Nas últimas semanas, fui assombrado pelo fantasma da
degenerescência. Durante muitas décadas, flertei com a prima adolescente dela,
a decadência, que inspirou o Lobão (Decadence
avec Elegance, ou ou ou ou ou ou ou ou ou); filósofos e poetas do século XIX:
uma Scarlet Johansson, amoral, langorosa e sedutora. O fracasso da utopia
humana ainda me parece a companhia ideal para um existencialista sessentão. "É
preciso estudar volapuque (esperanto)/ é preciso estar sempre bêbedo,/ é
preciso ler Baudelaire/ é preciso colher as flores/ de que falam os velhos
autores", avisou Drummond (Sentimento do Mundo, 1940).
Sempre associei o fim da estrada de pedras rolando ao
prazer do descanso: me via sendo empurrado num precipício pela cuidadora sueca com a qual eu teria
passado os últimos dias – era a minha fantasia. Mas a Medicina me ludibriou, ao
ultrapassar todas as nossas outras faculdades: a Gama Filho, a Anhembi Morumbi,
a Uninove. Os médicos aprenderam a prolongar a vida, e há quem veja, nessa ética,
além do encaixe perfeito no DNA das religiões, a mão sorrateira dos
laboratórios, interessados em preservar não apenas a vida de pacientes terminais,
mas, principalmente, as suas fontes de rendimentos, enquanto o debate entre a
quantidade e a qualidade da vida perde fôlego.
Além da controvérsia e do preconceito acumulado no conceito
de eutanásia (boa morte, segundo os radicais gregos), essa prática, no Brasil e
em Portugal, continua proibida. O debate não prospera porque os nossos outros
problemas não são poucos: a corrupção no poder público, as péssimas
infraestruturas de Saúde e de Educação, as reformas política e tributária que
não vêm, a escassa mobilidade urbana, a violência. Além, é claro, do pouco
estímulo à reflexão. Uma velha amiga me disse, na semana passada, que pretende
viver até os 100 anos, organizando seminários que ensinem as pessoas a pensar. “Boa
sorte”, pensei, sem coragem de lhe dizer assim, na lata.
Por enquanto, filósofos trabalham como guardas de presídio e
são enganados por empresárias de transportes em programas de auditório. Não é
metáfora: aconteceu no Caldeirão do Hulk, neste fim de semana.
As religiões, além de confortar as almas, têm, todas elas,
as suas próprias veredas para outros mares: bom para elas. Mas nós, pobres
ateus, esses entes humildes, em nossa hora fatal, não teremos escapatória.
Há muitos anos, conheci um homem, grande e forte, que
enxergava pessoas e conversava com pássaros e orquídeas. Não tinha medo de
serviço: depois de perder a fazenda de café para as geadas dos anos 50, no
norte do Paraná, virou mateiro do Departamento de Estradas de Rodagem de São
Paulo. Ele me ensinou a amolar facas e a conhecer as plantas medicinais, isso
nos anos 1960. Mas torcia pelo Palmeiras e a nossa prosa não prosperava. Éramos
quase rivais. Eu e seu filho, um amigo tão rebelde quanto eu próprio, na época,
nos achávamos à frente daquele homem rude e honrado, que formou os filhos com o
seu próprio suor, e algumas chibatadas que, naquela época, nos ajudavam a
distinguir o certo do errado.
Uma tora de jacarandá, o cidadão, Nelson Corá, abalado pelo tempo e pelos golpes da vida, mas sempre ereto. Doce como uma criança, teimoso como uma mula. Amado e odiado pelos filhos, como sói acontecer, nesses casos; querido e respeitado por parentes, amigos. Domou o rancor contra Deus, como Abraão do Genesis (capítulo 22), cuja disposição ao sacrifício garantiu a continuidade da espécie, a qual, de queda em queda, tinha sido praticamente condenada pelo Criador. Nelson nunca leu Temor e Tremor, de Kierkgaard, muito menos Mimesis, de Erich Auerbach. Tornou-se um dos cristãos mais fervorosos de sua comunidade, como se chamam, agora, essas paróquias católicas do interior do Brasil.
Nas últimas semanas, o jacarandá tombou. O sofrimento desse
homem, no fim da vida, me pegou de jeito, embora eu já viesse pensando no meu próprio
futuro, em face de situação análoga: - Quando virá o meu último lampejo de
consciência? - Em que momento perderei a capacidade de decidir sobre o meu
próprio ir e vir? – Como reagirão meus pares, diante de tamanho despreparo das
instituições para enfrentar o desafio da medicalização da morte, operada por
paradigmas tão distantes quanto a ciência, a ética da solidariedade e os
interesses comerciais? - Tenebroso.
Poucos autores se debruçaram sobre esse tema (J. Gafo, Ross
Kubler, L Pessini e os teólogos católicos), mas uma rápida passagem pelo texto
do professor Leonard Martin, da Universidade do Ceará, me trouxe algum alento:
além de distinguir a eutanásia de distanásia, ele criou dois novos termos,
mistanásia e ortotanásia, que se pode traduzir por morte miserável e morte
direita, reta.
A eutanásia, segundo ele, significa morte boa, suave,
indolor. Na distanásia, a tecnologia médica é usada para prolongar penosa e
inutilmente o processo de agonizar e morrer, encarando a morte como o grande e
último inimigo. A mistanásia se resume em três situações: a grande massa de
doentes e deficientes que não conseguem ingressar, efetivamente, no sistema de
atendimento médico; os doentes que conseguem ser pacientes para, em seguida, se
tornarem vítimas de erro médico, e os pacientes que acabam sendo vítimas de más-práticas,
por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos. Qualquer semelhança...
A política nazista de purificação racial, baseada numa
ciência ideologizada, é um bom exemplo da aliança entre a política e as
ciências biomédicas, a serviço da mistanásia.
A ortotanásia procura respeitar o bem estar global do
indivíduo, e abre pistas para as pessoas de boa vontade garantir, para todos,
dignidade no seu viver e no seu morrer. Na opinião do professor, que,
recentemente, foi convidado pela França e pela Alemanha para elaborar uma
proposta de resolução da ONU sobre a clonagem humana, o referencial da medicina
permanece predominantemente curativo. Enquanto isso perdurar, será difícil
encontrar-se um caminho para a morte de pacientes crônicos e terminais que não
pareça desumano, por um lado, ou descomprometido com o valor da vida humana,
por outro.
“Uma luz importante advém da mudança de compreensão do que
realmente significa saúde, impulsionada pela redefinição deste termo pela
Organização Mundial da Saúde”, ele diz. “Em vez de ser entendida como a mera
ausência de doença, propõe-se uma compreensão da saúde como bem-estar global da
pessoa: físico, mental e social. Quando a estes três elementos se acrescenta,
também, a preocupação com o bem-estar espiritual, cria-se uma estrutura de
pensamento que permite uma revolução em termos da abordagem da morte dos
pacientes terminais”.
“O ideal, neste caso, seria promover-se a integração do
conhecimento científico, da habilidade técnica e da sensibilidade ética, numa
única abordagem”, propõe. “Quando se entende que, no centro de tudo, está o ser
humano, percebe-se, no doente crônico e terminal, um valor até então escondido
ou esquecido: o respeito à sua autonomia. Ele tem o direito de saber e o
direito de decidir; o direito de não ser abandonado; o direito a tratamento
paliativo para amenizar seu sofrimento e dor; o direito de não ser tratado como
mero objeto, cuja vida pode ser encurtada ou prolongada segundo as
conveniências da família ou da equipe médica”.
A fé não livrou o velho jacarandá de sua agonia, nos dias
finais, assistido por nossa impotência, por serviços hospitalares precários (de
entidades privadas), pela dor e pela angústia, além do profundo desconforto
diante da ansiedade de amigos e parentes próximos. Sofrimento prolongado por
vários dias, equívocos e pesares. Exemplo: um médico decidiu sedá-lo para
aliviar o sofrimento, mas outro não permitiu, porque o coração dele poderia
não aguentar.
Perto do fim, quando a esperança de recuperação era nula, um
dos médicos decidiu lançar mão de mais um procedimento ainda mais doloroso e
invasivo para estender aquela agonia. Questionado, explicou seus motivos: “Vamos
deixar a natureza seguir seu curso” (Fonte provável: Artigo 6º do Código de Ética Médica,
de 1988, atualmente em vigor).
No dia seguinte a esse episódio, uma enfermeira desavisada
entrou no quarto e, em vez de aplicar uma dose cavalar de cloridrato de
tramadol no paciente vizinho, que teria uma perna amputada, injetou o
medicamento naquele que não podia receber sequer uma leve sedação. Ele dormiu
por 24 horas, e pouco depois de acordar, partiu em paz. Entre a revolta o
cansaço do sofrimento psicológico de vários dias, a família sentiu-se consolada:
Nelson Corá, o meu sogrão querido, tinha parado de sofrer.
Efeitos Colaterais do tramadol, segundo o fabricante: Transtornos
cardíacos (incomuns), regulação cardiovascular (palpitação, taquicardia) – pode
ocorrer em pacientes que estão fisicamente estressados. Rara: bradicardia. Transtornos
vasculares (incomuns): regulação cardiovascular (hipotensão postural ou colapso
cardiovascular). Essas reações adversas podem ocorrer especialmente no caso de
administração intravenosa e em pacientes que estão fisicamente estressados.
Contei essa história a uma vizinha, que, ao final, comentou,
simplesmente: “Deus sabe o que faz”.
Bob, texto maravilhoso e que história ! Um beijo para a Cecília e força aà família. Pior ainda seria se essa vizinha falasse que "Deus escreve certo por linhas tortas." E que poder inexorável a morte tem. A melhor definição dela está num conto húngaro que o Paulo Ronai reuniu e publicou num livro que eu tinha e ás águas levaram.Um dos personagens dizia à Morte: "Como poderia te temer se você é infalível ?" Fatalista como um bom cigano húngaro. Abraço. Enéas
ResponderExcluirImpossível parar no trecho do Linkedin. E valeu a pena chegar ao seu blog. Obrigada por compartilhar essa história de pura agonia e que nos traz tanto para refletir. A força do jacarandá, que se reflete ainda que tombando ao chão, desta vez está aqui, no seu texto. Saudações, Leonor Bueno.
ResponderExcluirObrigado pelo retorno, Leonor, e pela imagem do jacarandá que se renova aqui comigo. É um conforto, obrigado.
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