Nunca esperei muito das pessoas, embora dificilmente consiga permanecer calado num táxi e aprecie aquela cena do Al Pacino em Donnie Brasco, na qual ele assiste à caçada de uma gazela por um guepardo, num canal de tv a cabo. Lembra a fuga do tigre de Bertolucci, em A Estratégia da Aranha. A namorada confessa ao amigo que aquele prefere os animais, mas a intenção do diretor, Mike Newell, não é discutir a solidão, mas introduzir o tema da caça e do predador, embora ele não seja um Borges, nem tenha sido inventado pelo genial autor da História Universal da Infâmia.
Mais adiante, Newell vai mostrar o guepardo sendo acossado por um bando de hienas. É quando Donnie Brasco (Johnny Deep) humanizado por um súbito arrependimento católico (que dura pouco) resolve entregar o parceiro, Lefty Ruggiero (Pacino), ao FBI. Lefty é um mafioso de subúrbio que jamais conseguiu alcançar o poder, e parece compreender e perdoar a traição do amigo ao qual se havia afeiçoado.
O chefe de Donnie Brasco é um mórmon facista que zomba do dilema moral de seu subordinado (para sublinhar a angústia do traidor). Mais Borges: “A hipocrisia é o tributo que o vício paga à virtude”. O filme tem outra boa cena, quando Brasco ensina a seus colegas de FBI os inúmeros significados de “forget about” no jargão da máfia: não tem como; soa bom demais; certamente; de jeito nenhum e outros, além do literal “esqueça”. E tem Michael Madsen, em sua única performance fora da pele de Elvis Aaron Presley. Mas tanto Deep quanto Pacino abusam dos longos interstícios a la De Niro.
De volta ao tema da solidão, confesso que sentia algum desconforto em relação à figura pública do diretor de TV, Jorge Fernando, que eu não conseguia encaixar na imagem que eu tinha dele na minha infância, em Del Castilho (RJ) quando sua mãe vivia gritando, da janela do primeiro andar, : “Jooorge!”. Nunca soube se era para o almoço ou por alguma estrepolia: na rua, ele era um diabo.
O garoto já exibia um pouco do que viria a se tornar, essa mistura de facínora com Shirley Temple. Eu sempre o considerei exagerado demais, talvez arrogante: era instigante e, portanto, ameaçador. Mas isso é passado remoto. No outro dia, assisti, quase por acaso, a um episódio da série Macho Man, na qual Jorge Fernando se dirige (e se interpreta?) como um gay que tenta equilibrar-se entre os estereótipos da masculinidade recém-adquirida e as deliciosas tiradas de sua antiga condição.
Para subir e descer da corda bamba, o autor-ator elegeu ninguém menos que Marisa Orth. O cenário (a ambiance) lembra A Gaiola das Loucas, de Jean Poiret. E o autor-ator é uma combinação pouco provável de Mell Brooks com Mauro Rasi (aiê, Bauru!). O resultado, para mim, foi uma epifânia. Comecei a achar que a TV aberta tem chances de sobreviver a Faustão e Luciano Huck.
O auge do episódio ocorre quando o protagonista explica, com sua visão privilegiada de homem (gênero) porque o masculino consegue transitar sem problemas, de uma acalorada discussão para uma tórrida relação carnal com a parceira: rápido e rasteiro, sucessão que sempre me rendeu a pecha de canalha. Para as mulheres, obviamente, isso escapa a qualquer nível de compreensão.
A cena termina com a personagem de Marisa Orth (mulher e heterossexual) explicando que o fenômeno deve derivar do fato de serem, as relações heterossexuais, fruto de uma atração de opostos. Segue-se o pastelão no qual os convidados para o suposto bota dentro do ex-namorado gay de Jorge Fernando – que agora mora com a personagem de Marisa – descobrem, horrorizados, que o anfitrião não apenas tornou-se hetero, como acaba de papar sua amiga, atrás do sofá. Tudo muito divertido.
Provavelmente eu era o único vivente deste lado do rio que desconhecia o talento do Jorge Fernando. A minha impaciência com a TV, em relação ao teatro e ao cinema, lembrou-me uma das pequenas histórias resgatadas pelo Clarin da última terça-feira (14/6) sobre outro Jorge, o Borges, que nos deixou há 25 anos. Convidado a subir ao segundo andar da Biblioteca de Buenos Aires pelo elevador, depois de um longo instante de espera, ele pergunta à pessoa que o acompanhava: “Não prefere ir pela escada, que já está totalmente inventada?”.
Mais adiante, Newell vai mostrar o guepardo sendo acossado por um bando de hienas. É quando Donnie Brasco (Johnny Deep) humanizado por um súbito arrependimento católico (que dura pouco) resolve entregar o parceiro, Lefty Ruggiero (Pacino), ao FBI. Lefty é um mafioso de subúrbio que jamais conseguiu alcançar o poder, e parece compreender e perdoar a traição do amigo ao qual se havia afeiçoado.
O chefe de Donnie Brasco é um mórmon facista que zomba do dilema moral de seu subordinado (para sublinhar a angústia do traidor). Mais Borges: “A hipocrisia é o tributo que o vício paga à virtude”. O filme tem outra boa cena, quando Brasco ensina a seus colegas de FBI os inúmeros significados de “forget about” no jargão da máfia: não tem como; soa bom demais; certamente; de jeito nenhum e outros, além do literal “esqueça”. E tem Michael Madsen, em sua única performance fora da pele de Elvis Aaron Presley. Mas tanto Deep quanto Pacino abusam dos longos interstícios a la De Niro.
De volta ao tema da solidão, confesso que sentia algum desconforto em relação à figura pública do diretor de TV, Jorge Fernando, que eu não conseguia encaixar na imagem que eu tinha dele na minha infância, em Del Castilho (RJ) quando sua mãe vivia gritando, da janela do primeiro andar, : “Jooorge!”. Nunca soube se era para o almoço ou por alguma estrepolia: na rua, ele era um diabo.
O garoto já exibia um pouco do que viria a se tornar, essa mistura de facínora com Shirley Temple. Eu sempre o considerei exagerado demais, talvez arrogante: era instigante e, portanto, ameaçador. Mas isso é passado remoto. No outro dia, assisti, quase por acaso, a um episódio da série Macho Man, na qual Jorge Fernando se dirige (e se interpreta?) como um gay que tenta equilibrar-se entre os estereótipos da masculinidade recém-adquirida e as deliciosas tiradas de sua antiga condição.
Para subir e descer da corda bamba, o autor-ator elegeu ninguém menos que Marisa Orth. O cenário (a ambiance) lembra A Gaiola das Loucas, de Jean Poiret. E o autor-ator é uma combinação pouco provável de Mell Brooks com Mauro Rasi (aiê, Bauru!). O resultado, para mim, foi uma epifânia. Comecei a achar que a TV aberta tem chances de sobreviver a Faustão e Luciano Huck.
O auge do episódio ocorre quando o protagonista explica, com sua visão privilegiada de homem (gênero) porque o masculino consegue transitar sem problemas, de uma acalorada discussão para uma tórrida relação carnal com a parceira: rápido e rasteiro, sucessão que sempre me rendeu a pecha de canalha. Para as mulheres, obviamente, isso escapa a qualquer nível de compreensão.
A cena termina com a personagem de Marisa Orth (mulher e heterossexual) explicando que o fenômeno deve derivar do fato de serem, as relações heterossexuais, fruto de uma atração de opostos. Segue-se o pastelão no qual os convidados para o suposto bota dentro do ex-namorado gay de Jorge Fernando – que agora mora com a personagem de Marisa – descobrem, horrorizados, que o anfitrião não apenas tornou-se hetero, como acaba de papar sua amiga, atrás do sofá. Tudo muito divertido.
Provavelmente eu era o único vivente deste lado do rio que desconhecia o talento do Jorge Fernando. A minha impaciência com a TV, em relação ao teatro e ao cinema, lembrou-me uma das pequenas histórias resgatadas pelo Clarin da última terça-feira (14/6) sobre outro Jorge, o Borges, que nos deixou há 25 anos. Convidado a subir ao segundo andar da Biblioteca de Buenos Aires pelo elevador, depois de um longo instante de espera, ele pergunta à pessoa que o acompanhava: “Não prefere ir pela escada, que já está totalmente inventada?”.
Prezado Roberto, belo texto, para variar. Apenas alguns adendos à traição de sua memória. O Jorge morava no quarto andar, meu caro. E jamais foi um capeta na rua. Ao contrário, enquanto nós jogávamos futebol e bola de gude na rua, o Jorge ficava muito mais em casa, fazendo teatrinho de marionetes e dirigindo a doce e maravilhosa Maria, irmã dele, em esquetes que ele já idealizava. Embora lhe passasse despercebido, talentoso na área teatral ele sempre foi, mesmo. Desde garoto, depois quando viajou de Del Castilho diretamente para a Europa com os(as) Dzi Croquettes e em seu retorno, quando a Elke Maravilha, então jurada do Chacrinha, abrigou-o em sua casa, apadrinhando sua carreira. Daí para a frente o sucesso do Jorginho, como o conhecem na Globo, não parou. Fora da TV ele dirigiu muitos shows de astros da MPB, inclusive.
ResponderExcluirA D. Hilda Rebello, mãe dele, que raramente o chamava do 4º andar, não acabou em Delca nem em Irajá, mas na Globo, levada por ele. Se não me engano, ela foi relacionada no Guiness como a atriz mais velha a se iniciar nas artes dramáticas. Ela está frequentemente no cast das novelas. Um grande, delcastilhense e globalizado abraço. Alexandre
Bacana, Xandu, obrigado pelo carinho e pela atenção. Eu devo ter presenciado uma das poucas vezes em que a Dona Hilda o chamou (ok, do quarto andar). Quanto ao talento dele, eu não estava no país, na época dos Dzi Croquetes, mas reconheço a importância do grupo. E nunca fui ao teatro assistir ao Jorge Fernando, por julgá-lo muito exagerado. A TV, por outro lado, nunca foi o meu forte. Mas tentei dependurar a autocrítica no fundo desta crônica. Abraço fraterno.
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