O frio me deu preguiça. Mas tenho que catar uns cavacos para
o fogo, e subo o morro, onde ventos da Patagônia me trazem a última invenção de
dona Cristina Kirchner, que não tem 78 ministérios, como sua vizinha, mas acaba de inventar um que, solito, vale por todos, sendo merecedor do
nosso Prêmio George Orwell 2014: o Ministério do Pensamento. Tem a tarefa inefável
de “estimular a percepção do ser nacional”, exaltando os “valores patrióticos”
e criticando a subversão. Além, é claro, de patrocinar uns copos, pelos
próximos meses.
Eu queria estar na pele do Ricardo Forster, escolhido para o
cargo. Diversão prá valer. Bem melhor do que a missão de Manuel Dorrego, que foi
designado pela presidenta (Kirchner) para dirigir o recém-criado Instituto Nacional
do Revisionismo Histórico Argentino e Ibero-americano. Só de photoshop para
corrigir o estrabismo e as poses desengonçadas do marido, Néstor – que Deus o
tenha – serão dias, talvez, anos.
O tal instituto também deve ser encarregado de revisar os
títulos das obras do inspirador do casal, Juan Domingo Perón: “Moral
Militar”, “Higiene Militar”, “Campanha do Alto Peru” e “Estudos Estratégicos da
Frente Leste da Segunda Guerra Mundial” – todos do tempo em que ele tinha apenas uma patente de capitão. E de providenciar
uma vitória na Guerra das Malvinas.
Também pode arranjar uma origem campesina para o Che, já que a versão corrente, de médico e banqueiro bem nascido, não pega bem. Carlos Gardel vai obter uma nova certidão de nascimento, num cartório da Boca. E, claro, o Instituto vai obter provas contundentes de que o gol de Maradona contra a Inglaterra, na Copa de 86, foi de cabeça.
Também pode arranjar uma origem campesina para o Che, já que a versão corrente, de médico e banqueiro bem nascido, não pega bem. Carlos Gardel vai obter uma nova certidão de nascimento, num cartório da Boca. E, claro, o Instituto vai obter provas contundentes de que o gol de Maradona contra a Inglaterra, na Copa de 86, foi de cabeça.
Já o ministro do Pensamento pode se divertir montando um interessante organograma: Secretaria do Raciocínio Lógico; Gabinete de Inspirações Utópicas; Divisão de Abstrações Transcedentais, Departamento da Lateralidade, Assessoria de Funções Corticais. A Delegacia
dos Insights constituiria uma rede de postos de criação coletiva, inspirados no decreto
da presidente Dilma Rousseff, que instituiu, no Brasil, os Conselhos de Consulta Popular: tudo para alimentar a pipe line da imagética nacional.
Eu convidaria o ex-papa Bento XVI a indicar um inquisidor –
durão – para comandar a Procuradoria dos Pensamentos Impuros. Ainda por parte da Igreja, o Padre Quevedo, da Parapsicologia, seria o Diretor de Telecinesia,
aquele tipo de pensamento que move objetos e espeta agulhas no corpo de
videntes, e que inspirou filmes famosos como Carrie, a Estranha, O Exorcista e
O Bebê de Rosemary. O Paulo Coelho seria o publisher da Editora Nacional do Pensamento Positivo, responsável pela impressão e distribuição de livros de autoajuda por todo o território argentino.
A gestão do espaço físico do Ministério do Pensamento não pode ser desprezada: sala das tempestades cerebrais, pérgola das elucubrações sedimentares, escritório da eloquência verbal, cabine de flashes cognitivos, laboratório
de questionamentos incidentais, sala de introspecção exploratória, jardim do ócio criativo (inspirado nos quintais da Microsoft e do Google), espaço (wide open) do livre pensar , além, é claro, do salão das Verdades Absolutas. Nem o
grande Timoneiro (Mao), com a revolução que levou ao Massacre da Paz Celestial, há 25 anos, teria denominações tão sugestivas.
Ao definir os processos de trabalho da instituição, eu levaria
mais tempo:- Idealismo Transcendental e Dúvida Metódica: Pragmatismo? – O fluxo
operacional seguiria uma estrutura linear, partindo de um Romantismo Aplicado, com Goethe, passando rapidamente pelo Iluminismo, com Molière, e pelo Niilismo, com Dostoievski, para chegar a um Existencialismo sartriano, mais conveniente à estruturação do pensamento argentino de hoje, convenhamos.
Alguns expedientes poderiam incluir métodos de Hegel e Kierkgaard, para adotar, em seguida, uma filosofia religiosa inspirada na teologia da libertação, no zen-budismo ou na Cabala. – Fossem quais fossem as diretrizes do órgão, as escolas teriam que oferecer disciplinas instigantes, como Física Quântica, Cientologia e Estudos Avançados no Preparo de Poções. Mas o papel de impressão teria que continuar sob controle do Estado.
Os adolescentes passariam por espécie de Enen do Pensamento, onde teriam que ficar
comprovados conhecimentos dos gregos antigos (Heráclito, Zenon), além de Platão e Aristóteles; Locke, Newton, Darwin, Montesquieu, Hobbes, Rosseau, Hegel, Nietzche, Kierkgaard, Shopenhauer, Adorno e Benjamin.
Também não saberia dizer se, nos processos de criação, o
método adotado como padrão pelo ministério seria artístico ou científico. Sei que, na Música, não valeriam gêneros exóticos,
como o funk e a lambada, mas o jazz clássico e o erudito seriam
tolerados, além do tango, claro. O problema seria como classificar Gato
Barbieri e Piazzola? – Mas essa transversalidade ficaria a cargo do Instituto do Revisionismo
Histórico.
O ministério teria que definir um método transparente de
aprovação e subsídio às artes teatrais e produções cinematográficas. O conteúdo
teria que ser, necessariamente, mais
denso do que das peças atuais, exceto nas criações ligeiras tipicamente argentinas, como o CQC. Não
sabemos se Miguel Puig, Babenco e o Fernando Meligeni seriam tolerados como parte da cultura nacional, depois de terem virado a casaca.
De uma coisa, estou certo: piadas de argentino – como a do
sujeito que ficou milionário comprando um hermano pelo preço de sua
autoavaliação e vendendo depois, por seu valor real, – estarão terminantemente proibidas.
Imagino com que ânimo Don Jorge Luis Borges encararia o tal
Ministério do Pensamento, ou Julio
Cortazar, que, por muito menos, foi viver em Paris. Ou morrer por lá, como ele
próprio teria dito. Ao saber da novidade Ernesto Sábato, certamente, assoviaria
um tango e se meteria no primeiro bordel que achasse, onde estivesse. Mas e os
outros? – San Martin, o herói da independência, Martin Fierro, a base de tudo, Mercedes Sosa, a cantante, o campeão mundial de box, Carlos Monzon, o pessoal do tênis – Vilas, Gabriela Sabatini - e
os cineastas, Campanella, Bemberg, Burman (O Segredo de Seus Olhos, Camila,
Abraço Partido).- Como essa gente encararia o seu novo arcabouço institucional?
Nada fácil. E você, que andava resmungando diante do
besteirol de praxe, agravado pelo súbito bom humor da sua presidenta, que
resolveu citar Nelson Rodrigues fora de contexto, como numa entrevista para a Contigo (“a pátria de calção e chuteiras”) deve estar comemorando a notícia. Mesmo depois
de ter visto, pela TV, as palmadinhas carinhosas do Renan Calheiros em nossa
ídola Xuxa, de ter sofrido com a falta de água, de luz e de sinal, com a greve de metrô, e
com os protestos dos sem teto contra a prática do aluguel (eu apóio).
Mesmo que o Brasil não ganhe a Copa, agora, você tem um consolo: na
Argentina, tudo pode ser muito pior.
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