segunda-feira, 29 de abril de 2013

Investigação filosófica


24 horas depois do atentado de Boston, a polícia norte-americana já havia identificado os irmãos chechenos, Tamerlan e Dzohkhar Tsarnaev. Aqui, a brutalidade do crime que vitimou a dentista Cinthya Magaly, no Jardim Anchieta, em São Bernardo, motivou a polícia paulista a prender três dos quatro principais suspeitos, 48 horas após o assassinato. Tecnologia e vontade. Mas a ciência continua longe de explicar a natureza desse padrão de violência, cada vez mais selvagem: frustração, crueldade, ódio racial, fanatismo religioso, ciúmes, distúrbios psíquicos, ignorância, desejo de vingança. Mesmo tudo isso junto não basta para se entender alguns crimes recentes.

Não se pode isolar, nem contextualizar, racionalizando, os vetores coletivos do fenômeno: a impunidade (que não se limita à maioridade penal), a morosidade e a ineficácia da Justiça (com seu Código Penal, eternamente caquético), o ôco da família e a falência da fé, uma Educação de péssima qualidade; o recheio sanguinolento da cultura pop – essa coisa que o Caetano Veloso tenta explicar, atônito, ao apresentador dos Festivais da Record, Randal Juliano (o William Bonner da época), no filme Uma noite em 67 (de Renato Terra e Ricardo Calil); o videogame, com suas vidas instantâneas, a intolerância – pobrezinha, diante de tantos gólgotas e nosferatus.

No revestimento de tudo, em poliéster aluminizado, de cores berrantes, o vale tudo que passou a dominar as nossas relações sociais; o salve-se quem puder, o tudo a qualquer preço, os juízos morais destroçados pelas guerras e pela luta de classes: - Nada me impede, nada me assombra, nada me detém. Eu vi, eu quero, eu posso. Fomos da Lei de Murici à Lei do Cão, sem escalas: quem não almoça é jantado. Um certificado de incumbência e autoridade para tudo, raso e de amplo alcance, como convém à pós-modernidade, esse império do espaço, sem tempo nenhum, para ninguém e para nada.

Shakespeare não conheceu a manicure Suzana Oliveira Figueiredo, de Barra do Piraí (RJ), que matou o filho do amante por vingança. Dostoievsky nunca pensou num Raskolnikov capaz de atear fogo em sua vítima indefesa, muito menos em alguém que tivesse por missão aliviar a dor. Robert Wiene seria incapaz de montar um gabinete do Dr Calegari com a atmosfera da Clínica Roger Abdelmassih ou da UTI do Hospital Evangélico de Curitiba. Fomos muito depressa, do Oliver Stone do Expresso da Meia Noite (corinthianos injustiçados permanecem sequestrados na Bolívia) ao realizador de Savages, passando pelo Joel Coen de Onde os Fracos Não Têm Vez.

Mas garotos “de menor” que apavoram suas vítimas a soldo dos criminosos profissionais, como o personagem do conto Irmão, de Ataíde Tartari (Contos Cruéis, organizados por Rinaldo Fernandes, Geração Editorial), não frequentam essas salas de cinema: vão direto ao Jason Voorhees (Sexta-feira 13), ao Micheel Mayers (Halloween), ao Freddy Krueger (A Hora do Pesadelo), ao Leatherface (Serra Elétrica) e ao Mick Talor (Wolfcreek). Acabam acreditando naquilo - não têm idéia do que se passa por trás das vitrines e telas de cinema.

“Adquiri o hábito de pensar constantemente (e de dizer!), minha mãe é repulsiva, minhas irmãs também, e estúpidas, meu pai é fraco, meu irmão é um pobre idiota, todos eles são uns imbecis”, afirma o austríaco, Thomas Bernhard, em seu ótimo “Extinção”. Talvez os criminosos daqui pensem assim. Mas se os assassinos de Dudu de Jesus (filho do dançarino Carlinhos de Jesus) tivessem ouvido Schubert durante toda a vida, em vez de É o tchan, eles teriam sido mais complacentes?

Por certo, o nihilismo dos assaltantes do Jardim Anchieta e da Maratona de Boston não é profundo, e sim lateral. Eles nunca leram Nietzche, não sabem quem foi o casal Thénadier ou o avarento Scrooge. É possível que nunca tenham lido sobre Sauron e Voldemort, os vilões de J.R.R.Tolkien (Senhor dos Anéis) e de J.K. Rowling (Harry Potter), esses cândidos deuses do mal que povoam a imaginação da geração X.

Parlamentares e juízes que, hoje, armam tertúlias em torno do poder civil (PEC 33 versus impedimento aos novos partidos) são leitores de Mann e Proust, perdidos no tempo, assim como os infelizes repórteres que cobriram os eventos de Boston, enquanto milhões de pessoas, à sua volta, trocavam mensagens e tweets com seus smartphones. “A internet é desordenada, ruidosa, pontilhista e erra com frequência”, observa Maureen Dowd, colunista do NY Times que ficou famosa ao cobrir o escândalo de Monica Lewinsky, “mas se você tem necessidade da notícia instantânea, a TV não consegue competir com ela”.

O fato é que nem a Comunicação, nem a Sociologia, nem a Ciência Jurídica – e muito menos os parlamentos de nossas toscas democracias – conseguem entender e parametrizar a fenomenologia humana da pós-modernidade, a fim de iniciar um processo de revisão e substituição de seus estatutos de convivência, fundados na cultura clássica e apenas renovados pelo Iluminismo.

No caso dos assassinos, tanto os de Boston, como os do Jardim Anchieta, a combinação dos recursos da tecnologia com os da investigação policial – apoiados pela população – deram resultado. Mas a combinação desses três fatores, sem o elemento crucial da inteligência, pode causar grandes estragos, de linchamentos precipitados a erros judiciários, cada vez mais difíceis de serem corrigidos. É o que acontece, neste instante, com os 12 corinthianos presos injustamente em Oruro, na Bolívia, pela morte do garoto Kevin Espada, torcedor do San José. É preciso entender as relações de poder que estão por trás desses fenômenos, e nos aprofundar no conhecimento da alma humana, do ponto de vista dessa nova matriz contemporânea, a lógica do espaço, e não mais do tempo.

Mas eu não estou totalmente pessimista. Há três dias, vi, numa placa de trânsito da Capital paulista, controlada pela CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), o seguinte conselho: “Procure rotas alternativas”. Finalmente, um sinal de que a força do criticismo e da inovação estão conseguindo aflorar, em nossas velhas estruturas do pensar. Mal posso esperar por uma palestra do diretor daquele órgão na Casa do Saber, ou no programa da TV Cultura, o Café Filosófico. A minha curiosidade a esse respeito sempre foi grande. 


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