sexta-feira, 18 de julho de 2014

Orientação


José Raimundo de Souza*, o Zé, nasceu em Campina Grande, na Paraíba, há 48 anos. Veio para São Paulo aos 16 e se empregou como auxiliar na construção civil, como tantos outros parceiros de viagem. Manteve um restaurante de comida mineira por oito anos sem nunca ter visitado uma cidadezinha sequer de Minas Gerais. Fica perto do Morumbi Shopping, “um dos mais prestigiados de São Paulo”, como informa o folheto de vendas do condomínio Rochaverá Corporate Towers, também vizinho do centro de compras, do lado oposto, sede das tetracampeãs Basf e SAP e do laboratório Fleury, tão prestigiado que está sendo comprado pelo Fundo Gávea, de Armínio Fraga, ex-funcionário de George Soros.

Atualmente, o Zé toca uma borracharia de reparos sofisticados chamada Kauê Boutique dos Pneus, em frente ao prédio de seu antigo restaurante. A cem metros, num espaço situado entre a sede da Oracle Corp e um prédio de advogados de alto coturno (em frente ao hotel Blue Tree, do grupo Accor), ele opera, das cinco da tarde às onze da noite, uma barraca  de churrasco de gato. Tem uma lona "profissional" para os dias de chuva – hoje tão raros – e uma outra, que ele costuma estender no chão, antes de montar  as suas cinco mesinhas, sem magoar o triângulo de grama de 120 metros quadrados que nós, do bairro, resolvemos chamar de pracinha.

Conselho do Zé, escaldado em várias ações trabalhistas que lhe tiraram tudo, menos a vontade de viver: “Não tenha nada em seu nome”. Entre a borracharia e o churrasco de gato encontra-se, por enquanto, a sede da Honda. Dizem que vai mudar. A cinquenta metros, um novo empreendimento da Odebrecht, que vai combinar edifícios comerciais inteligentes e prédios residenciais.  A obra ainda está no chão, exatamente como aquele viaduto que caiu em Belo Horizonte, mas isso é maldade minha. A área da construtora termina na famosa rua Henry Dunant, do consulado norte-americano. Por ali convivem cerca de 10 taxistas que pegam o rabo da fila do shopping. Foram expulsos da ruazinha da praça por urinar na calçada, à vista dos moradores dos edifícios erguidos no local.

Além de uma confecção de artigos de couro e algumas casas hoje habitadas por ambulantes, aposentados e trabalhadores da construção civil, sobrevivem, nas ruas próximas, dois prédios de três e quatro andares: um, ocupado por uma empresa importadora de cristais; outro, por uma fábrica de biscoitos. Entre as residências que sobraram nessa antiga zona fabril de Santo Amaro, cercadas por altos empreendimentos imobiliários, encontram-se: um consultório médico de aparência duvidosa, uma casa abandonada, um salão de beleza e uma pet shop, como se chamam atualmente esses banhos públicos de cachorros que também oferecem consultas veterinárias e bugigangas voltadas a esse mercado.

O perímetro é completado pela sugestiva rua do Cancioneiro Popular, ao sul, e pelas quadras do Rivelino Sport Center, ao norte. O shopping center fica a oeste. O meu escritório, ao lado da antiga fábrica da Kibon, a leste.

Andei por essa área durante duas ou três horas, ontem (17/7), seguindo as coordenadas de duas colegas que monitoravam, direto do escritório, um rastreador de um aparelho celular que, eu, na véspera, deixei cair em algum lugar, depois de sair de casa atrasado para uma reunião, com ele no teto do carro.  O GPS começou indicando um ponto perto de onde eu moro, na esquina ocupada pela tal importadora de cristais.

Identifiquei a empresa e telefonei imediatamente. A moça que me atendeu, muito simpática, não sabia ser possível rastrear aquele tipo de celular por satélite: "Já perdi três", informou. Fiquei feliz em transmitir o pouco que sei a respeito. E contei minha história. Ninguém tinha achado um telefone, assim, assado. O ponto indicado pelo rastreador mudou de direção, aparecendo no meio de uma das quadras de society do Rivelino. Corro para lá. Ao chegar, sou informado de que o ponto já mudou novanente de lugar: agora, está no fosso que separa as quadras da rua dos fundos. Um instrutor cujos alunos estão atrasados me segue. Procuramos no mato em redor, em vão.

Nova mudança de rumo: segundo o satélite, o aparelho, agora, está na rua que passa ao lado de onde eu moro. Indago a um desabrigado que ataca a sua quentinha, sentado na sarjeta, com promessa de recompensa, caso ele, por acaso, tenha encontrado o meu telefone. Nisso, a indicação passa para a obra de reforma de uma churrascaria South Place, ao lado do Rivelino Sports Center. O meu bairro é praticamente uma Flórida, em termos de estabelecimentos comerciais. Peço licença ao gaúcho para falar com os seus operários. Nada foi encontrado. Falo com os taxistas, com a dona do salão de beleza que fuma na calçada, com o segurança do prédio ao lado. Desisto.

Volto para o escritório, frustrado, pensando no Mário Sérgio Cortella, que gosta de lembrar, em suas palestras, o momento em que as pessoas deixaram de se nortear, no fim da Idade Média, e passaram a se orientar, na era das grandes navegações. Hoje, a gente se localiza por satélites. De vez em quando, eles se desmancham lá na estratosfera e caem na cabeça da gente. 

Ao observar com calma a tela do notebook que orientou a minha busca, percebo que o software de localização conectado ao aplicativo do(s) aparelho(s) via  nuvem me remete ao rastreamento de “todos os aparelhos” do mesmo fabricante, embora essa aba não seja visível, numa primeira operação: o “caminho” para se chegar até essa tela indica “busca do celular xyz”. Só então percebo que o aparelho localizado pelo rastreador, no meu caso, pode ser o primo do meu telefone, um tablet que permaneceu em meu apartamento, o tempo todo, e que, provavelmente, foi movimentado pela auxiliar que fazia a limpeza do recinto.

Posso não ser um Amyr Klink mas, pela origem que o nome denuncia, bem que eu poderia ser um navegador melhor: saber, pelo menos, que a rotação da terra e a posição dos satélites se alteram, eventualmente, além de estudar um pouco mais o sistema de rastreamento desses devices, antes de sair por aí, feito louco, indagando pelas ruas sobre um telefone perdido.

Apesar de tudo, não posso reclamar: descobri quem é o sacana que toca forró no volume mais alto, na hora da minha siesta de domingo; que atrás do Rivelino existe uma bananeira passível de fornecer folhas para um peixe assado; que o Ângelo Máximo (ex-Jovem Guarda) agora tem dois restaurantes por quilo nas costas do shopping; que o vendedor de DVDs pirata da pracinha também opera com blue-ray; que os meus vizinhos ambulantes não são receptadores de aparelhos roubados, mas oferecem capinhas de celular a um preço bem melhor que os dos quiosques especializados e que o intelectual do momento, segundo a Caros Amigos pendurada na banca da esquina, é o Guilherme Boulos, líder dos Trabalhadores Sem Teto, a quem pretendo sugerir a criação de um braço para os sem-escritórios, já que os aluguéis, por aqui, andam pela hora da morte.

(*) Nome fictício

2 comentários:

  1. Excelente texto, Roberto. Não é consolo, mas desafio: quem não teve problema sério com os embromadores dos SACs de telefonia que atire o primeiro celular. Reinaldo Ramos.

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  2. A vida dura dos trópicos, Reinaldo. Obrigado pelo estímulo. Enquanto isso, os empresários de call center vão muito bem, obrigado. O país (carga tributária etc) não ajuda, mas é o antigo vício de lucrar o máximo, com a infraestrutura mínima. Abraço grande!

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