sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Três dias em Madrid


Meu projeto era postar aqui um roteiro desses que inundam a web dos turistas incidentais e que, às vezes, ajudam, numa viagem inesperada (apesar do vinco pessoal  geralmente impresso nas dicas do prestador do serviço): Madrid/Barcelona em sete dias. Se fosse esse o caso, eu recomendaria, de cara, a escolha de um genro com MBA em Singapura (Insead), poliglota e conhecedor dos aeroportos e empresas aéreas da Europa, tão tortuosas quanto as daqui. A espanhola Vueling, por exemplo, cobra apenas 60 euros por um trecho como Madrid-Barcelona, mas escora os bobalhões, como eu, na escadinha do check-in, onde cobra mais 50 euros por qualquer bagagem que exceda os 10 quilos por passageiro. Todo espanhol sabe disso: as malinhas de aeroporto, exibidas nas lojas com adesivos berrantes de peso e medida certos, são as mais vendidas no país, mas você não vê nada disso no Facebook.

Essa dependência das redes sociais, aliás, está acabando com a gente. A manchete do Uol, ontem (13/2), era a notícia de que a renúncia de Joseph Ratzinger não foi, afinal, fruto da indisposição que alimentou a cobertura da Globonews, na segunda-feira de Carnaval (11/2), dia seguinte ao anúncio do papa. O portal cozinhou a manchete do Estadão, que falava do vazamento de documentos secretos pelo mordomo (um tanto óbvio) e da pedofilia do clero – mas apenas no lead. O título foi sutil: “Fragilizado, Bento XVI surpreende e renuncia”.

Na mesma front page, o Uol trouxe a notícia daquela atriz da novela (esta, nem os noveleiros crônicos estão aguentando) que pediu um copinho para fazer xixi depois de desfilar na escola de samba. No Carnaval, a houseorganização da imprensa fica ainda mais evidente: a estrela da Globo ilustra a coluna social do jornal paulista, cuja rádio transmite ao vivo a apuração do desfile, que fornece um abre criativo ao programa de Economia e Negócios da emissora a cabo daquela primeira, detentora dos direitos de transmissão desfile (narrado como uma partida de futebol). O analista econômico, por sua vez, consegue justificar o uso da passarela do samba como outdoor do cavalo marchador, do carro coreano e do sol de Goiás. Tudo em família, como manda a tradição brasileira.

Num mundo que troca de personalidade real por personalidade de estamparia, a todo momento, a vedete Sabrina Sato é mais importante do que o compositor aquele, na foto que ilustra a reportagem do jornal serião sobre a vitória da Vila Isabel no Carnaval Carioca. A madrinha da bateria sabe onde fica o Morro do Macaco? – E isso importa?

Voltemos ao papa, que não renunciou para sair na Mangueira, a despeito da minha torcida. Deveria: aquela paradinha da(s) bateria(s) me fez esquecer o pouco que eu sabia de Jazz, de Amstrong a Stanley Jordan, passando pelo velho Miles, que você não curte.

Apesar das semelhanças entre a crise de Ratzinger e o badalado filme de Nanni Moretti, Habemus Papam, com o Michel Picoli (ator de Marco Ferreri e de Luis Buñuel, aquele amigo do Salvador Dali e do Garcia Lorca), em nenhum momento, naquela segunda-feira (11/2), a Globonews levantou a hipótese de uma crise de consciência, por parte do papa, diante dos dilemas da vida. Ou da religião católica, essa bola de neve que vem rolando, nas últimas décadas, do sermão de cobranças e advertências do domingo até a endorfina do padre Marcelo, passando pelo violão da Juventude Estudantil Católica, pela Opus Dei e pelos focolare, que ajudaram a eleger o antigo papa atual. Sempre em busca dos jovens que costumam celebrar, simplesmente, o fato de estar vivos, em suas baladas e academias.

A frustração me pareceu óbvia, no teorema de Ratzinger, por constituir-se no aspecto mais humano de sua renúncia (limitações físicas à parte, claro). Isso animou uma acalorada discussão nas areias de Cambury, no dia 11/2, mas escapou à atenção da mídia até a noite de anteontem, quarta-feira de cinzas (13/2). A dúvida, o cansaço e a sensação de fracasso do pontífice – essas coisas de humanóides – permaneceram à margem da cobertura do fato, durante três longos, intermináveis dias.

O que se pode fazer, em três dias? No meu primeiro dia em Madrid, por exemplo, consegui visitar todo o Museu do Prado. A cólica renal não ajudou, mas permitiu-me apreciar melhor o lado escuro de Goya.

O que mais curti, nesse dia (poxa, devia ter postado uma foto), foi um grupo de grumetes que podiam ter, no máximo, seis anos, sentados em torno do Jardim das Delícias, de Bosch, guiados por uma professorinha. Mesmo visto de dentro daqueles uniformes engomados de espanhóis, o quadro deve ter propiciado, a eles, uma experiência fantástica. A comparação com o que nossas crianças costumam receber, aqui, me doeu mais do que o maldito cristal de oxalato de cálcio que passeava por minhas entranhas.

Todo o questionamentos de fé e moralidade, ética e doutrina – que me perseguiram durante a visita ao museu, e que costumam perturbar até o papa – se dissiparam, no meu segundo dia em Madrid, quando o boticário de uma farmácia situada em frente à Estação Atocha, entre o Prado e o Museu de la Reina Sofia, concordou em me receitar um anti-inflamatório, depois de uma breve consulta. Imaginem se eu tivesse que recorrer ao serviço de saúde da seguradora, naquele país estranho: - E se fosse como aqui?

Naquele momento, eu já tinha entendido a lógica especial das placas de sinalização espanholas (outro alívio) e me livrado da visão aterradora do Cristo, de El Greco e da opressão mística das telas de Zubaran e Velazquez. Mas não conseguiria suportar o martírio da fome. O restaurante do Prado me pareceu tão bom quanto o do Masp. Entre os museus citados (o Prado e o Reina Sofia), que não ficam longe do Museu Thissen Bornemisza (coleção privada adquirida pelo governo, em 1993, e que vai do Quattrocento italiano ao Expressionismo alemão), você também encontra algumas tascas onde pode pedir um Magno (melhor que aquele outro brandy, famoso fora da Espanha) e uma Estrella, a cerveja melhorzinha deles, na linha das louras leves. E claro, tapas, jamón.

Na minha comparação maluca de timing, enquanto beberico no último andar d’El Corte Inglés (uma espécie de Mappin deles), vendo o sol deitar-se por trás do Palácio Real, minha primeira noite em Madrid, o JN, maior telejornal do Brasil, 24 horas depois da renúncia do papa, informa seus espectadores sobre o esforço feito pela emissora para levar o Marcos Lozekan, de Londres até Roma, para trazer os desdobramentos da renúncia aos brasileiros: o papa decidiu renunciar justo na folga da Ilze Scamparini, eplica o âncora.

É noite. Procuro um restaurante de cozido típico da cidade, a Taberna La Bola, que fica ao lado da Ópera, conhecida pelos madrilenos como tal, mas indicada em seus mapas e placas como Teatro Real, ou Plaza Isabel II. O restaurante parece ótimo, mas só aceita dinheiro como forma de pagamento, e prefiro não arriscar. Vamos jantar numa parrilla argentina, perto da Plaza del Sol, que fica na margem sul da Gran Via, a rua comercial da cidade. No lado oposto está a rua Fuencarral, uma espécie de Baixo Leblon madrilenho, onde você encontra tatuadores, lojas de grifes e botecos simpáticos, inclusive de cozinha vascaína (que não vende, necessariamente, bacalhau). Não fomos, nem ao Santiago Bernabeu, nem ao Vicente Calderón, com medo de encontrar o Galvão Bueno.

No segundo dia da cobertura da renúncia do papa (12/2), a manchete do JN foi a troca do marcapasso de Josef Ratzinger, uns meses antes. Foi uma extensa cobertura: falou-se da saúde do papa, dos possíveis sucessores, da residência de verão, da nova posição do ex-sumo pontífice na hierarquia da igreja, do Encontro da Juventude ao qual ele deveria comparecer, no Brasil, este ano. Nada de realpolitik, frustração ou crise de consciência. O G1, como descubro depois, publicou, à tarde, uma nota sobre a declaração de Nani Moretti de que seu filme previu a renúncia do papa. Exagero de italiano, claro, mas pista certa (que ninguém seguiu).

No meu segundo dia em Madrid, apesar da neve, passeamos um pouco pelo Parque del Buen Retiro, que margeia a avenida Alcalá, quase uma continuação da Gran Via (a cidade também respira pelo Parque del Oeste (perto da Plaza de Espana) e pelo de las Vistillas, que fica atrás da igreja de San Francisco, El Grande, que teria sido o seu próprio fundador. “Percorra, sem objetivo definido, as ruelas medievais do centro”: por mais idiota que pareça o conselho, caminhamos dessa igreja até a de San Isidro, e depois, até a Plaza Mayor, o que valeu a pena. Fizemos compras na Gran Via e na Fuencarral. Depois, jantamos no Corral de la Moreria, para ver e ouvir o flamenco, que, a exemplo do time carioca, custou caro, mas não convenceu.

Já falamos do terceiro dia da cobertura da renúncia do papa (13/2) quando os portais, finalmente, chegaram ao âmago da questão, baseados nas análises dos jornalões, que, afinal, haviam tido tempo de se recompor. Daí por diante, o assunto virou tema de suítes, e deixou de me interessar. Já na minha visita a Madrid, passei o terceiro dia nos já citados museus Thyssen e Reina Sofia (modernista), sentindo o peso real da cultura: cansa. Consolação, happy hour no Mercado de San Miguel.

Apesar do frio e da crise, a cidade me foi agradável. Muitos estrangeiros (inclusive da Espanha), respeito ao turista, equipamentos que funcionam (exceto pelo lixo de três dias em Barajas, na volta, por conta da greve dos funcionários de manutenção). Os preços foram justos (não sei se em consequência da crise) e o metrô que interliga toda a cidade (o passe de 10 viagens é muito mais barato), levando, inclusive, ao aeroporto de Barajas (ai de ti, presidenta Dilma).

Passamos por ruas batizadas de Lope de Vega, Tirso de Molina, José Ortega y Gasset, Cervantes, mas a sombra do generalíssimo me perseguiu (em 1972, muito jovem, fui preso no aeroporto de Madrid por saudar um gendarme com a frase “Viva Franco, arriba España”, em tom obviamente caricatural (apesar da minha condição de exilado do governo Garrastazu Médici). Também não aguentei ficar mais de cinco minutos na Plaza Mayor, onde, durante três séculos (de 1478 a 1834), o Santo Ofício mandou julgar e queimar vivos cristãos acometidos pelo que, na época, se definia como “crise de fé”.

Foto: Estudante de Arte no Prado: antropofagia chinesa

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