sábado, 8 de outubro de 2011

Tenha muitas saudades



Mimulus e opúncias do Novo México, raridades no banho de sangue de McArthy

Arnaldo Jabor, que voltou a escrever com graça, nas últimas semanas, evocando seu mestre, Nelson Rodrigues, trouxe-nos de volta a memória de coisas e maneiras de nossa adolescência, como a caixinha de chicletes com vista de celofane para as balinhas refrescantes (hoje, fabricantes de chicletes têm assessoras que estapeiam celebridades no Rock in Rio); bisnagas de pasta de dente cheias por inteiro e garçons atenciosos que, em vez de oferecer gelo e laranja para o nosso guaraná, perguntavam, simplesmente:


- Da Brahma ou da Antárctica?


Lembranças que afagam a mente, embora quase sempre nos cheguem no tropel de um cotidiano cada vez mais absurdo, trazidas por amigos que habitam pontos remotos do nosso mapa afetivo (os muito geeks ou os aposentados), colhidas no mesmo poço onde fermentam os novos hinos das torcidas de futebol (aqui tem um bando de loucos), as rimas dos feirantes (Na esquina do Rosário, quer de noite, quer de dia, tem sorvete de patente, feito por engenharia) e as piadas que escapam dos botequins, como a última de Dilma Roussef, na Bulgária:


- Traz azeite, Valdeci! – foi a saudação que a presidenta levou duas horas para decorar, a bordo do Dilma One. Ninguém entendeu, mas ela queria dizer, apenas: - Olá, guardas ! (“Zdraveite, gvardeyci”). Melhor foi comparação jogada na Internet, com as fotos da ministra, Iriny Lopes, que censurou a lingerie de Gisele Bundchen e do cartunista Laerte, travestido de Sônia, as duas realmente parecidas, exceto pela feminilidade, esbanjada pela segunda.

Faz-me falta, senhor Jabor, o gosto do guaraná ligeiramente mais ácido que o do concorrente, o sabor dos sorvetes Jajá, Kalu e Chicabon, com sua discreta referência ao remelexo da Pequena Notável. Tenho saudades do Frankenstein de Boris Karloff, que gemia ao expressar seus desejos, mais eficiente que esses pobres garotos de call-center que enriquecem seus chefes espertos enganando, ao mesmo tempo, consumidores e clientes. Quando ele aparecia na tela, rugindo, ela apertava mais a minha mão.


Decalques de banheiro me seduziam mais que figurinhas de jogadores de futebol (desculpe, ministra, sempre foi assim) e o meu carro de sonho era um Symca Chambord, embora eu me contentasse em dirigir o Renault Gordini do meu velho. Também desapareceram: a Crush e o display do Elvis no terno prateado que o Frejat tentou imitar no show do Barão Vermelho; a sessão das seis no Cine São Paulo, em Bauru, o Cine Cachambi e a Embaixada do Sossego, no Rio, as sessões corridas do museu do Cinema de Bruxelas, a fumaça do Vonldel Park, em Amsterdam (onde tudo era possível, na década de 60), as piranhas do rio Iriri, o Amazonas e as margens do Hudson, do Sena e do Tamisa.

Mas também gosto de pensar no meu velho Blackberry, que ficou obsoleto depois do Iphone, quiçá do Ipad. Fantástico era o meu primeiro computador, um MSX (Microsoft Extended?) Gradiente de 8 bits, com processador de 4 MHz. Ganhei numa rifa de assembléia do Sindicato dos Jornalistas, em 1986.


Lembro-me, também, do primeiro balé de minha filha, do carrinho de rolimã construído com o parceirinho, seu irmão, então com seis anos, do concerto de Miles Davis no Rio, em 1974 e do primeiro ato da Crônica de uma Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, montagem de Gabriel Vilela, que vi na semana passada.

Não consegui me livrar do fim aberto de Don Delillo, em Ponto Ômega, do conto do ladrão honesto de Ian McEwan, em Solar, nem do ataque comanche de Cormac McArthy, em Meridiano de Sangue, que me obrigou a visitar o velho Houaiss por várias vezes, com suas herméticas espécies vegetais do Novo México: mimulus, opúncias e zigodenus. Reminiscências de minha recente mania de ler velhos autores desfolhando a velhice, para remediar a minha própria degenerecência.



Quero mais dessas memórias: pretendo conhecer o médico artificial de Michio Kaku (sou do tempo do Azimov), assim como a telecinesia do doutor Michellis movendo, não apenas pessoas tetraplégicas, mas também móveis e eletrodomésticos com o pensamento, como em O Exorcista, de Willian Friedkin.


Meus médicos em carne e osso já são praticamente digitais, é verdade: pedem e lêem exames clínicos, e raramente usam as próprias mãos em suas intervenções, cada vez menos cirúrgicas. Quanto mais tecnologia, melhor, embora nada substitua a criatividade humana: nosso último especialista ficou de operar uma pessoa da família, no Hospital São Luís, às 19 horas, mas avisou, momentos antes, que não viria porque o procedimento não tinha sido aprovado pelo convênio da paciente.


A internação tinha sido autorizada às 14 horas e a pessoa só não tinha sido transferida, do pronto socorro para um quarto, porque o hospital não tinha leitos disponíveis. Desmascarado, o doutor atribuiu o forfait a um engano de sua secretária. Dias depois desse episódio, o respeitado Incor foi flagrado reservando leitos do SUS para pacientes de convênios particulares: “Erramos de hospital”, pensei comigo. E me recordei de meus tempos de moleque, quando os hospitais eram o único ambiente que me trazia alguma paz.


Não há de ser nada: entre as memórias que pretendo colecionar no futuro, quando voltar a ser garoto, graças à Engenharia Genética, 95% das doenças comuns terão sido varridas da face da terra, assim como os pesadelos, que já não exigirão pastores e bispos para serem dispersos, porque poderão ser gravados e revistos, numa tela de papel digital, a caminho do trabalho, no conforto de um auto-elétrico movido a fotossíntese artificial, sem motorista, é claro, por razões de segurança.

3 comentários:

  1. Beto, li o texto do companheiro inaciano Jabor e também gostei. O seu ficou melhor. As referências se confundem com as minhas, a despeito da diferença de idade. Hoje, embora a tecnologia nos atropele, a garotada bebe detergente envasado em caixa de Toddynho. Nós éramos mais felizes bebendo Crush e Guaraná Caçula antes da sessão no poeirinha Cachambi, hoje uma loja de móveis.

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  2. Pois é, compadre, a diferença de idade não é mais a mesma. Na minha próxima visita, faço questão de conhecer essa loja. Abraço de sempre.

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  3. Mais um belo texto. Estava com saudades. Dos textos, do amigo e do Mengão vencer seguidamente. A semana promete. Parabéns ao novo estreante do bando de gordos. Tenho uma simpatria especial pelos gordinhos...

    Victor Esteves

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