de Guilherme Tell, dependendo do grau de escolaridade do interlocutor.
Possivelmente, no inconsciente deles,todas as mazelas dos governos “populares” são justa vingança contra a opressão da classe dominante ou, no caso dos bem nascidos, como nosso ídolo, Ernesto Lynch, representam uma expropriação legítima da riqueza para redistribuição aos menos dotados: coisa de Saint Simon, ou de Guilherme Tell, dependendo do grau de escolaridade do interlocutor.
Não concordo com a simplificação de Jessé de Souza
ao atribuir o caráter de ladroagem ao
jogo especulativo do mercado de capitais. A Universidade Federal Fluminense não
vem se comunicando com a Fundação Getúlio Vargas. Mas ouso cometer
o mesmo erro ao afirmar que um líder das massas capaz de congratular-se com uma
empresa privada que explora a boa fé e as carências do consumidor de baixa
renda não tem “moral” para conduzir um projeto de poder voltado à redução das desigualdades.
Quem são, afinal, os parceiros e principais beneficiários da
expropriação dos recursos que fluem para o Estado burguês, advindos dos impostos
da “elite” que votou contra o atual modelo “inclusivo” de governo? (quase 50% dos brasileiros): – O povo? - Recursos destinados pelo atual governo ao Bolsa Família somaram R$
24,5 bilhões, em 2013. Somente o orçamento da refinaria Abreu e Lima – apontado
como um dos principais focos de desvios pela Operação Lava Jato – saltou R$ 2 bilhões
para R$ 18 bilhões.
Talvez o nosso grande líder não importe com o fato de uma
obra pública custar cinco, seis ou dez vezes o seu valor real (como não importa, para o pobre, segundo ele, o número de prestações que ele tem a pagar). Mas será que
essa diferença vai parar no bolso dos 99% que, segundo o sociólogo Jessé de
Souza, não têm acesso à riqueza? - Não é bem o que as investigações da Polícia
Federal e da Justiça vêm indicando.
Que tipo de reformismo, afinal, vem a ser este, que, para manter-se
no poder, permite o desvio de alimentos, remédios e recursos produzidos por milhões de cidadãos que pagam seus impostos em dia? - Será que a decisão de destinar
bilhões do BNDES – um banco público – aos “campeões” do empresariado nacional
pode ser considerada como parte dos “limites” impostos ao modelo inclusivo pela sociedade conservadora?
Segundo Jessé de Souza, “o mercado capitalista, aqui e em
qualquer lugar, sempre foi uma forma de corrupção organizada, começando pelo controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime: o funcionário do
Estado corrupto e o batedor de carteira, enquanto o especulador
de Wall Street (matriz da Avenida Paulista), que frauda balanços e
arruína o acionista minoritário da bolsa, ganha bônus milionários e sai na capa
da revista Time”. Cândido.
Jessé de Souza insiste em afirmar que, no Brasil, 1% detêm 70% do PIB e 30% referem-se aos salários dos outros 99%. Inverídico. E que, nas sociedades capitalistas mais dinâmicas, como França e Alemanha, essa relação é inversa. Esquece-se, convenientemente, de que as Leis contra a corrupção, nesses países, incluem, além de severas penas de prisão, multas de valor exorbitante e penhora de bens dos condenados. Que um deputado, na Suécia do cineasta citado acima (Roy Andersson), vive num apartamento funcional de 40 m2, servido por lavanderia comunitária, sem empregada. E com uma regra clara: “Deixe tudo limpo”. Nenhum parlamentar sueco tem direito a carro e muito menos, a motorista.
Jessé de Souza insiste em afirmar que, no Brasil, 1% detêm 70% do PIB e 30% referem-se aos salários dos outros 99%. Inverídico. E que, nas sociedades capitalistas mais dinâmicas, como França e Alemanha, essa relação é inversa. Esquece-se, convenientemente, de que as Leis contra a corrupção, nesses países, incluem, além de severas penas de prisão, multas de valor exorbitante e penhora de bens dos condenados. Que um deputado, na Suécia do cineasta citado acima (Roy Andersson), vive num apartamento funcional de 40 m2, servido por lavanderia comunitária, sem empregada. E com uma regra clara: “Deixe tudo limpo”. Nenhum parlamentar sueco tem direito a carro e muito menos, a motorista.
O sociólogo também diz que o brasileiro “é tolo por suportar
uma transferência de renda incompatível com o que ocorre na Europa, por meio do
superfaturamento de bens e serviços, além de juros muito altos”. Esquece-se,
mais uma vez, convenientemente, que o principal lider do modelo inclusivo que governa o país há 12 anos
sempre desprezou, publicamente, a educação formal, considerada, pelas sociedades
avançadas, como a principal, senão a única, ferramenta de libertação da parcela
mais pobre da sociedade.
Esperto, esse líder do modelo inclusivo tem uma notória capacidade de transformar pequenos
deslizes de seus opositores em chavões facilmente compreensíveis pelo “povão”, e
que, depois de repetidos à exaustão, acabam ganhando uma dimensão real,
posteriormente transformada em teses por seguidores apaixonados, mantidos pelas universidades públicas (como
o autor do artigo recomendado por você).
Segundo o sociólogo Jessé de Souza, aliás, “o Estado é o único lugar onde a
corrupção ainda é visível e, como tal, tem alguma possibilidade do controle
real”. Isso, meu caro amigo, não é poesia, nem dialética.Trata-se do mais
absoluto delírio. Assim como só pode ser insano
afirmar que “os protestos de junho de 2013 foram promovidos pela classe média,
sócia menor do 1% de endinheirados que defende os privilégios de uma pequena
minoria”.
Talvez você, proprietário de um carro confortável, conquistado com mérito e esforço próprios – não esteja habituado ao transporte público aqui da
aldeia. Eu, sim. Posso garantir que as manifestações de junho não foram massa
de manobra da elite branca.
Não parei de ler o artigo do Jessé de Souza nem quando ele
disse que "a oposição reflete a raiva
ancestral de uma sociedade escravocrata, acostumada a um exército de servidores
cordatos e humilhados, o que explicaria a tolice dos que compram a idéia
absurda de mais mercado no país mais injusto e concentrado do mundo”. Exemplos
(meus) dessa “tolice”: obras públicas superfaturadas, beneficiando
empreiteiras patrocinadoras de campanhas eleitorais; manutenção artificial do nível de emprego por meio de privilégios para um determinado setor da economia, em detrimento
de outros; política fiscal desastrosa, mantendo o inchaço da máquina pública e o controle da inflação com o represamento
de tarifas públicas. - Muito técnico,
para um sociólogo?
Mas me diverti com a afirmação final do artigo, de que “foi
com um mínimo de estímulo que as classes populares voluntariosas encheram de
otimismo e vigor uma sociedade estagnada e decadente”. Provavelmente esse
“mínimo de estímulo” a que ele se refere são os shows de axé, comícios animados
por cantores de sertanejo universitário
ou festas populares no interior da Bahia, promovidas com uma “mínima parcela”
do patrimônio público expropriada da tal minoria escravista de 1% da sociedade
brasileira. Tudo em nome da promoção da classe oprimida às benesses
da sociedade moderna, certo?
Em retribuição, convido você a ver um outro filme da Mostra, Retorno a Ítaca (Laurent Cantet),
baseado num conto do cubano Leonardo Padura Fuentes, que conta a história de um
exilado que volta à ilha e reencontra amigos que não vê há 15 anos.
Afloram conflitos como os que perduram entre nós. – Por que Cuba? – perguntaram a Cantet. – Porque ela foi mitificada
no imaginário da esquerda – ele respondeu – mas permanece como um foco de
resistência ao mundo globalizado.
Foto: "Um pombo..." Trailler: https://www.youtube.com/watch?v=MhpedyLXevo#t=42
Foto: "Um pombo..." Trailler: https://www.youtube.com/watch?v=MhpedyLXevo#t=42
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