No país dos encoxadores e dos coxinhas, apresentadores de TV
carregam vasos de cemitérios e anônimos surrupiam placas de bronze que ornam
jazigos dos arquitetos da cultura nacional. Salve Monteiro Lobato. Do lado de
fora, assassinos em série depositam pedaços de suas vítimas em sacos de lixo
(Narizinho, Rabicó, Pica-pau) enquanto as masmorras dos castelos do reino
seguem incapazes de deter os saqueadores do tesouro nacional. Neste mundo, não
há humanos, mas, sim, monstros, que são absolutamente normais. O homem do tempo
é um guarda-chuva e a moça do telejornal tem um olho só.
O sujeito das laqueaduras pagas pelo SUS (Asdrúbal Bentes, PMDB-PA) aparece ao lado da
Rainha, antes de deixar o Castelo para cuidar da própria beleza, como pintar o
cabelo da cor das asas da graúna, a la Iracema. A louraça de Jandira (Anabel Sabatini, prefeita) se
alimenta da merenda das crianças e o alcaide da aldeia vizinha (Gil Arantes, Barueri) confisca as sementes
dos pais, que trabalham duro no campo (kits de material escolar custam o dobro do preço na papelaria). Na floresta, soam as trombetas,
raposas e javalis correm para seus esconderijos. Que monstro me mordeu? – Como
é que o Cao Hamburger e seus convidados vão encarar o roteiro de sua nova série
educativa? – Tenho um amigo de três anos que usa o tablet do pai, enquanto o
meu, passa a maior parte do tempo desligado.
Edílson não paga a pensão e é preso, o Capetinha. Ganham tão
pouco, os nossos bobos, que seus parentes mais próximos precisam enganar os
coletores de tributos e, de sobra, as camareiras que rondam os jardins de seus
palácios. Miss Brasil World Cities (Michele Martins), tem fuzil, carabina ponto 30 e bala de
metralhadora. Mas a piada do dia é o retiro espiritual do Arauto do Rei em terras
longínquas, além da cordilheira. Lá não tem rinha de galo, mas os cartéis vivem
se engalfinhando: cuidado, amigo.
Na brisa do outono, as árvores se aquietam, já não andam
mais, nem voam pela cidade, fustigadas pelo tempo. O ar nos transformou em pequenos
deuses, seguidos por nossas sombras azuis. Mas não há mais trapezistas, nem
vendedores de sorvete em lata, quebra-queixo ou amoladores de facas assobiando
pelas ruas. Nem alpinistas escalando edifícios, nem caravanas do circo, com
tigres enjaulados e mocinhas indianas sobre elefantes enormes, e palhaços
montando camelos, altivos e modorrentos. Já não existe esse tipo de notícia,
que costumava encerrar os telejornais da noite.
Os malucos que pintavam listras de camisa sobre o próprio
corpo e usavam meio melão na cabeça, para viajar até Venus em sua ilusão super-sport
(e que inventaram o amor) foram substituídos por outros, que saem nús, para
matar, a tesouradas, os namorados de suas mães (Avenida Alessandro Marchió,
Mineiros-GO). Não há mais procissões, nem enterros. Talvez por isso, os túmulos
estejam abandonados. Nossos mortos, que costumavam assustar e criar causos para
o Rolando Boldrin contar às crianças, já se foram, desta para outra melhor:
estão mortos, mas não são estúpidos.
O Mágico de Oz promete iluminar e aquecer a Europa, ouço
dizer. Parte do Acre (trocado por um cavalo) e de Rondônia foram entregues à
Bolívia, também escuto. Coisa do rio Madeira e seus igarapés, que resolveram se
rebelar, como aquelas rãzinhas que atrasaram a construção de Santo Antonio e
Jirau. De seu Lugar Incomum, a ex-vj Didi Wagner mostra a Vitória da
Samotrácia, no alto de uma escadaria no Louvre, mas as notícias dizem que, em
Vitória da Conquista, foi inventado o rodízio do ensino, por falta de carteiras
na escola Fidelcina Carvalho Santos. Uma coisa é uma coisa, mas não é bem assim.
Na luz da manhã, parte da boa gente da vila se reúne em
torno da pista do aeroclube para ver o Padre Mutante voar. Ele ajeita seu
engenho na cabeceira da estrada, suando – passou ali toda a noite – e saúda o
sacristão, que chega puxando uma bezerrinha malhada, que Seu Francisco acaba de
doar ao experimento: dois homens ajudam a ajeitá-la na gaiola de madeira
colocada entre as traves da passarola, um tanto incrédulos. A bichinha não geme,
mas seus olhos arregalados denotam medo, e surpresa.
As pessoas não têm medo, ao contrário: algumas levam balões
de borracha, reco-reco e cataventos em varetas de bambú, apropriados à ocasião,
além de garrafas de soda e pedaços de serpentina: querem que a coisa vá bem. O
padre experimenta os varões das duas grandes asas de pano, testando sua força,
e mexe no assento do eixo que se ergue sobre o triângulo das rodas de
bicicleta. Examina a tensão da corrente, esfrega as mãos nas calças manchadas
de graxa e se afasta alguns passos, admirando a própria obra: tudo pronto.
A pequena multidão sacoleja e logo silencia. O padre ajeita a passarola
na cabeceira da pista, mira o horizonte e monta no selim. Começa a pedalar com
esforço, e se precipita na média distância, ajudado pelo vento de popa; pedala
mais rápido e se afasta. A uns cem metros dali, a geringonça levita um
instante, e se alça no ar, como se tivesse perdido todo o peso, as grandes asas
brilhando no sol, as pernas finas da bezerra penduradas no ar. O povo hurra,
feliz, como se cada um tivesse criado um pedaço da engenhoca.
Lá longe, um vulto escuro despenca do pássaro de madeira: uma
cesta virada ao contrário, com alguma coisa pendurada. O padre se precipita na
mata, mais rápido do que se poderia esperar, visto àquela distância. As pessoas
se mexem, desajeitadas, esticando o pescoço. Depois de algum tempo, ele aparece
pequenino, na outra extremidade da pista, acenando com o que sobrou da camisa
que usava quando subiu pelos ares. Da passarola, nem sinal.
Algumas milhas dali (quilômetros não funcionam nesse tipo de
história), um moço que voltava da roça – porque tinha esquecido de levar a cabaça
de água – ouve um mugido solene, vindo de uma moita de capim. Afasta o mato, e
vê a bezerra malhada, uma das patas presa nos restos da gaiola de madeira.
Quase sem acreditar, ele afasta as ripas que impedem o bicho de se por de pé, e
percebe que ela está bem. Olha e agradece ao céu.
Pouco depois, o moço marcha feliz, puxando a vaquinha pela
corda, pensando no leite e nas compras que fará com o produto da venda, dias à
frente. Inflação, nunca mais. Ele vai juntar dinheiro, e comprar uma pick-up tracionada,
não vai mais andar a pé. Na pick-up, vai poder levar o seu milho e a sua cana
até o celeiro do Seu Asdrúbal, chefe da cooperativa local. Vendo o seu progresso,
o homem vai tratá-lo com respeito, e talvez até lhe empreste o trombone que jaz
abandonado no canto de sua sala. Com esse instrumento, o moço poderá ganhar mais alguns
trocados, tocando nas festas das fazendas vizinhas.
E foi pensando nisso que o moço veio parar na feira da vila,
levado por seus passos e sonhos, até encontrar o sujeito que acaba de lhe
oferecer, pela bezerra, uma nota de cem e mais um punhado de feijões mágicos,
vindos do TCU, que, segundo o cidadão, ele deve plantar perto da cerca, para,
dentro de mais alguns meses, poder subir, pela árvore mágica que terá brotado
alí, até a terra dos gigantes, onde vai encontrar uma galinha mágica, capaz de
botar ovos de ouro e resolver todos os seus problemas para sempre.
Muito bom! Vou compartilhar...quem sabe mais algumas pessoas tenham o prazer que tive ao ler.
ResponderExcluirOlá, Francine. Você é uma querida. Muito bom, ver você por aqui. Obrigado por compartilhar o post. As pessoas não costumam postar comentários, por falta de tempo, acho. Bjs.
ResponderExcluirBelo naco de poesia nessa aziaga. Alguem que usa a palavra fustigada merece leitura e atenção. Além do que, que ritmo o seu texto! Parabéns saudoso
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