quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O Sistema


Entro na loja bem decorada da operadora de celular (fica a uma quadra de minha casa). Por cortesia, pergunto ao guardião que tenta organizar o atendimento, distribuindo senhas iguais a pessoas com demandas muito parecidas:

- A Josiane?

Ele me responde varrendo o salão com um olhar de jogador de basquete: – Está atendendo.

- Onde? – pergunto, com uma falsa intimidade. Ele perde a concentração e olha para a porta do cubículo onde eles, de fato, trabalham. Não resisto:

- Lá dentro? – Não, ele esclarece, esboçando um sorriso. Sabe que foi apanhado. Quebrei a primeira resistência do Sistema. Mudo de direção enquanto outra atendente vem chamá-lo: tem mais gente chegando (não pára nunca).

- Fábio? – pergunto ao garoto precocemente amadurecido que passa a meu lado, depois de uma espiadela no crachá que ele carrega. Já o vi outras vezes, sempre correndo, sempre assustado, provando que o avanço tecnológico pode encurtar as distâncias, mas só faz aumentar a nossa produtividade.

Digo:

- Você me conhece, eu tenho vindo aqui várias vezes (recebo um olhar de reconhecimento). É que a Josiane está sempre muito pressionada, sempre com muito trabalho, e é a única que entende deste aparelho. Eu só preciso transferir a minha agenda, do antigo telefone para o novo.

- Só isso? – ele desconfia. Respondo que sim, buscando o aparelho antigo dentro da pasta. O novo já está nas mãos dele.

– Isso, eu consigo resolver – admite. Boa pessoa, pergunta o que aconteceu com a tela do meu aparelho antigo, rasgada ao meio por uma feia cicatriz. Digo que escorregou da minha mão e explico que só a tela me custaria o dobro de um aparelho novo, já que eu não tenho a nota fiscal do antigo.

- Não era um genérico – me escuso. – Mas você sabe, eles ficam tentando evitar que as pessoas tragam lá de fora, pela metade do preço. Ele não pode concordar. Mas abre o notebook que está na bancada à nossa frente, enquanto aciona a tela principal do meu aparelho, que exibe instantaneamente a marca de outra operadora.

- Eu tenho duas outras linhas no concorrente – justifico. – Renovei o contrato por mais um ano, numa delas, e o telefone saiu um pouco mais barato do que aqui. Quem usa é o meu filho. A minha, continua sendo a daqui. Ontem, fiz a transferência das minhas contas de e-mail com o Marcos, seu colega do Atendimento Vip – acrescento, desnecessariamente. Fui atendido com toda a delicadeza que costuma ser dispensada a um heterossexual quase ancião, como eu (penso).

Amanhã (continuo pensando) virei novamente, para instalar os aplicativos do Facebook, Twitter e algum portal de conteúdo. Depois de amanhã, virei para entender se vale a pena baixar música neste aparelho, como enviar foto e vídeo por e-mail. Mas posso fazer isso na loja da outra operadora, que me vendeu o aparelho, para distribuir um pouco as tarefas entre as duas empresas.

Lembro-me de como foi bom ser tão mal atendido nas duas outras lojas dessa outra operadora onde estive algumas vezes, antes de comprar, finalmente, o novo aparelho. Funcionários com péssimo treinamento me ensinaram, ao longo de uma cadeia impressionante de erros:

1) A escolher os planos mais adequados aos meus interesses (exige pelo menos três visitas);

2) A encontrar um aparelho tecnicamente avançado, dentro da menor faixa de preço (duas visitas, dependendo do atendente), e

3) Como desencavar o melhor desconto contido na estreita margem de negociação franqueada aos atendentes (quatro a cinco visitas).

Nunca perdi meu tempo. Todas essas visitas foram encaixadas em passagens obrigatórias em frente às lojas, em horários de pouco movimento, encaixados entre minhas reuniões. Salvo exceções como a de hoje, sexta-feira, oito da noite, num shopping que se parece com uma rua de Mumbai, em dia de festa. 

Penso na expressão da dona do quiosque desse mesmo shopping center onde, inicialmente levei o meu celular quebrado (para um orçamento que levaria, no mínimo, 24 horas), quando lhe comunico que o meu aparelho novo custou a metade do que ela me pediu pelo conserto do antigo.

- Eu respeito muito o seu trabalho – digo – e sei que você paga um aluguel muito caro. Mas como, agora, posso esperar, vou consertá-lo quando tiver que passar pela Santa Ifigênia (Centro de São Paulo-SP). É nesse local (penso) que você,  provavelmente, compra suas peças de reposição e as horas de trabalho de um bando de brasileirinhos espertos, empregados por  contrabandistas com sotaques estranhos.

Percebo, pela primeira vez, porque gosto tanto da Santa Ifigênia, talvez mais até do que o Ceagesp, onde o que me atrai, além da bagunça e das cores, é a livre negociação de preços, peixes e  piadas. Um mar de anarquia que se entende sem nenhuma dificuldade, desdenhando de castigos bíblicos.

Aqueles cubículos e galerias escuras de Santa Ifigênia (filha de Hirtacus, noiva de Mateus) e suas minúsculas oficinas de desbloqueio de videogames estão povoados por meus antigos fantasmas do subúrbio e por colegas da velha escola que nos ensinou a romper as barreiras do Sistema, depois a mudar as coisas por dentro de Sistema, e finalmente, a me desviar do Sistema, como faço até hoje, muitas vezes sem perceber.

Aprendi a passar pelo pronto-socorro e retirar uma senha antes de cumprir outras tarefas, para voltar duas horas depois, quando, de fato, serei atendido; a migrar do banco mais caro para o mais barato (ou vice-versa, no caso de shows de blues); a usar as brechas das companhias aéreas para viajar com milhas que, hoje, não valem mais nada; a jogar uma operadora de telefonia contra a outra, entre outros pequenos malabarismos, na medida de um possível, a cada dia mais estreito, cada vez menos provável e menos verossímil, um ponto microscópico, que, do fundo do meu Alzheimer, já mal consigo enxergar. 

Foto: Adoniran Barbosa, autor de Viaduto Santa Ifigênia, no próprio (Quero ficar ausente, o que os olhos não vê, o coração não sente)

Nenhum comentário:

Postar um comentário