Cinco quadras abaixo, virando-se à esquerda, ficava a sede do
meu martírio dominical: meu pai (foto) me obrigava a ir à missa, embora eu já tivesse
arrebentado a testa, anos antes, enquanto pulava de um banco para o outro,
tentando me distrair durante a homilia: seis pontos, dos quais conservo a
cicatriz. Não era o mistério da transubstanciação, o que me incomodava:
sempre apreciei, tanto o vinho, como a carne, mas aquele ritual pesado, sempre igual,
me exasperava. Deve ser por isso que os evangélicos fazem sucesso: no
outro dia, vi um desses pastores, do canal 7, se não me engano, saltitando e
cantarolando como um periquito – pelo menos, é divertido.
Anos depois, por volta dos quatorze, aprendi a gostar da
missa das 11, onde mirávamos – eu e os outros garotos da cidade – os nossos
alvos da sessão das seis, no Cine São Paulo. Fumávamos à vontade, durante a
celebração, e a entrada era divertida, quando elas passavam com seus pais
sisudos, olhando para nós com o rabo do olho. A saída era melhor ainda: às
vezes, uma distração da família rendia uma abordagem antecipada. E uma tarde
inteira de excitação.
Para mitigar o meu sofrimento, meu pai – que era avançado,
para a época – empurrou-me uma cartela da rifa do padre Luís Batistella, para
que eu pusesse praticar meus sentimentos cristãos. Comecei timidamente a
oferecer aquelas pequenas possibilidades de recompensa em nomes de mulher. Não me
lembro mais de qual era o prêmio, exatamente: um prato decorado ou um ventilador.
Escalei, como doadores, primeiro, os meus colegas de
quarto ano primário; depois, as empregadas no atelier de costura de minha tia.
Em seguida, encorajado pelo sucesso das vendas, os comerciantes das vizinhanças.
Resistí bem à minha primeira grande tentação: o sujeito da ótica
não tinha tempo para nada e entregou-me uma nota de dois cruzeiros,
laranja, com a cara severa do Duque de Caxias impressa em azul. Não quis assinar
o próprio nome na cartela:
- Escolhe aí qualquer um, moleque.
À medida em que eu ia me acostumando à tarefa, as
coisas iam ficando mais estimulantes: a nota de cinco, com o Barão do Rio Branco,
seduzia mais que a de dois. Os filantropos sem tempo para escolher
um quadradinho aumentavam. De um momento para o outro, vários cruzeiros
tinham passado para o meu lado da conta. Pedi uma caixa de biscoitos ao
dono do armazém e paguei à vista. Meus sinais aparentes de riqueza me
comprometeram: levei a maior surra da minha vida e, talvez por isso, não aceite
até, hoje, nada parecido, independentemente de ideologia, credo ou cor: de uma
tapioca a um Mensalão, de um viadutozinho do Maluf a um trem do metrô. Mas a
mancha ficou.
Lá pelos 15 anos de vida – um de ditadura militar –
desenhei um “Che” Guevara de três metros de altura na parede dos
fundos da sala de aula, em carvão. Perto dos vulcões de São João que soltei in house, nas aulas de Desenho do professor
Eloy, aquela era só mais uma pequena aventura, mas que, aos olhos da Diretoria do
Instituto de Educação, o golpe militar amplificava. Rendeu-me um tète a
tète com a sobrinha do professor Aníbal Campi (a fera do Latim): uma
estrangeira de Londrina-PR que nós acolheramos com prazer, depois de um fim
de noivado tortuoso. O encontro foi breve, mas me lembro até hoje da sombra do buganville,
na beira da piscina da Sociedade Hípica. Tarde charmosa, gazeta
coletiva, encontro pessoal.
O Guevara ficou porreta, embora não se comparasse às obras
de gênios contemporâneos como Alex Hornest (o Ornesto), Alex Vallauri e os Gêmeos
Otávio e Gustavo Pandolfo, que inverteram o trajeto e desenharam nas paredes de
Cuba. O diretor do Instituto, que chamávamos de Geraldinho, era um caboclo
insensível, tanto aos apelos da Arte quanto aos da libertação das massas. Tive
que pintar toda aquela parede de branco, no fim de semana mas, como, naquela
sala de aula, só eu tinha lido “As Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain, recebi a ajuda
consciente e solidária de todos os colegas. Carrego esse outro peso na alma.
Alguns dos que aqui me lêem haverão de se lembrar de minha
modesta vingança: irascível, quase violento, o Geraldinho, sem óculos (de fundo
de garrafa) era praticamente indefeso. Alguns acham que tive coragem em me deixar
fotografar ao lado de um bando de tigres bem alimentados e sonolentos, num
parque da Tailândia, no ano passado. Coragem foi aproveitar um momento em que,
chamado à Diretoria para uma nova punição, o Geraldinho tirou os óculos, à
minha frente, enquanto esfregava os olhos, sem saber o que mais fazer comigo, e
não percebeu que eu aproveitava para transferir as suas lentes para o lado oposto
da mesa. A punição ficou para outro dia. Na minha reputação, mais um pontinho
negro.
Também me dói – entre tantos outros descalabros (gostei da
palavra, Fernando Haddad) – ter enrolado, placidamente, um joint, na sala dos
meus pais, aos 23 anos, durante uma visita ao antigo lar: como se eu ainda
morasse na Holanda, como se ainda precisasse chocar os meus velhos, depois da
infância e da adolescência que lhes proporcionei: roubar o carro do professor
para fazer piquenique na casa da Eny, em Bauru,-SP era rotina. Muito reto, o
coitado ainda tinha que suportar ironias sussurradas pelos colegas porque o seu
carro tinha sido visto no bordel. Isso ainda me dói.
Caro Contardo Calegaris, este post não tem pretensões
psicanalíticas. Meus pais também devem ter aprontado das suas – comigo,
inclusive – mas não pude resistir à digressão, neste dia em que a quadrilha do
Mensalão vai pra cadeia (dizem), em que o Gilberto Kassab ameaça comprometer a sua
aliança com o PT, em plena campanha da reeleição, e em que o irmão do Genoíno diz
que ele, Genoíno, foi usado (maldade semântica). Afinal, uma outra mancha, na minha consciência, não vem das ilusões do combate à ditadura – que a idade me permitia - mas do fato de ter ajudado a construir a reputação de um partido que mudaria tanto, depois de aboletar-se no poder.
Só por isso, eu não mereço perdão. Pior que o tal partido não parece disposto a apear de seus mandos e desmandos. Nem sequer, a deixar o cavalo beber uma aguazinha, em seu transcurso,
como aquela que irriga as plantações de maconha de Pernambuco. Ôxe.
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