quarta-feira, 19 de março de 2014

Entre a dor e o nada

Bruna Linzemayer, protagonista da nova novela das seis (Foto Divulgação)
 
Enquanto o Ruy Castro escrevia a sua crônica desta segunda-feira, (FSP,17/3), falando do homicida exibicionista que matou a namorada de 14 anos e postou foto do rosto desfigurado da moça numa rede social, o Wladimir Putin se preparava para "anexar a Criméia", apoiado por milícias locais enfurecidas, envergando um nacionalismo com cheiro de naftalina. Horas depois, três PM cariocas – dois com patente de suboficial – matariam a tiros uma pobre senhora da favela da Congonha, no Rio, Cláudia Ferreira, arrastada pela viatura ocupada por eles, como num filme de Ridley Scott sobre traficantes mexicanos.

Um cinegrafista amador gravou as imagens sem as quais, os nossos trogloditas jamais se dariam conta da desumanidade de sua própria violência.

Estive com meu pai de quase 90 anos, no último fim de semana. Em sua cabeceira, além daquele volumão do Fernando Morais, “Chatô” e do último livro do Mário Prata (saudades de você, Ruth), “James Lins” (abandonado), encontrei “Os Sermões”, de Vieira, e sua leitura mais recente, “Uma Prova do Céu”, de Eben Alexander III, o neurologista harvardiano que, durante um coma, afirma ter batido às portas do paraíso, assim como o Bob Dylan, o Axl Rose e o Zé Ramalho (Knocking on havens door). Na música, Dylan pede à mãe que lhe tire o distintivo (badge) - ele não pode mais usar - assim como as armas, com as quais ele nunca mais vai conseguir atirar.
No Rio, o advogado Marcos Espínola, que defende um dos PM acusados pelo homicídio e maus tratos à auxiliar de Serviços Gerais Cláudia Ferreira, sargento Alex Sandro da Silva Alves, ajuizou ontem (18/3) um pedido de liberdade provisória para seu cliente. "A pena prevista no crime militar pelo qual os policiais são acusados vai de 3 meses a um ano de detenção”, argumentou. “Ou seja, mesmo que ele seja condenado, não ficará na cadeia. Por isso não há motivo para mantê-lo preso preventivamente."

Enquanto o meu velho calcula suas chances (boas) de alcançar o paradesha, também conhecido como Jardim do Éden, decidi voltar a Cormac McCarthy, The Road (“A Estrada”- Prêmio Pullitzer de 2006), por ter lido, há pouco tempo, a novela mais badalada do autor, Blood Meridian (“Meridiano de Sangue”-1985): “A Estrada” tem sido o meu breviário, nos últimos dias. Em adição a isso, nos finais de tarde, em vez de dar uma volta pelo pátio do mosteiro, tenho assistido de três a cinco minutos de Datena (não dá para suportar mais que isso), tudo visando enfrentar a realidade do mundo que nos cerca.
Antes de dormir, cinzas, frio, fome. Mergulho nas paisagens desoladoras de McCarthy, onde pai e filho, sobreviventes de uma guerra nuclear, arrastam um carrinho de supermercado, com suas parcas provisões, perseguidos por um bando de canibais: “Vultos enlameados de cidades inundadas até a linha d’água”. “Luz de cor de água suja se petrificando nos vidros imundos da janela”.

McCarthy tornou-se mais conhecido, no Brasil, depois que seu No Country for Old Man (“Onde os Fracos Não Têm Vez”) chegou à telona, mas o texto impecável do artesão, bem como a sua estética apocalíptica são reconhecidos, nos Estados Unidos, desde quando “O Meridiano” entrou na lista dos então 100 melhores romances de língua inglesa da Time e do New York Times de 2003. Harold Bloom referiu-se a esse livro como o maior romance norte-americano depois de As I Lay Dying (“Enquanto Agonizo”), de William Faulkner, pai dessa geração que sucedeu o Newjornalism (Norman Mailler, Truman Capote), também formada por Phillip Roth, Don De Lillo e Thomas Pynchon. Desculpem o tom de resenha.
O meu primeiro Faulkner foi The Wild Palms, (“Palmeiras Selvagens”-1939), história entremeada por outra, The Old, “O Velho”, que tem, como pano de fundo, uma enchente do Mississipi: durante um traslado de caminhão, numa fazenda penal, um detento é arrastado pelas águas. Depois, tenta, desesperadamente, voltar ao presídio, único espaço que lhe dá sentido. Sempre que consegue chegar perto de algum lugar, na tentativa de ajudar uma mulher grávida que encontrou no rio, é afastado a tiros, por causa do uniforme da colônia penal. Aqui, em São Paulo, minha rua, a Roque Petroni Júnior, enche quase todo dia. “A mãe natureza, diante da qual o homem se move incerto sobre uma casca de noz”.

A personagem do livro (ou o personagem, como preferirem) consegue, por fim, fazer o parto da mulher grávida numa ilhota onde os dois tentam se proteger da enchente. Quando, finalmente, o homem consegue se entregar à polícia, celebra os 10 anos adicionais de pena recebidos por “tentativa de fuga” e um charuto que ganhou de presente do diretor da prisão. Alguma semelhança com a nossa realidade?
Estou sendo muito americano, na minha amargura? – Pode ser. Tentei a moça de “De Gados e Homens” e “Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos”, mas encontrei Tarantino e Sérgio Leone. Procurei o Dostoievsky que alguns críticos afirmam ter visto passeando por esses textos, mas a minha bateia deve ser muito rasa. Foi divertido, Ana, mas eu passei pelo Tropicalismo quando  jovem. Um pré pós-modernismo. Ouvir Caetano, aliás, me faz bem, e Chico. Contudo, o segundo movimento do Concerto em Fá Maior do Bach, em alguns momentos, pode ser melhor. Ou, na definição do filósofo Nelson Rubens, “diferente”, pensamento sujeito à ressalva de outro filósofo nacional, o Juarez Soares: “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Como não possuo (mais) nenhuma motocicleta de 500 cilindradas para cruzar as avenidas desertas do planalto central, à noite, disfarçado de mandatário(a) da República, só assim tenho conseguido alguma paz.
Da produção brasileira voltada ao nosso tema, a solidão, aguardo a estréia de “Um Homem Só”, produzido pela bela Mariana Ximenes, que faz o papel de uma gerente de cemitério de cachorro. Cheguei a pensar que essas obras  – “O Cheiro do Ralo” (romance de Lourenço Mutarelli), “Amarelo Manga”, “Baixio das Bestas” (filmes de Cláudio Assis) – há muitas outras – me cansariam, pela insistência do tema. Devem ter estimulado a criação de “Meu Pedacinho de Céu” (de Benedito Ruy Barbosa), nova novela da Vênus Platinada, mas não, não me cansaram. A nossa verdade tem cara de jornal Extra, foto de caixão e contraste em branco e preto.

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