Na semana mais agitada de minha história recente, duas
frustrações vieram juntar-se ao meu currículo, ambas relacionadas a mudanças:
uma, de proporções homéricas – o
resultado das eleições (eu torcia pelo outro lado); outra, doméstica – a patroa
foi embora, cuidar da transferência da minha sogra para um apartamento, no
interior. A gente briga o tempo todo, eu e a patroa (a sogra é uma santa) mas,
sem ela, eu, que já fui um vira-lata, desses que correm atrás de qualquer coisa
em movimento, viro um cérbero,
aquele cachorrão do Hades, que
acabou casado com uma Quimera.
A minha agenda lotada incluía uma análise de menções a uma grande empresa nas redes sociais. Era um trabalho pesado, mas que me trouxe alguma
adrenalina. Depois dos sessenta, você não sente isso com frequência, assim como
algumas outras sensações. As planilhas tinham links para os posts
capturados pelo monitoramento das marcas na Internet. Vi coisas sensacionais,
como a frase de um trabalhador numa das indústrias do cliente, “Bora fazer
panetone” e outra, de um sujeito prestes a ser entrevistado para uma vaga de
emprego: “Amanhã entrevista na empresa xis; c deus kse vai da tudo serto”. Claro que se eu fosse do RH da firma
e lesse essa mensagem antes da entrevista, bye bye vaguinha.
A Internet tem essas coisas. Quando eu saía para uma
reportagem, nos anos setenta, passava pelo departamento de pesquisa da empresa
e recolhia duas, às vezes cinco, ou até dez laudas de material de apoio (laudas
era como se chamavam as folhas datilografadas e/ou xerocadas, na época). Ia
estudando o assunto, no carro do jornal, da redação até o local da entrevista.
Hoje, com dois clics, você está dentro do tema, da história do jazz – essa manifestação artístico-musical
que nasceu em New Orleans, ou Chicago, ou New York, no início do século XX
(segundo o site de busca) – até a culinária.
No último domingo, aliás, fui para a cozinha (restaurante, a
toda hora, não dá) tentar a sorte numa carne de sol com queijo de coalho e mousseline
de aipim. Que aipim e mandioca são a mesma coisa, eu já sabia, mas
aprendi na Internet que a carne de sol
tem que ser feita na sombra; que o charque era uma carne salgada transportada
por tropeiros em baixo da sela de mulas,
no século XVIII. E que mousse, em francês, não passa de
espuma. Não importa, na minha opinião, desde que seja de chocolate.
De quebra,
fiquei sabendo que a carne de fumeiro,
uma variação defumada da carne de sol, tem melhor sabor quando feita pelo
método artesanal, mantida a uma distância mínima de 40 cm do braseiro (para não
ser contaminada de alcatrão) e a uma temperatura máxima de 100 graus, para não
se encher de hidrocarbonetos
policíclicos (fumaça tóxica).
Tem o processo industrial, que usa hidrogênio e corante, mas
isso não me interessa. Aprendi com o Michael
Pollan, um americano maluco por cozinha que fez sucesso na última Flip (Feira Literária de Paarati), que
nada se compara ao prazer de cozinhar a própria comida, cujos ingredientes você
tem que saber de onde vêm.
Quem também fez sucesso na Flip, há dois ou três
anos, foi aquela moça, a Ana Paula Maia,
que escreveu “De gados e homens”. A
Folha caiu matando na coitada: o
crítico usou Camões para dizer que
ela falhou, no engenho e na arte.
Essas coisas não se deve espalhar
por toda a parte. O cara foi muito além
da Tapobrana, que eu sempre me esqueço onde fica.
Não achei o livro assim tão ruim. Tem umas colagens
de violência que o Quentin Tarantino
trouxe até as pessoas da geração da autora. Mas quem gosta de carne, se
impressiona: a história se passa num abatedouro, você sabe como é. Só que eu
sempre achei o máximo aquela frase do Torquato
Neto, espécie de tio do Caetano
Veloso e padrasto do Raul Seixas
(para você, que está chegando agora): “Leve um homem e um boi a um matadouro.
Aquele que berrar é o homem, mesmo que seja o boi”. Com fome, aliás, eu como
até o tutano do bicho.
Por falar nisso, você conhece aquela frase, dizendo que quem não foi comunista, antes dos trinta,
não tem coração? – Concordo que depois dos trinta, a central de utilidades endurece um pouco, mas o cérebro continua
alí: - Afinal, você deixou de ser
comunista. Mas, para mim, quem continua jornalista depois dos sessenta,
como eu, precisa de terapia.
Gasto o meu tempo livre lambendo as próprias feridas: um beethovenzinho aqui, um Randy Newman acolá, um sonzinho do Tommy Dorsey para curtir um livrinho, uma
goiabinha em calda como a que acabo de preparar, a palestra sobre A Inveja no Café Filosófico da TV Cultura, uma espiada na mostra de Salvador Dali. Se dói? Nada. Gasto
dinheiro? Tampouco. Depois dos sessenta, você pode não funcionar tão bem, mas
entra de graça num monte de lugares.
Claro que poderia preferir um Zezé di Camargo e Luciano, com suas rimas fáceis e melodia suave,
“primeira voz, segunda voz, tremidinha no final”, mas prefiro ver os dois no
artigo do Gustavo Amendola que saiu
no suplemento cultural do Estadão de sábado, falando da separação do Zezé e da
Zilu: “Deu a louca no sertão”. Mais
divertido. A frase de Zezé para justificar a separação: “Cavalo velho gosta de
capim novo”. Reação da namorada jornalista (mulherão) à frase que definiu a ex
como velha e feia e comparou a nova a um tipo de pasto: “Fiquei até
emocionada”.
Se você sugerir esses produtos
daquilo que o filósofo Theodor
Adorno definiu – pejorativamente – como
indústria cultural, em oposição
ao que o seu colega da Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, chamava de cultura de massa, vão achar que você
pirou. Como? – Coisa de elite branca.
Se o Lula ficar sabendo, você vai para a fogueira. Queimar livros,
aliás, é a brincadeira que ditador adora: o Hitler, o Mao. Stalin fazia pior: queimava as pessoas
e depois, mandava apagar das fotografias. Dois ou três caras, numa foto imensa,
cercados por um monte de sombras. Tenebroso.
Mas, mesmo numa semana atribulada, cheia de problemas e
frustrações, descobri que a Mostra de
Cinema de SP estava quase no fim. Entrei na Internet – olha ela aí, de novo
– e, pronto: troquei três horas de dois fins de tarde, um início de noite e um
sábado por algum trabalho fora de hora e pude ver quatro filmezinhos supimpas, como se dizia no tempo do meu
avô. Só vou falar sobre um deles, Leviatã,
de Andrei Zviaguintsev, que ganhou a
palma de Cannes de Melhor Roteiro e
o prêmio da Crítica da Mostra paulista.
Se você puder, não deixe de ver: além do “melhor roteiro”
(amizade, paixão, sedução, adultério) e da fotografia brilhante, o filme é um
grito de socorro do povo russo mostrando como a corrupção pode corroer os
costumes sociais a ponto de aniquilar seus indivíduos (seres humanos). Tudo
isso, envolvido numa deliciosa calda de clichês:
vodka, mulher bonita e um piquenique com tiro ao alvo, usando a arma-símbolo do
país, o velho AK-47, que os nossos
traficantes adoram. Foi uma catarse.
Melhor que isso, só se na sala do prefeito corrupto, em vez do retrato do Putin, tivesse uma foto do nosso ex-presidente
paz e amor.
Entender “a mensagem” desse filme foi como devorar um
inimigo. Assim como dá trabalho ver a mostra do Salvador Dali, quando você também respeita o Picasso e o Goya, mas
cultua Velazquez. Eu sempre gostei de Don Quixote, de Cervantes,
mas o meu personagem espanhol preferido é o Marques de Carabás, do francês Charles
Perrault, um macunaíma espanhol, se isso fosse possível. O melhor da história
de Perrault é o momento em que o parceiro de Carabás, o famoso Gato de Botas, desafia o bandido, um
leviatã em forma de leão, a
transformar-se em ratinho, e logo depois o devora. Ambos são bichos, mas o
final não podia ser mais antropofágico.
Não me diga que não dá para consumir cultura. Eu sei bem o que é acordar cedo, pegar condução lotada
e trabalhar como um boi para pagar a faculdade. Mas se você conseguiu ver todos
os filmes da série Crepúsculo, o novo Drácula e o Homem Aranha, também se pode
achar um tempinho para ir ao museu; vez por outra, ao teatro, e arranjar um
trocado para comprar um bom livro ou ler um jornal, de cabo a rabo. A internet pode
muito bem, em vez de emburrecer,
ajudar. É como aquela frase de anúncio de banco: “Tecnologia a serviço do
homem”.
Aqui mesmo, neste artigo, se você usar todas as palavras grifadas
em seu site de busca, como um videogame, ou um Jogo de Amarelinha (Cortazar),
e entender o significado de cada uma, terá muito a ganhar. Recolha ponto por
ponto e vá saltando as estações, de baixo para cima, passando do inferno ao
purgatório e terminando lá em cima, no título, ou na conclusão que ele sugere e
descubra que cultura, acima de tudo, é uma questão de hábito.
(*) Artigo feito para a revista Circuito Cultural, que
serviu como Tese de Conclusão de Curso (TCC) de formandos da Faculdade de
Comunicação Social da UNIP (2014).