Se eu chegar primeiro, prometo não contar como é
Também estou de partida. Talvez tome mais uma ou duas, mas estou tratando de fazer as malas, assim como você, conforme deixou escapar no outro dia, em conversa com uma desconhecida, lá nos seus domínios. Com o silêncio ensurdecedor que temos feito à sua volta, com nosso medo da morte (e de todo tipo de perda), a quem você iria confessar o seu desânimo?
- Ei, amigo, eu tenho câncer. Não tenho a fibra, nem a fé do ex-vice-presidente. Só o câncer. Ainda não sei quem vai primeiro, mas esse seu cansaço, eu conheço. Passamos juntos juntos por Nietzche, Kafka, Bukowski, Dostoievski. Entendo essa angústia, os longos vôos solitários: você puxa conversa com o passageiro ao lado, e logo se arrepende. Decepções, impotência, vasos partidos. Aquelas duas crianças do Natal do Presente: a ignorância e a miséria. Por toda a parte.
Acabo de rever o velho Dickens numa gravura, servindo de escada para o Johnny Deep, num comentário sobre a larga preferência das pessoas por Sheakespeare, dentro de um filme bobo. Como se multidões lessem Sheakespeare, pobre roteirista. Tão solitário quanto nós, em seu balde de martini do Ritual Bar, no Cahuenga Boulevard, LA, CA.
Pelo menos, eles fazem roteiros. Botam Satisfaction no fundo de uma cena de novela, chamam a coisa toda de Insensato Coração. Toda a gente conhece a batida de Charlie Watts, todo mundo ouviu falar de Caymi, muita gente suspira pelos anos 60. Falando em outro filme bobo, Piratas do Caribe, em quem mais o Johny Deep e o Gore Verbinski iam se inspirar, além do Keith Richards? – No Keith Jarret? – Quem ouve a Rádio Cultura, segunda-feira à tarde, além dos maestros da Sinfônica e suas tias elegantes? – Eu ouço, mas eu não faço nenhuma diferença. Ouço porque não consigo mais suportar o barulho das notícias, more and more of useless information. Essa é uma das trouxas que não faço nenhuma questão de levar, para onde vamos.
Num dos meus delírios desses dias, pensei em ver Hereafter com você (foto acima), depois bebericar no Riviera, olhar as meninas da Paulista (é o que podemos fazer com elas). No dia seguinte, você estava na UTI.
É fácil, para mim? Não tem sido fácil, para mim. Quanto mais você acha que conseguimos suportar? Hoje mesmo, saí por uma hora em São Paulo, vi duas Ferraris nessas ruas esburacadas, e pensei: eu nunca soube o que é sair gastando por aí, comprando coisas inúteis, nem naquela fase de Paris pós-conexão Ultrecht/Bruxelas. – Você se lembra? – As coisas que já fizemos... isso, nem o Alzeimer vai me tirar. Einen Augenblick, im Paradies lebte ist nicht teuer im Tod bezahlt (A morte não é pagamento muito caro para um momento no paraíso - eu, copidescando Schiller).
Também não gosto de funk, acho a maioria das letras de rap idiotas. Respeito a periferia, mas sobre a Cláudia Leite, por exemplo, eu teria um outro posicionamento de marketing para ela. Se bem que, no mundo em que vivemos, presidentes lêem Coelho (não o Amstrong, de Updike, mas o Paulo Coelho) e Ivete faz sucesso no Carneggie Hall.
Bach é o meu segundo compositor favorito, mas não, não leio partitura, sou semi-analfabeto em Excell, nunca saltei de Asa Delta e não aprendi cantonês. Não resisto a um carinho de mulher, não tenho tablet PC e nem pratico Kitesurf. O meu swot tem mais weekness do que strenghts, dezenas de threats e talvez esta última oportunidade de nos falarmos mais uma vez.
Ronaldinho Gaúcho foi apresentado à nova torcida, depois de uma pequena frustração de seus conterrâneos. Algumas moedas a mais, uma com duas faces: - Cara ou coroa? -E a nação desabrida celebra, em plena cobertura da tragédia na serra fluminense, boa sorte, Flamengo.
A tragédia na serra: mais uma cobertura patética, tão histérica quanto impotente, que me perdoem os que para lá foram levados pelo senso de honestidade que o instinto costuma converter em compromisso com a profissão.
Assassinos de vinte reais carregando água mineral compungidos, diante das câmeras. “Todas as tragédias que cobrimos me voltam como pesadelos, nessas horas”, confidenciou-me um velho repórter fotográfico”, naquela ocasião.
Quase 900 mortos, de Friburgo a Teresópolis. Um punhado de histórias comoventes, algumas barrigas e a tautologia de sempre: “Essa gente mora nas encostas porque não tem mais onde morar”, ou “A responsabilidade é dos municípios”. Passo por Juquehi, no Litoral Norte de São Paulo, e vejo seis bangalôs de alto padrão sendo construídos na encosta do morro, de cara para a Rio Santos, exatamente agora. Mas o momento já pertence à fuga de Mubarak e ao conselho feminino do Mercosul. Tiririca toma posse e Borat promete raspar o bigode: isso é notícia.
Pensando no que vamos encontrar no outro lado, andei inventariando o que vamos deixar por aqui, meu amigo, você, claro, muito mais do que eu. Você tirou daquela terra braba bem mais que automóveis e caminhões atolados: o coco, a pimenta, os carneiros, o caju, as duas casas, o mar da Bahia para deleitar os amigos, o sonho do resort, alguns alqueires que engordaram a propriedade, o peixe, a casa da antiga mina de areia monazítica e as fotos, a barraca na praia e a mineirada viciada em sua boa música, batidas e a casquinha de siri da patroa.
Tem ainda, as filhas muito bem criadas na Antropologia e na Oceanografia, a casa nas Perdizes, (sua última obra) e uma reputação invejável junto aos parceiros da sua geração, enquanto eu continuo afastando as pessoas com minhas frases infelizes como: Gente não tem edição.
Penso no que eu poderia levar: queria ver o novo filme do Carlos Saldanha, que entrevistei depois do primeiro A Era do Gelo. É sobre o Rio: tem duas ararinhas azuis e eu sou do tempo do Zé Carioca. Queria ver os filhos felizes, uma vez, nos braços de outros filhos e filhas felizes; queria me comover novamente, tomar um café na praça em Aiuruoca, MG, navegar pelo Grand Canal, bebericar mais um Chablis nos jardins da Fundação Rotschild, em Paris, olhar paredes do museu Gulbenkian de NY, assistir a mais um espetáculo do Corpo, talvez me casar com uma daquelas bailarinas. No fim, uma sonata de Beethoven, numa sala sombria, com uma taça de Borgonha. Ou um striptease numa boate do Oklahoma. A gente se vê.
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